JENNY
Jenny entrou no seu quarto, logo depois da partida de Carlos para o escriptorio. Era um delicioso quarto, côr de violeta, onde se divisava o bom gosto e a elegancia desaffectada, maravilhosamente unidos a um não sei quê de austeridade ingleza, não em tal grau que destruisse a feição leve e graciosa, que compete aos aposentos de uma mulher de vinte annos, mas bastante para os despojar de certo excesso de ornamentos, que em extremo agradam a alguns espiritos, mais que femininos, pueris.
Não lhe era cabida a descripção, que um romancista francez nos faz do quarto de uma das suas heroinas, pintando-nos tão abundantes as tapeçarias e alcatifas que, em todo elle, se não mediria uma pollegada de madeira a descoberto, e tão flacidas e macias, que n'essa gaiola perfumada poderia qualquer avesita voar, de canto a canto, sem receio de magoar as azas.
Este requinte de molle elegancia parisiense mal se quadrava com a indole séria e com a actividade natural de Jenny Whitestone. Ha em toda a ingleza um pouco de puritana; no caracter das mais ternas conserva-se sempre alguma cousa que, debaixo do ponto de vista moral, corresponde áquelle esbelto e inflexivel de fórma, que lhes é proprio, tão diverso do requebrar indolente e quasi morbido das mulheres meridionaes.
Não se encontrava no quarto de Jenny um unico objecto d'essa mobilia, quasi de boneca, dos boudoirs da moda, onde predominam o papier maché, o pau rosa, a madeira branca e dourada; e os primores de uma arte, que, á força de querer apurar em delicadeza os seus productos, os faz ás vezes acanhados e ridiculos.
A elegancia, alli, não abdicava certa dignidade, á qual hoje é raro combinar-se. Nenhum dos costumados artificios da industria moderna; tudo era o que parecia ser; o marmore, marmore; o bronze, bronze; o damasco, damasco; as rendas, rendas verdadeiras. Não havia nos moveis esses tenuissimos folheados, mascarando, com madeiras de preço, outras de menos valor; nenhumas d'essas maravilhas de imitação, obtidas com vernizes e tintas; nenhuns metaes enfeitados, pelo galvanismo, com falsos titulos de nobreza. Nem um só objecto mentia dentro d'aquelle recinto.
Os caracteres, naturalmente observadores da boa fé, até n'estas cousas a amam.
A côr predominante do quarto, de um tom que agradaria a pintores, fazia vantajosamente sobresair a alvura dos cortinados do leito, castamente descidos.
Côres mais garridas só as das camelias, que, em singelas jarras de biscuit e porcellana, adornavam o toucador e o fogão.
Não usurpavam o logar, devido ás pobres flores, essa profusão de quinquilharias, hoje tanto á moda: vidros de essencias, de pomadas, de oleo, cartonagens de todos os feitios, figuras de porcellana e de jaspe, flores de pennas, de papel, de sola, de cascas de cebolas, de tudo com preferencia ás verdadeiras; retratos de rainhas e de reis, sabonetes de varias côres e fórmas e uma infinidade de pequenos objectos, que dão a qualquer d'esses gabinetes a apparencia de bazar ou de exposição de feira.
Alguns bronzes de arte, alguns purissimos crystaes de Inglaterra, algumas bonitas floreiras e uma ou outra obra de litteratura ou de religião, n'aquellas inimitaveis brochuras inglezas, era o mais que alli se podia ver.
As paredes estavam limpas de arrebicadas lithographias coloridas, representando meninas a disfarçarem um sorriso atraz do leque, a brincarem com um gato, a cheirarem uma flor, a olharem-nos através de uma luneta e em outras muitas posições todas affectadas, de tão graciosas que querem ser; em vez d'este adorno, então commum nas salas do Porto, notavam-se as mais afamadas producções do inexcedivel buril britannico e algumas aquarellas, cópias fieis de paizagens inglezas.
A luz penetrava na sala por entre discretas venezianas e cortinas, que lhe temperavam a intensidade, até o grau adequado aos habitos de viver de Jenny.
