UMA MANHÃ DE MR. RICHARD
Mr. Richard era de uma rigorosa pontualidade nos seus actos de vida domestica. Logo pela manhã, depois de uma leitura de Biblia e de uma revista á preciosa collecção de aves e de insectos de Inglaterra, que possuia, consultando a proposito os livros de Yarrell, Shuckard, Rennie, e de outros especialistas da localidade, passava a gosar no jardim das bellezas matutinas e a exercer a sua paixão florista, cavando, mondando, semeiando os seus bem guarnecidos canteiros. Esta occupação matinal de Mr. Richard, forçoso é confessal-o, não era demasiadamente favoravel ao horto, para com o qual elle tinha aliás as melhores intenções d'este mundo.
Apesar de no seu gabinete se encontrarem constantemente abertos livros de botanica e de horticultura desde a Flora Londinensis de Curtis e as obras completas de Lindley, até ás publicações periodicas das varias sociedades horticolas de Londres, Mr. Richard Whitestone costumava fazer sciencia por sua conta e risco. Despresando os preceitos dos escriptores theoricos, juntamente com a experiencia provada do velho Manoel, ensaiava ás vezes processos, não referidos nos manuaes de jardinagem, com grave detrimento das mimosas e raras plantas, cuja acquisição, por todo o preço, obtinha nos melhores mercados da Europa e principalmente no Covent-Garden market e no Pantheon de Oxford Street.
A natureza tinha sempre muito que fazer ao remediar os resultados da arte do velho commerciante.
Felizmente para o aspecto geral do jardim, Mr. Richard Whitestone era exclusivo nas affeições floristas. A uma unica planta dedicava, em cada época do anno, os seus cuidados horticultores. Por aquelle tempo, eram as begonias as suas predilectas. Ia um destroço n'ellas, occasionado por tanto amor e cuidados, que consternava o velho Manoel, devéras affeiçoado ás plantas.
Mr. Whitestone ensaiára nas pobres uma especie de rega, á qual grande numero succumbiu. Era um liquido artificial de uma composição indigesta, e em que elle procurára reunir todos os elementos, que julgára mais proprios para lhes desenvolver a vegetação.
—Isso queima-lhe as folhinhas!—aventurára-se a dizer Manoel, vendo Mr. Richard a temperar aquella caldeirada. —Cala a bôca, tolo. Verás como ficarão viçosas.
Á vista do resultado, Mr. Richard teve porém de abandonar o processo, mas sem se dar por vencido.
—É que estes vasos são pouco porosos… Hei de mandar vir de Londres uns.
Era uma maneira muito de Mr. Richard, esta de sair das situações apertadas. Appellava sempre para Londres, como fiel inglez que era.
N'estes entretenimentos levava pois o tempo até á hora do lunch.
Voltava então a casa. Era uma verdadeira hecatombe de ostras qualquer refeição d'estas. O mercado do Porto a custo póde satisfazer as exigencias dos numerosos malacozoofagos da colonia ingleza, entre os quaes Mr. Whitestone occupava logar eminente. O roast-beef á ingleza, ou o fiambre, a mostarda, as batatas, a bolacha, a cerveja, o queijo de consistencia pastosa forneciam tambem estes lunchs, accommodados á robustez d'aquelle estomago saxonio, descendente dos que ainda no quinto seculo da era christã eram antropophagos—segundo affirma o auctor da Viagem de Jersey a Gran-ville.
Carlos fazia de ordinario companhia ao pae n'este repasto matinal. Mr. Richard gostava de ver o filho junto de si, em tão solemnes momentos, comquanto não trocasse com elle meia duzia de palavras; passados os cumprimentos iniciaes, era costume seu abrir o Times e acompanhar o acto manducatorio da leitura d'este interminavel jornal, interrompendo-a apenas por alguma certa phrase a recommendar ou criticar um ou outro prato.
