CECILIA
Passados momentos, entrava no quarto, ligeira como uma andorinha, risonha como uma creança, a filha de Manoel Quentino. Era a unica familia que o velho guarda-livros tinha no mundo.
Jenny estendeu-lhe affectuosamente a mão ... e «beijaram-se», pensará a leitora. Pois não beijaram, não, minha senhora; as inglezas poupam muito mais esse thesouro dos beijos, do que as mulheres dos outros paizes; um amigavel aperto de mãos, um sorriso, uma phrase affectuosa... e mais nada. Será para os fazer mais apreciados, quando concedidos?
Cecilia era um modelo da belleza portugueza, e portuense talvez, nas suas mais felizes realisações.
É costume entre nós, quando se quer exaltar, no conceito dos leitores, a belleza de uma mulher, classifical-a entre as hespanholas, entre as italianas, entre as allemãs, e entre as inglezas, mas nunca entre as nossas compatriotas, que soffrem, ha muitos annos, com sublime resignação de martyres, esta velha e flagrante injustiça.
Parece que o typo nacional é indigno de referencia, e que só quando d'elle aberra e, por um capricho da natureza, reveste a feição estrangeira, é que uma figura de mulher merece as fórmulas, mais ou menos sonoras e hyperbolicas, da nossa admiração.
É vulgar ouvir-se dizer:—«Como é bella! Ha n'aquelle todo vaporoso certo ar germanico!»—«Que mulher! Tem o salero de uma hespanhola!»—«Que magestade! que morbideza! É uma perfeita madonna italiana!»—«Que poetica gravidade! Dir-se-hia uma candida lady!» O que porém se não ouve, pelo menos o que eu ainda não ouvi, é: «—Que sympathica rapariga! É uma portugueza perfeita!»
A causa d'isto é o sermos nós uma nação pequena e pouco á moda, acanhada e bisonha n'esta grande e luzida sociedade europeia, onde por obsequio somos admittidos, dando-nos já por muito lisongeados, quando os estrangeiros se deixam, benevolamente, admirar por nós.
Falta-nos certo uso de sociedade, que ensina cada qual a occupar o seu logar. Quando não encarecemos exageradamente as cousas patrias, á maneira d'aquelle sujeito que vimos n'um dos grupos da Praça, caímos no excesso opposto e nem sequer fallamos d'ellas, como se nos corressemos da origem.
Bem que peze á vaidade nacional, é forçoso o fazer aqui, em familia, uma confissão:—Nós temos o defeito d'aquelles provincianos que, nos circulos da capital, suffocam envergonhados, como cousa de mau gosto, uns restos de amor da terra, que ainha os punge, e deitam-se a exaltar, com affectação altamente comica, os prazeres e commoções da vida das grandes cidades, que ainda mal gosaram e ainda mal saboreiam;—fallam dos theatros, dos bailes, da cantora da moda, do escandalo do dia, sem se atreverem a dizer uma palavra pelo menos das arvores, das paizagens, das tradições, dos costumes locaes, do conchego domestico da sua provincia, o que porventura os outros lhe escutariam com mais vontade; e no fim de tudo ficam mais ridiculamente provincianos, do que nunca.
Assim tambem os portuguezes, acanhados nos circulos da Europa, não ousam conferir diplomas de excellencia a cousa que lhes pertença; envergonham-se de fallar nas riquezas patrias, emquanto abrem a bôca, por convenção, a tanta insignificancia que, em todos os generos, a vaidade estrangeira apregôa como primores: levam o excesso da modestia, se é só modestia isso, até receiarem que as vistas dos estranhos averiguem do que lhes vae por casa, e agradecem, com effusões de sensibilidade, uma ou outra phrase de louvor, que, em momentos raros, elles lhes concedem.
Se ousamos fallar de Camões, ao mesmo tempo que de Tasso, de Dante e de Milton; se ousamos apregoar o vinho do Porto, junto com o de Xerez, Chateau-Laffite e Tokay, é porque lhes deram lá fóra o diploma de fidalguia; que por nós ... continuariamos, calados, a ler um e a beber o outro, sem bem conhecermos a preciosidade que liamos e que bebiamos, ou pelo menos correndo-nos de uma nos parecer sublime, e a outra deliciosa.
