XXXV

Outubro 1872.

Deu-se ultimamente um facto singular: o soldado Barnabé mata o seu alferes com um tiro, e é, pelo consello de guerra, condemnado a ser passado pelas armas. Immediatamente a imprensa apossa-sc vorazmente d’este facto e, durante um mez, travase entre sanguineos e lymphaticos esta discussão: Deve o soldado Barnabé ser fusilado? deve o soldado Barnabé conservar-se vivo? E no entanto, na sua prisão, o soldado Barnabé, espera que os srs. jornalistas e curiosos decidam, — se elle póde continuar a aquecer-se ao sol, ou se deve ser encostado a um poste e atravessado de balas.

Podia supor-se ainda que o soldado Barnabé, na reclusão mortuária da sua casamata, não conheceria esta discussão, que é para ele alternadamente — bandeira da misericórdia e dobre de finados. Mas qual! O soldado Barnabé conhece os jornais. O soldado Barnabé lê os jornais, e, o que é pior, tendo um correspondente improvisado, sobre ele, uma anedota excessiva, o soldado Barnabé escreveu para os jornais. O soldado Barnabé rectificou. De modo que devemos crer que ele todas as manhãs abre a gazeta e vai procurar no artigo de fundo, soletrando a prosa florida — a probabilidade de viver ou a probabilidade de morrer!

Ora os que pedem a comutação da pena, compreendem-se, têm por si a beleza do sentimento: é a piedade, o respeito da vida, o ódio das penas irreparáveis — que vivem e suplicam na sua prosa. São simpáticos, são sensíveis.

Mas os srs. sanguinários que pedem a morte, em que se fundam?

Na Disciplina militar.

E é a primeira vez em Portugal que a Disciplina se estreia como razão. Nunca fora invocado este personagem: desde a deserção do soldado até à insurreição do general — tudo se tem passado tranquilamente, sem que a disciplina se adiante a reclamar os seus direitos ; — estava há tanto tempo calada, tácita, inactiva, indiferente, desinteressada, que todos supunham que ela pedira a sua reforma e gemia, nos subúrbios, um reumatismo antigo. Mas trata-se de uma vida — e vemos de repente, surpreendidos, a disciplina aparecer entre as colunas dos jornais, e pedir essa vida em seu nome e para sua garantia.

Sem o que a Disciplina não responde por si. Ou lhe dão o soldado Barnabé crivado de balas, ou a Disciplina se rebaixa inteiramente, e publicamente, nas ruas, se desabotoa.

Esta aparição da Disciplina, que nunca ninguém vira, é tão singular que o movimento instintivo é olhar para ela. E que desilusão! Vindo pedir sangue — podia supor-se que ela vinha forte, musculosa, asseada, correcta, intacta, pudica e grave. Qual!

Vem trôpega, caturra, esfarrapada, ensebada, esmoucada, babando-se e pedindo sangue para se reconfortar, como um mendigo escavacado pede um caldo. Um copo de sangue para a Disciplina! E todo o mundo se admira que ela não prefira meio de Lavradio!

Entendamo-nos com a Disciplina. Ela tem em nós dois respeitadores imutáveis.

Ela é a honra activa do exército, a sua consciência, a sua dignidade. Para ela se manter intacta e perfeita, se forem necessários cadáveres, encostem-se homens ao muro e forme-se o piquete de execução; nós não temos o respeito sentimental e lírico da vida humana, ou antes temos o respeito excessivo da vida pública e social, para hesitarmos em lhe sacrificar Barnabé ou João. Mas o que é necessário é que a Disciplina militar, que vem pedir essa vida para garantia da sua conservação, seja verdadeiramente e legitimamente a disciplina militar: isto é — a disciplina perfeita, sem nódoa, virgem de deserções e de revoltas, sem defecções e sem traições, tendo a religião da lei até à

Deu-se ultimamente um facto singular: o soldado Barnabé mata o seu alferes com um tiro, e é, pelo conselho de guerra, condenado a ser passado pelas armas.