Porisso a ausencia de Carlos n'esta manhã cavou-lhe uma ruga de descontentamento na fronte, que os ares do jardim haviam expandido, e suspendeu-lhe a aria festiva, mas por elle um tanto estragada, que entre dentes vinha trauteando ao entrar na sala.
Esta musica era a de uma das melodias de Russell, popularissimo compositor e vocalista inglez, a cujas salas, por aquelle tempo, corria em Londres a multidão ávida e enthusiasta, com o fim de o ouvir cantar as proprias composições, que elle mesmo acompanhava ao piano. Nas salas, nos theatros, nas ruas e nos campos, tanto na Inglaterra, como na America do Norte, lê-se em noticias d'essa época, repetiam-se as composições d'este musico notavel, cujo caracter nacional se aperfeiçoara na convivencia da escola italiana, sem perder com isso, diz-se, o cunho da originalidade.
De entre a collecção de melodias, ou cantos populares, publicadas n'aquelle anno em Londres, e procuradas com alvoroço pelos amadores nacionaes espalhados por todo o mundo, havia uma que Mr. Richard sobre todas amava. Era essa a que vinha trauteando ao entrar na sala.
Tanto na indole d'este musico, como na da lettra, que assigna o nome do dr. Mackay, encontrava-se de facto muito do caracteristico genio inglez, para justificar de sobra esta preferencia.
É um canto de animação aos numerosos bandos de emigrados, que de todos os pontos da Gran-Bretanha partem a cruzar os mares, á procura da riqueza, e, sem lagrimas, se despedem do berço natal, que todavia amam com fervor. Se é licito admittir que, n'estas luctas travadas no seio da sociedade actual para conquistar a riqueza, póde ainda incidir um raio d'aquelle esplendor épico, de que se illuminam os trabalhos analogos do mythologico Jason, de certo os inglezes são os heroes d'essas epopeias modernas. Aquelle desprendimento com que se separam do que amam quasi com fanatismo—a patria e a familia—, aquella coragem estoica, que os alenta nos revézes, e a firmeza de animo, que nas victorias lhes evita os somnos perigosos, dão a esses argonautas do commercio um prestigio respeitavel, que certas ridiculas exterioridades não podem suffocar.
Como complemento ao estudo do caracter de Mr. Richard Whitestone daremos aqui a traducção dos versos do dr. Mackay, por ser o conceito d'elles afinado pelo sentir do honrado negociante.
Era esta mesma canção a que os soldados inglezes entoavam na Crimeia, durante a campanha d'aquelle tempo; e ao partirem da patria, emquanto os instrumentos marciaes soltavam aos ventos as notas d'este canto popular, milhares de espectadores cantavam unisonos:
Cheer, boys!, cheer…
que são as primeiras palavras do hymno, que traduziremos assim:
«Eia! rapazes, eia! Longe de nós a ociosa tristeza. Almas varonis, a coragem nos alentará no caminho! A esperança impelle-nos para diante, e mostra-nos um esplendido ámanhã; esqueçamos portanto a escuridade de hoje.
Adeus, pois, ó Inglaterra! Ficam-te ainda muitos filhos, que como nós te amem.
Nós enxugaremos as lagrimas, que ao principio derramamos. Porque havemos de chorar, ao soltarmos as velas em busca da fortuna? Adeus, pois, adeus, Inglaterra! adeus para sempre.
Eia! rapazes, eia! pelo paiz! pelo paiz natal!—Eia, rapazes! a vontade forte imprime vigor ao braço. Eia! a riqueza recompensa o trabalho honrado; eia! eia, rapazes! pela nova terra, pela terra feliz!
Eia! uma favoravel briza sopra para nos impellir livremente sobre o dorso do oceano; o mundo seguir-nos-ha pela esteira que deixarmos; no Occidente brilha a estrella do imperio. Aqui temos fadigas e pouco a recompensal-as; além a abundancia sorrirá ás nossas penas; e nossas serão as planicies e as florestas, e o grão dourado amadurecerá para nós em campos sem limites.»