De tudo emfim vinha a este quarto um aspecto de placido recolhimento, em que se aprazia o espirito, pensador e inclinado á melancolia, da amoravel irmã de Carlos.
Era alli dentro que, corridos os reposteiros e as cortinas, recostada ás mãos a fronte pensativa, em silencio, a sós, tantas vezes, como agora, a sympathica menina se entregava a meditações abençoadas de Deus, e das quaes dimanavam jubilos suaves para quantos de perto a rodeiavam.
Agitado o coração de saudades, sempre vivas e pungentes, contemplava n'esses momentos, com fervor quasi religioso, o retrato da mãe, fiel e mimosa miniatura, que recatava como a mais preciosa das suas joias.
A imagem d'aquella, que a estremecera tanto e que parecia ainda olhal-a com um bondoso sorriso, que nem a morte lhe apagára dos labios, produzia em Jenny a mais poderosa impressão.
Ás vezes, á força de muito a contemplar, figurava-se-lhe que essas amadas feições se animavam, que um ligeiro movimento lhe corria nos labios, que um raio de vida fulgia, por instantes, nos olhos tão cheios de piedade e de tristeza.
Que alegria para o coração da pobre Jenny! Persuadia-se de que a alma da mãe, evocada pela sympathia filial, passára alli, illuminára momentaneamente a imagem inerte, e abençoára a filha, que tão pequena deixára orphã de apaixonadas caricias.
Esta illusão vivia com Jenny; era n'ella um d'esses intimos segredos do coração humano, para os quaes não há confidentes possiveis. Perante a amizade mais provada, perante o amor mais extremoso, a alma, por expansiva que seja, não se revela toda. Ha uma parte obscura do nosso mundo interior, sempre inaccessa aos olhares estranhos, onde se refugiam esses muitos segredos do eu para o eu, segredos, de que nós mesmos nos ririamos, se os labios ousassem pronuncial-os um dia;—que não ousam. Ha exemplos de perfumes tão subtis, que, aberto o vaso que os contém, quasi instantaneamente se dissipam na atmosphera; assim estes mysterios interiores, inconsistente alimento da nossa phantasia, perdem-se tambem, ao tentarmos communical-os.
Guarde cada um para si essa parte do pensamento, superstições infundadas, crenças pueris, que não podem separar-se de nós, sem que nós proprios as desconheçamos e com os estranhos zombemos d'ellas, das pobres, que não nasceram para viver senão assim, presas á alma, de cuja essencia parece receberem vida.
São como umas delicadas algas maritimas, cuja textura tenuissima se expande na agua em formosas arborisações, illudindo as esperanças dos que, namorados de tanta belleza, as arrancam de lá; fóra do ambiente, em que vegetam, cêdo se mirram e desformam.
Bem lucida e forte era a razão de Jenny, e comtudo, no mundo interior, nutria a crença illusoria—pelo menos illusoria me parece, a mim que de fóra a examino—de que aquelle retrato de sua mãe não tinha uma expressão invariavel.
Eu queria dizer que isto era sentido, e não pensado, pela bondosa menina; mas não sei se o rigor philosophico me permittirá a linguagem; e comtudo não vejo como de outra sorte dar conta d'este frequente phenomeno psychologico—o da persistencia de certas crenças irracionaes, nos espiritos mais vigorosos e logicos.
Dias havia, em que nos traços e delineamentos d'aquella miniatura, Jenny julgava descobrir um ar de alegria, que logo se lhe insinuava no coração; outros em que, pelo contrario, ganhavam vulto a seus olhos não sei que sombras de tristeza que a faziam estremecer, como se fossem presagio de mal.
Seriam reflexos de presentimentos proprios, que então a illudiam? Talvez; e ficar-se-ha comprehendendo melhor o mysterio, interpretando-o assim?
Presentimentos! Que espirito philosophico ha ahi, que os admitta?
