XXXII
Agosto 1872.
Á ALMA DE D. PEDRO IV, NOS ELYSIOS
Senhor:
Esta carta, a exemplo das que os humoristas de 1830 escreviam a Voltaire, que Vossa Magestade deve ahi conhecer, com o seu adunco perfil cortante e subtil, — é escripta na supposição que ha uma região cheia de silencio e de immobilidade, como a dos paizes Cimmerios, onde as almas vivem n’uma abstracção transparente, possuindo a vitalidade do espirito, sentindo, interessando-se, conversando e recebendo o seu correio. Doce deve ser esse logar: lagos calados como a neve; alamedas de myrto tranquillas como as vegetações dos sonhos; regatos mudos, que vão com a tranquillidade rithmica de um verso de Virgilio; sombras profundas como tumulos; e em tudo um repouso augusto e ineffavel. Que Vossa Magestade nos perdõe o arremessarmos para ahi, irreverentemente, grosseiras noticias da vida, — mas nós queremos contar-lhe o que se passou n’esta cidade onde Vossa Magestade viveu, por oc. casião do dia 24 de julho de 1872.
Não sabemos se Vossa Magestade se lembra ainda do dia 24 de julho. Para as almas que palpi. tam ahi, na sombra inviolavel, os factos da vida terrestre devem ser como farrapos fuscos de sonhos extinctos, sem intenção e sem idéa. Mas Vossa Magestade pode perguntar ao seu velho amigo duque da Terceira; lembre lhe a batalha de 23 e os fogos accesos de noite no pontal de Cacilhas!
Ora deve saber Vossa Magestade que durante 36 annos o dia 24 de julho e as suas glorias estiveram sepultados insondavelmente no fundo das memorias veteranas. Nunca ninguem se lembrou que n’aquelle dia o duque da Terceira tivesse dado uma capital aos constitucionaes. Os velhos, senhor, teem a memoria fugitiva como a agua dos rios: e os novos, a quem a educação revolucionaria alterou a curiosidade, nunca voltam os olhos para traz, para a região calada onde jazem as suas batalhas e as suas leis. Todos os annos, senhor, passava por nós entre a sequencia dos dias, o 24 de julho, e ninguem o notava, como se não nota, na passagem de um regimento, um soldado sem nome.
Deve parecer-lhe pois singular, senhor, que pas. sados 36 annos de indifferença sobre o 24, o fossem desenterrar do passado, vestil-o de gala, e fazelo reinar —— como aquella monotona Ignez de Castro
«Misera e mesquinha "Que depois de morta foi rainha.
Eis, senhor, o que se tinha passado. Sua Magestade o Rei actual, neto de Vossa Magestade, tinha ido ao Porto. O Porto, senhor, está bem differente do que Vossa Magestade o conheceu, n’outras épocas de batalha e de necessidade.
O Porto já não é aquella secca e escura cidade, rude e plebea, de ruas estreitas e agitadas, imper. tinente e cheia de opposição, comendo alegremente arroz e bacalhau, dançando nos bailes improvisados, onde as mulheres iam com o pobre vestido de chita da rua das Flores, e donde os homens saíam, cançados da gavota, para o fogo das linhas — Porto, ainda com feições de burgo antigo, com as suas dynastias de commerciantes honrados, os seus ta. mancos estoicos, impassivel diante dos reductos, sensivel diante dos melodramas do theatro nacional, patriota, resmungão e rezando ao Senhor de Mattosinhos! O Porto hoje, é uma cidade larga, bem anafada, com ventre, brazileira, um pouco somno lenta, cheia de poetas lyricos, e avida de baronatos. O Porto, pois, imperial senhor, lembrou-se por occasião da presença de el-rei, de fazer uma festa constitucional. Uma festa constitucional, para fazer perrice aos jesuitas. Porque ha cinco ou seis mezes o Porto foi tomado d’esta doença singular: o tedio, o terror, o odio ao jesuita. Aquella boa cidade ficou dos tempos de Vossa Magestade com os habitos de se bater. Vossa Magestade acostumou-os tão bem que elles não podem dispensar-se de ter um inimigo a vencer. Mas o Porto hoje, pacato, pansudo e pesado, pretende um inimigo commodo, que não obrigue ao peso da espingarda e ao frio das alvoradas, que se combata com palavras, artigos de fundo, versos e meetings. Ora o jesuita é um born inimigo, que não desarranja os habitos da digestão, a quem se dá batalha, conversando á porta do Moré ou em volta de um bock na Aguia d’Oiro. De sorte que o Porto adoptou o jesuita — como inimigo figadal. E combate o padre Couto. Vossa Magestade não conhece o padre Couto? nem nós: o padre Couto é uma reproducção barata do jesuitismo — para uso do Porto, Ah! Vossa Magestade imperial conheceu padres bem differentes: o grandioso frade crusio, vasto e burro, que enchia a caleça ao lado da qual trotavam dois lacaios de cabelleira: o anafado frade domini. cano cheio dos favores da côrte, demandista e ra. bula, occupado na intriga e dirigindo occultamente as venerandas cabelleiras do desembargo do Paço: a multidão pittoresca dos frades eruditos, cheios de rapé e de textos, esquecidos nos silencios das altas livrarias: o padre plebeu, brutal e devasso, que tomava a monte a clavina: o padre fanatico, possuido de um Deus inquieto, avido de dominio, absolutista e sujo.
Hoje temos o padre Couto e o José Maria, genero constitucional. Aquillo intriga nas secretarias, aquillo negoceia uma missa de doze ou de cruzado, aquillo seduz as cosinheiras, aquillo faz negocio de bentinhos. É contra isto que o povo se revolta.