Foi pois a musica correspondente a esta canção que Mr. Richard interrompeu quando, ao entrar na sala, viu que com um unico talher estava preparada a mesa.
—Carlos está ainda na cama?—disse, voltando-se para Jenny e n'um tom, em que se revelavam ligeiros indicios de mau humor.
Cumpre-me avisar aqui os leitores de que, para dupla commodidade, minha e sua, farei fallar portuguez a Mr. Richard e até segundo as regras de uma grammatica, cuja auctoridade elle nunca reconheceu.
Jenny sentiu a necessidade de advogar a causa do irmão junto de Mr. Richard, que, já bastante indisposto com a ausencia de Carlos no dia do seu anniversario, encarava agora com maus olhos taes excessos de indolencia filial.
Profundo admirador das bellezas d'este mundo sublunar, Mr. Richard olhava o somno como um invejoso, que nos furta algumas horas de prazer n'esta vida, e ao qual, obrigado a fazer ligeiras concessões, tratava sempre como inimigo.
Á interrogação paterna, Jenny respondeu:
—Ainda.
—Ho!—acudiu Mr. Richard, com a sua monosyllabica e guttural interjeição de desgosto, acompanhando-a dos accessorios do costume.
Jenny acrescentou:
—Charles teve de se recolher hontem mais tarde…
—Escolheu bem o dia.
—Não se lembrava…
—Exquisito!
—Creia que se não esqueceria assim, se se tratasse do dia 3 de julho, do anniversario do pae.
Mr. Richard sentou-se e pôz-se a ler o Times.
Jenny sentou-se defronte d'elle, mas arredada da mesa.
—E, como se deitou tarde—proseguiu ella, passado tempo—e eu receei que a falta de descanso lhe podesse fazer mal, ordenei que o não chamassem.
—Então veio muito tarde?
—Julgo que … ás duas horas…—balbuciou Jenny.
O criado, que começára a servir Mr. Richard, pensou fazer um obsequio corrigindo:
—Perdão, miss Jenny, passava já das quatro.
—Ho!—repetiu Mr. Richard.
Jenny olhou para o criado de maneira, que lhe deu a conhecer a inconveniencia da correcção.
—Foi uma promessa, que Charles fez a uns amigos…—disse ella—e só soube o dia que era, quando já não ia a tempo de recusar.
Mr. Richard não precisava de ouvir mais nada, para suspender as suas censuras. Tinha já perdido o habito de discordar da filha. Porisso só respondeu, lendo o Times:
—Sim, sim. Está bom. O mal d'essas extravagancias é d'elle e porisso…
N'isto entrou, aos saltos, na sala um d'esses pequenos cães felpudos, pretos e pardos, verdadeiros Atilas dos ratos e rivaes dos velhos exterminadores d'esta raça perseguida.
—O' Butterfly, good morning! How do you do, sir?—exclamou Mr. Richard, saudando o seu cão predilecto, que lhe estendeu a pata como para um shake-hand. Havia n'isto um requerimento a uma fatia de fiambre, o que o inglez não indeferiu.
O pequeno quadrupede sentou-se então com familiaridade na cadeira devoluta ao lado do seu dono, fazendo a devida justiça ás sobras do lunch, que lhe cabiam em partilha.
Jenny erguia-se a cada momento para servir o pae, attendendo a particularidades, futeis de mais para merecerem a observação do criado ou de outrem, que não fosse uma filha.
N'uma d'estas occasiões, Mr. Richard, como se não tivesse perdido ainda o fio da conversa anterior, disse a meia voz:
—É que ha oito dias, que nem apparece no escriptorio e … é feio isso.
Jenny não respondeu.
Era claro que durante todo o tempo, em que tinham guardado silencio, o mesmo pensamento occupára o espirito de ambos.
Receio que os redactores do Times não tivessem d'esta vez conseguido captivar a attenção do seu leitor.
Levantou-se por fim o inglez.