Jenny era ainda uma creança, quando perdeu a mãe; no meio dos jogos e dos brinquedos infantis veio um dia surprendel-a este profundo golpe no coração; ao seu lado, crescera o mal ameaçador e terrivel, mas, no descuido de tão tenros annos, só dera por elle, quando a victima lhe caía prostrada nos braços. Feliz idade, a d'estas imprevidencias! N'um momento a vida inteira se lhe affeiçoou muito diversa, do como até então a antevira. Cêdo, muito cêdo, aquella creança franzina e debil, recebeu a solemne investidura da sacrosanta missão de mulher; transmittiu-lh'a a mãe, já moribunda; legou-lhe, nos derradeiros instantes, a tarefa abençoada, que até o fim cumprira, sem um só dia de desalento.
Apertando nas mãos já frias as da filha lacrimosa, que só então vira a morte, que, tanto havia, a ameaçava nos seus mais queridos affectos, incumbiu áquelles poucos annos o pesado encargo da familia; e com a voz trémula e os olhos turvados pelas sombras do adormecer final, disse-lhe que a essas mãos ia deixar entregue a paz da vida interior, a felicidade dos seus; que a ellas confiava os thesouros e balsamos de affeições e de carinhos, com que, no lar domestico, se sanam tantas dores e desillusões, colhidas lá fóra, nas luctas da sociedade; depois, cingindo ao peito a filha, como em extrema recommendação, para a qual as palavras lhe faltavam já, morreu beijando-a; ungiu-a de suas ultimas lagrimas e impressionou-lhe a mente infantil a ponto que a orphã, depois de a chorar sobre o tumulo, levantou-se mulher, mulher apesar dos seus doze annos, mulher pela sisudez dos pensamentos, pela consciencia viva e fervente da sua nova missão.
É um ensino efficaz o do infortunio! Desde essa hora fatal, como que se abriram os olhos de Jenny para verem mais fundo no coração d'aquelles que era dever seu tornar felizes. Só então principiou a reflectir que, entre os corações mais nobres e puros, se estabelecem ás vezes contrastes, de que podem resultar conflictos dolorosos; que o infortunio e as miserias da vida nem sequer proveem da funesta influencia do mal, de que se tenha deixado eivar completamente uma alma humana; que mais vezes é do encontro de duas paixões, na essencia generosas, que a tempestade se origina. No alto mar, um vento dominante póde governar o movimento e a derrota de um navio, mas é necessario que seja extrema a sua violencia, para que elle, por si só, o faça sossobrar; penetre porém o vaso mais poderoso no seio d'esses redemoinhos, que formam os ventos encontrados; e a submersão será quasi inevitavel.
É assim na vida.
Não basta que sejam grandes e sympathicos os caracteres, que laços de familia ou de sociedade prendem uns aos outros, para que entre elles exista harmonia. Que nas suas orbitas os animem movimentos contrarios, e serão já de temer os embates e as perturbações fataes.
A natureza physica tambem nos mostra como venenos energicos resultam ás vezes da combinação de elementos inoffensivos.
Tudo isto se foi esclarecendo, á força de meditações, no espirito da pequena Jenny, que tão precoce adeus teve de dizer áquellas espontaneas e não motivadas alegrias da infancia, que n'ella findaram com o ultimo suspiro da mãe.
E cêdo foi, muito cedo para uma creança ingleza que, de ordinario, na idade em que as outras principiam já a querer ser senhoras, brinca alegre e descuidada nos parques, correndo, saltando, rindo, sem se affligir por a fimbria dos vestidos ainda se lhe não humedecer na relva.
Esta livre expansão, que sabem e costumam dar á alegria as pequenas inglezas, é talvez a causa de serem desaffectadamente sérias, quando emfim a natureza, e não a arte prematura, as faz mulheres.
Cessaram pois em Jenny os risos d'essa idade, risos expansivos e irreprimiveis, que a cada palavra, que á menor causa rebentam, como da laranjeira florida chovem sobre o prado as pétalas nevadas e fragrantes, á mais leve viração que lhe agita a folhagem.
Afez-se a reflectir, a votar-se toda á felicidade dos seus, procurando insinuar-se nos pequenos segredos de caracter de cada um, para os dirigir, sem lucta funesta, na mesma esphera de acção, no mesmo circulo, em que tinham de viver.
Desde essa época principiou a crescer e a vigorar com rapidez o predominio de Jenny em toda a familia—suave sujeição, grata aos que a supportavam, como uma benção do céo.