Portanto o Porto queria fazer alguma coisa solemne, estrondosa, festiva, contra estes sotainas, diz elle.
Fez a festa do dia 8 de junho. Outra data de que Vossa Magestade se não recorda, não é verdade? Tal é o ephemero da vida. Se Vossa Magestade encontrar ahi sob alguma placida ramada de myrtos, Napoleão, falle-lhe em Austerlitz, falle a Shakspeare em Hamlet abrirão olhos surprehendidos, calar-sehão. Não se lembram!
Ora pensando que o jesuita representa o absolu. tismo, o legitimismo, a forca, o convento, o dizimo, — a boa cidade do Porto, tratou de organisar a festa do dia 8, como uma desfeita, uma replica aos jesuitas — enchendo-a de elementos liberaes, apro. veitando a presença do rei, prodigalisando as bandeiras azul e branco, etc. — E então para caracterisar a intenção liberal e democratica do dia — o que fez? Fez representar no Baquet a Bocela de Pan. dora, comedia em tres actos; Vossa Magestade não sabe o que é? nem nós. Pode interrogar um velho risonho e subtil, que por ahi deve ter encontrado murmurando como memorias extinctas couplets de vaudeville, e que é o sr. Scribe.
Representou-se a Boceta, senhor. E assim ficou batida victoriosamente em brecha a propaganda jesuitica. Se Vossa Magestade ler esta carta alto, ás sombras curiosas e saudosas da terra ha de ver um velho corcovado, secco e ardente, ascetico, mas com grande doçura no olhar, rir-se com o seu es. treito triste riso de jacobino, vendo a maneira portuense de combater o jesuita — com vaudevilles. Esse homem, senhor, é Mazzini.
Ora quando em Lisboa se soube que o Porto dava esta grande festa —— Lisboa teve um estremecimento de colera. Lisboa teve a tradicional, a costumada inveja. O Porto tinha feito uma grande festa constitucional — Lisboa não tinha nenhuma!
É necessario que Vossa Magestade saiba que existe uma incuravel rivalidade moral, social, elegante, commercial, alimenticia, politica, entre Lisboa e Porto, Lisboa inveja ao Porto a sua riqueza, o seu commercio, as suas bellas ruas novas, o conforto das suas casas, a solidez das suas fortunas, a seriedade do seu bem estar. O Porto inveja a Lis. boa a Côrte, o Rei, as Camaras, S. Carlos e o Martinho. Detestam-se. As damas de Lisboa riem-se da pouca distincção, da pequena sciencia, da falta de chic, e de que das toilettes do Porto? O Porto, rubro de odio, cobre as suas senhoras da sumptuosi. dade dos estofos e das faiscas dos diamantes.
Lisboa tinha toiros. O Porto quiz ter este bom tom de leziria. Mas faltava-lhe o bom gado, os artistas, a faisca da troça, o estonteado especial, o sal das toiradas d’aqui. Ah sim! Em logar de uma praça o Porto ergue duas. Mas consegue apenas ser duas vezes peior. Bem! O Porto, sorri-se e para se des. forrar faz corridas de cavallos. Grande troça nos sportmen a pé do Chiado: vamos batel-os, diziam, vamos batel-os desalmadamente. Chegaram lá; fo. ram chatamente batidos.
O Porto tinha a Foz, praia de banhos, rica, de um grande pittoresco de paizagem. Lisboa, rancorosa, improvisa Cascaes, sitio enfesado entre pinheiros ethicos e rochedos de opera comica.
Os poetas do Porto fazem sorrir; no Chiado, os lyricos da côrte, descendentes dos vates parasitas do adro de S. Domingos: mas os da Aguia de oiro abrem sobre as mesas as odes de Vidal, e entornam-lhes em cima, como unico commentario digno, môlho de carne assada.
O Porto, por circumstancias, é reformista: eis que Lisboa, se veste de um grande desdem pelo sr. bispo de Vizeu, Antonio.
Em Lisboa houve ultimamente um certo movimento subterraneo, indistincto, informe, do espirito republicano: o Porto recebe El-Rei, com um delirio que só Vossa Magestade inspirou nos dias em que passeava a pé, com a sua estreita farda de coronel de caçadores, de cravo ao peito, e batia, com as pontas dos dedos, nas faces rechonchudas das mulheres do Candal.
Lisboa come com pretenções francezas e phantasistas: logo o Porto se afoga, cada vez mais, no chorume da velha cosinha portugueza, e abraça-se, como a um estandarte, à travessa do cosido. —-Mas em quantas coisas estamos fallando, que são para Vossa Magestade como as syllabas irritantes de um dialecto barbaro? Era-se mais conciso, não é verdade, nos tempos apressados de Vossa Magestade? Hoje, a gente põe-se a caminho, mas para a cada momento, como um anemico e um precioso, a fu. mar as cigarrilhas-azues da phantasia. — O facto é, Página:Uma campanha alegre v2 (1891).pdf/219 Página:Uma campanha alegre v2 (1891).pdf/220 Página:Uma campanha alegre v2 (1891).pdf/221 Página:Uma campanha alegre v2 (1891).pdf/222 Página:Uma campanha alegre v2 (1891).pdf/223 Página:Uma campanha alegre v2 (1891).pdf/224 da etiqueta apresentar ahi os nossos respcitos de portuguezes e de vassallos, aos Sanchos e Affonsos, etc., que reinaram n’este canto da terra, — te. nha Vossa Magestade a condescendencia de dizer aos ditos Sanchos e Affonsos... sim, diga-lhes que aqui estamos as ordens.