Lavando as mãos e estendendo a vista pelos floridos taboleiros do jardim, murmurava ainda:
—Parece mal. É mau costume.
E saíu da sala para o gabinete.
Jenny acompanhou-o.
—E demais nem tanto custa—dizia elle ainda, pelo caminho.
Enfiando o sobrecasaco e aceitando das mãos de Jenny o chapéo e a bengala, continuou no mesmo tom:
—Dá logar a que se diga … a que se repare…
Calçando as luvas de pellica côr de canna, por uma exquisitice patriotica mandadas vir de Inglaterra directamente, resmoneou ainda:
—Não sei que custe muito estar alguns minutos no escriptorio.
E, passado um momento:
—É feio, é feio.
Parecia emfim disposto a saír, mas Jenny, costumada a observal-o, descobria-lhe certa hesitação, como se se travasse n'elle uma lucta entre duas resoluções encontradas.
—Até logo, Jenny—dizia Mr. Richard, mas sem acabar de partir.
—Não sei o que me esquece!—murmurou depois com manifesta perplexidade.
Jenny correu os olhos pelo quarto.
—O lenço?—perguntou, offerecendo-lhe um que vira sobre o toucador.
—Ah! o lenço, sim … o lenço…
Era evidente que não estava satisfeito ainda.
—Agora … não me falta nada; adeus.
Jenny julgou que d'esta vez sempre saíria.
—Ah! sim—continuava elle, parando novamente.
Jenny fitou-o com olhar interrogativo.
—Não sei o que… Ah!… Então… então Carlos… não se levanta esta manhã?
—Se quer que o chame?
—Não, não… É que…
E depois, interrompendo-se:
—Não é nada.
—Deseja que lhe dê algumas ordens?
—Não… mas… Emfim, o que é tem tempo.
—Mas diga; Charles não deve tardar a erguer-se…
—É que…
E Mr. Richard, com certo modo embaraçado, aproximou-se da secretária, abriu-a e tirou de lá um magnifico relogio e corrente, de construcção ingleza, objecto que expressamente havia encommendado de Londres para presentear o filho no dia dos annos d'elle.
A ausencia de Carlos na vespera impedira-lhe realisar o affectuoso intento.
Agora como que sentia vergonha de ter a sua affeição resistido inteira ao delicto filial, e de não lhe restar já no coração força bastante para reprimir as expansões d'ella.
—Ahi está—dizia Mr. Richard a Jenny, procurando com um tom sacudido tirar ás palavras a menor sombra de affecto.—Se quizeres, pódes dar isso a teu irmão. Para elle é que eu o destinava, se hontem…
Jenny tomou o relogio das mãos do pae, a quem agradeceu com um sorriso de ternura.
Mr. Richard proseguiu:
—Que eu não sei se Carlos o quererá; ainda que é objecto de preço…
—O maior preço é ser uma lembrança sua, senhor.
Mr. Richard resmoneou um monosyllabo inglez e ensaiou um gesto de inveterado scepticismo, que não lhe saíu muito expressivo.
Jenny acrescentou:
—E de mais preço ainda, se das suas proprias mãos o recebesse.
—Queres talvez que vá acordar Carlos, para que me faça o favor de me aceitar as minhas prendas?—perguntou o pae com certo azedume.
—Mas se… logo ao jantar…
—Talvez não nos dê a honra de nos fazer companhia.
—Oh! se Carlos soubesse…
—Nada, nada. Entrega-lh'o tu, se quizeres.
E, dizendo isto, saíu da sala, atravessou o jardim e dentro em pouco tempo transpunha o portão da rua.
O criado, que o encontrou no corredor, ouviu-o murmurar ainda:
—Parece muito mal.
Mas, chegando á rua, já ia apparentemente satisfeito. Caminhava com a rapidez, peculiar ao povo para o qual o tempo é dinheiro, dirigia ao favorito Butterfly phrases de cordial affecto e trauteava por entre dentes o popular—Cheer, boys, cheer!,…