Imediatamente a imprensa apossa-se vorazmente deste facto, e, durante um mês, trava-se entre sanguíneos e linfáticos esta discussão: Deve o soldado Barnabé ser fuzilado? deve o soldado Barnabé conservar-se vivo? E, no entanto, na sua prisão, o soldado

Barnabé, espera que os srs. jornalistas e curiosos decidam — se ele pode continuar a aquecer-se ao sol, ou se deve ser encostado a um poste e atravessado de balas. superstição, a obediência do dever até à minuciosidade, rigorosa, exemplar, intacta, rígida e prussiana. Se esta disciplina, para se conservar assim, pede sangue, atirem-se-lhe baldes de sangue!

Mas se é uma disciplina exautorada e desmoralizada, desfigurada e poluída por todas as revoltas e todas as desobediências, a que nos vem pedir, para se desafrontar, a execução de um homem — encolhem-se os ombros. É como se uma prostituta se viesse queixar de que lhe deram mais um beijo! Pois tudo a disciplina tem sofrido sem se queixar! Corpos desorganizados, regimentos insubordinados, desordens nos quartéis, dissolução nos costumes, traições nas fileiras, roubos nos armamentos, desfalques nos ranchos — está ferida, está extinta, está perdida — e de repente ergue-se e grita que a quiseram violar e que matem o violador! E há quantos anos te estás tu deixando violar, de semana em semana?

És tu que fazes os Barnabés. Quando um exército se sente desorganizar, sem reagir, alimenta a desobediência; e como perde o brio militar, o espírito de camaradagem, a atenção pelos inferiores e o respeito pelos superiores — termina-se pelo tiro; à anarquia da disciplina segue-se a tirania da brutalidade. Um general que leva os seus soldados à revolta, termina na última escala pelo soldado que dá tiros nos seus oficiais. É a quem tem melhor pontaria.

Quando uma mulher se queixa, à uma hora da noite, que a insultaram, não tem andado desde as sete da tarde a oferecer-se aos tumultos. Se à primeira falta contra ti, ó

Disciplina, tivesses reclamado, tinhas agora o teu cadáver. Assim, não. Se queres carne com sangue, come rosbife.

E diz-se que sem este exemplo o exército em Portugal não pode ter seriedade.

Escreve-se isto.

Não é mau. De modo que temos o exército sem espírito militar, sem instrução, sem manobras, sem hábitos de marcha e de acampamento, sem vigor físico, sem fé patriótica, os arsenais sem armas, a artilharia sem peças, os quartéis sem condições, as escriturações sem regularidade, os quadros sem gente, os estados-maiores sem talento, os coronéis sem fidelidade, os soldados sem disciplina — e qual o remédio para tudo isto?

— Matar o soldado Barnabé!

Nós bem sabemos que são os novos oficiais saídos das escolas e cheios de um espírito vivo — que querem este exemplo, para impedir o fim de tudo; e se há classe com que simpatizemos é a destes moços oficiais, homens positivos, instruídos, educados pela ciência, tendo alguma coisa no espírito da rectidão matemática, novos inteiramente no vigor e nas tendências sociais; mas estes bons rapazes estão na ilusão. Eles não concorreram para a desorganização militar — acharam-na assim e são como filhos, tardiamente nascidos, que encontram arruinada a casa de seus pais, desmoronando-se ao

Inverno.

Ora se eles são enérgicos e sentem em si a força das criações proveitosas, devem estar consertando a casa, vidro por vidro, e sustentando a disciplina caduca, cadáver por cadáver? — Não. Arrasem a casa e façam-na de novo. Depois se algum soldado resmungar, então sim: encostem-no ao muro e crivem-no de balas.

Até lá, sejamos mais benévolos — e não seja o pobre Barnabé que vá estrear — o novo sistema de armas!