Ainda que se taxe um dos similes de menos delicado, é certo que o mesmo succede com as bellezas femininas; costumamo-nos ás exclamações á moda:—«Ah! as hespanholas!»—«Oh! as italianas!»—«Ai, as allemãs!» e julgariamos de mau gosto dizer em publico:—«As portuguezas!» até sem interjeição prévia a encarecer-lhes a valia.
E isto fazem-o até muitos, que nunca transpozeram as barreiras d'esta cidade, onde não abundam os typos d'essas varias bellezas exoticas.
Eu porém atrever-me-hei a arvorar a bandeira puritana n'esta campanha gloriosa.
De certo não serão os leitores que m'o levarão a mal.
Deus me defenda de querer, por forma alguma, ferir a fama tradicional de todas as já estudadas e classificadas bellezas, admittidas e exaltadas, como taes, no mundo inteiro; a minha tolerancia abrange todas; queria sómente que se abrisse tambem logar para as nossas patricias, que bem merecem essa distincção.
As portuguezas não formam typo especifico, dir-me-hão talvez; são uma variedade apenas de especie mais vasta. Sempre desejava que conhecessem Cecilia, para que depois me dissessem a qual dos typos femininos, consentidos e sanccionados, pertencia a amiga de Jenny.
Se houvesse uma fórmula unica para a belleza feminina, chamar bella a qualquer d'estas duas mulheres, agora reunidas diante do leitor, seria condemnar a outra; tão diversas, tão oppostas até, eram aquellas duas physionomias em tudo! Mas não succede assim; tem tantas maneiras de se realisar a belleza, tantos meios de excitar em nós, no mais intimo do nosso peito, essas mysteriosas vibrações que nos arrebatam, que seria loucura disputar primazias em casos assim. E isto é como no mais.
Pois por serem bellos os vergeis do Minho, perdem a belleza as leziras do Vouga, ou até as paizagens alpestres de Traz-os-Montes?
Cecilia não era loura nem trigueira, nem d'aquella côr pallida, que sonham os poetas e de que os medicos desconfiam; tingia-lhe o rosto, graciosamente oval, um colorido que, em linguagem artistica, julgo que nem tem ainda palavra creada.
Se porém, á falta de termos, sempre lhe quizessem chamar pallida, deviam acrescentar, que era de uma pallidez, através da qual se presentia o sangue cheio de vida, que ás vezes a transformava na diffusa côr de rosa de um rosto de creança; os cabellos que, por um ondado natural, se erguiam levemente no alto da fronte, vacillavam entre o negro e o castanho escuro; os olhos, sim, esses eram negros devéras, e,—qualidade bem rara em olhos!—de uma discrição impenetravel. Olhos discretos, quando de ordinario são elles os que primeiro atraiçôam e inutilisam a reserva dos labios! Olhos, que ousam fitar-vos sem deixar fugir um segredo, nem desviar-se, por desconfiarem de si proprios! Discretos, mas expressivos de sympathia e de familiar bondade! Não se imaginam os encantos de uns olhos assim! E não julguem que são por isso incapazes de eloquencia; anime-os um dia a confiança e o amor, e verão os raios offuscadores que despedem! Mas o que elles não fazem,—e bem hajam por isso—é andarem por ahi a desperdiçar eloquencia, como esses implacaveis falladores, que em toda a parte se occupam a declamar discursos. Na conformação habitual dos labios, no sorrir, no mover da cabeça, em todos os movimentos e gestos emfim, havia, em Cecilia, uma tão completa ausencia de arte, tanta naturalidade e franqueza, que a vista deixava-se ficar, com prazer suave e sem timidez, a contemplal-a.
Ha um meio de reconhecer o genero de belleza, a que pertencia Cecilia—genero que eu sustento ser o nacional:—quando, junto de uma mulher formosa, vos sentirdes á vontade, sem que a razão se vos perturbe, sem que por galanteria vos julgueis obrigados a lisonjas, sem que fermente em vós o tanto ou quanto de poesia, que encerram todos os corações; quando suavemente dominados pela branda influencia de um olhar sem requebros, podérdes sustentar com essa mulher uma conversa affectuosa, sincera, leal, como a sustentarieis com um amigo ou com uma irmã; quando, ao separar-vos d'ella, lhe apertardes cordialmente a mão, sem que nem a vossa nem a sua estremeçam ao encontrarem-se, e finalmente trouxerdes d'essa entrevista uma impressão agradavel, que mais vos acalente do que vos agite os sonhos, ficae certos de que encontrastes um dos typos de que fallo.