Até então amára-se em Jenny uma creança meiga, cujas graças joviaes faziam distrahir o espirito de preoccupações mais sérias; cêdo porém tomou esse amor diverso e mais respeitoso caracter.
Em Mr. Richard Whitestone á affeição protectora, de que rodeiava a filha, principiou a misturar-se uma deferencia, que tinha seus vestigios de veneração; em Carlos, a familiaridade que as idades quasi iguaes e os jogos e estudos communs haviam feito nascer entre ambos, degenerou gradualmente em um sentimento de mais respeito, em uma docil submissão, que em todos os seus actos se denunciava.
Forte com esta dupla preponderancia, ía cumprindo Jenny religiosamente o legado da mãe, sempre com o pensamento n'ella, sempre com os olhos na sua imagem, na qual julgava entrever os reflexos da alegria ou da tristeza, que a sorte da familia devia por certo despertar n'aquella alma de justa, que a contemplava do céo.
Este oraculo, para todos mudo, só eloquente para os sentidos da filha, consultava-o Jenny com ardente fé ao encerrar-se sósinha no quarto, onde a luz e o rumor de fóra penetravam discretamente, como convinha a logar de tão piedosos mysterios.
Era triste a imagem d'esta vez!
Triste porquê?
Se os labios da irmã de Carlos trahissem n'aquelle momento as ideias, que tão profundamente a absorviam, elles fallariam d'este modo:
—Pobre mãe! porque venho encontrar-te assim triste? Não passaria ainda a nuvem d'esta manhã?... Mas era tão ligeira!... tão leve! que a mim mesma me inquietou pouco. Que adivinhas tu, boa mãe?—Isto pensava, ao beijar o retrato—Alegra-te; Carlos deve estar agora no escriptorio; pobre Carlos! É tão bondoso aquelle coração! Como elle havia de amar-te, como havia de acariciar-te, mãe, se ainda vivesses comnosco! Poucos o conhecem bem. Mas por que estás ainda triste? Has de ver como voltarão amigos. É facil reconciliar aquelles corações, que a final tanto se estremecem! Uma ou outra nuvem, que passe entre ambos, gera-a o mesmo excesso de amor. Parece-me que ia dizer como tudo se passou. A vista de Carlos foi bastante para dissipar todo aquelle resentimento... resentimento proprio de quem muito estima!... Então! Já não tens confiança na tua filha? Bem vês como todos aqui me querem. Elles de certo vêem em mim alguma cousa do teu espirito, mãe, para serem assim tão doceis com uma pobre rapariga. É á tua alma, á tua alma, que me acompanha, que elles obedecem a final. Continúa ao meu lado, mãe, e eu serei forte; não me abandones, e verás que não ha fundamentos para apprehensões. E ainda triste!—E beijava o retrato—E ainda!... e ainda... e ainda!...—beijava-o repetidas vezes.
Depois tentava a razão dissipar aquelas piedosas illusões:
—Estou louca!—pensava então Jenny—Pois como póde um retrato...
Aproximava-se mais da luz.
As illusões voltavam outra vez, como volta o enxame de abelhas que o vento afasta das flores.
—Não sei, não sei como isto é, não posso saber... mas esta expressão é mais triste do que a de hontem... De que procede esta tristeza?... A maneira por que me fallou do baile de hontem... O baile! ... acaso ... aquela mascara?... Mas que póde resultar d'alli?... Meu Deus! diria que ainda te pozeste mais triste! Deverei pois acreditar...
N'isto ouviu passos fóra da porta.
Quebrou-se o encanto! Como que se extinguiu toda a impressão do retrato para os sentidos, meio allucinados, da commovida... visionaria—chamar-lhe-hei assim?—Apressou-se em escondel-o.
A figura de Luiza, aquella mesma criada que já conhecemos, appareceu no limiar.
—Que é, Luiza?
—É a filha do snr. Manoel Quentino.
—Ah! chegou finalmente Cecilia? Que entre, Luiza, que entre. Nem sei para que a fez esperar—acudiu Jenny com vivacidade.
Era Cecilia uma das suas mais affeiçoadas amigas.