Aviso-vos porém que os não julgueis pouco perigosos, apreciando-os pela placidez d'estes primeiros effeitos; se levaes em conta de ventura a liberdade do coração, fugi-lhes emquanto é tempo; pois, continuando n'essa convivencia intima, natural, insinuante, correis o risco de insensivelmente vos deixardes prender, se um dia, ao tentar terminal-a, surprendeis-vos devéras apaixonados; pela dor que experimentaes, conheceis então que fundas raizes lançára já o affecto.
Eu por mim julgo mais irresistiveis as paixões que se geram assim; as que nascem rapidas, teem evolução rapida tambem, e muitas vezes apagam-se em pouco tempo.
Vendo n'isto de paixões uma especie de doenças da alma, como alguns querem, era possivel talvez estabelecer n'ellas divisão analoga á que, nas do corpo, admittem os medicos. Haveria assim paixões agudas e paixões chronicas; umas, como as doenças do mesmo nome, geradas por impressões subitas, rapidas na sua marcha, promptas na sua terminação; outras adquiridas insidiosamente, por influencias de todos os dias, e de que nem se suspeita mal, lavrando a occultas e revelando-se apenas, quando o terreno já é seu e a victoria certa.
Quaes d'ellas zombam mais da arte, devem sabel-o medicos e doentes.
Mas, voltando a Cecilia, o seu conversar, ao qual dava realce o timbre de voz, vibrante e sonoro, tinha uma vivacidade e animação, direi até uma eloquencia natural, que entretinha a ouvir-se; no decurso de qualquer conversação, era notavel a frequencia com que lhe passavam a voz e as feições por contínuas e successivas alternativas de tristeza e alegria; como alternam nas campinas a sombra e a claridade, quando atravessam rapidas o ar, as nuvens impellidas pelo norte.
Era assim que, referindo acontecimentos tristes, uma ou outra circumstancia d'elles desafiava-lhe um sorriso ou uma observação jocosa, e que, no meio da historia mais jovial, não lhe passava despercebido qualquer ligeiro vestigio de sentimento que ella tivesse, e de repente lhe desapparecia o riso dos labios e os olhos reflectiam uma generosa melancolia.
Um dia, por exemplo, contava ella a Jenny, e contava-o quasi a chorar, o infortunio de um pobre centenario, a quem seu pae soccorrera. O desgraçado velho vivia n'uma casa miseravel, e, abandonado de todos, ia succumbindo á fome, quando Manoel Quentino o disputou compassivo a morte tão tormentosa.
—Se visse o pobre homem!—dizia então Cecilia, com tremor de compaixão na voz—se o visse! Como elle nos recebia, chorando e rindo, como me pegava nas mãos para as beijar! Como erguia ao céo aquelles olhos, quasi cegos pela velhice e pela desgraça! Fazia pena! Tão trémulo, tão curvado!...—E, de repente, vindo-lhe aos labios um sorriso, que ella não reprimiu, acrescentou:—E então n'aquella idade e n'aquella miseria toda, o cuidado que o pobresinho tinha ainda com o rabicho, que usava na cabelleira! Coitado!
De outra vez contava, rindo, o episodio caricato de certo operario, seu vizinho, que voltára, uma noite, a casa em completo estado de embriaguez, e atordoára a rua inteira com expansões de extemporanea alacridade, altercando, cantando e tocando até altas horas. Tudo quanto até alli referira lhe merecera sorrisos, mas, n'um instante, cobriu-se-lhe o rosto de profunda tristeza, e suspirando, proseguiu, cingindo a mão de Jenny:
—Mas não quer saber? Quando este homem estava mais contente, vieram trazer-lhe um cão, que elle estimava muito e que n'aquella mesma noite haviam envenenado nas ruas. Parece-me que estou ainda a ver como elle ficou; esteve por muito tempo calado a olhar para o pobre animal e depois desatou a chorar e a abraçal-o, chamando-lhe seu amigo, seu companheiro, até...—acrescentou, sorrindo—até seu irmão. Mettia realmente dó. E aquella gente a rir cada vez mais! Era aquillo para rir? diga.
Justeza de observação, talento para apreciar todas as faces dos sentimentos e das acções humanas, poucas vezes os dá o estudo no grau, em que ella naturalmente os possuia.
Não se podia pois, repetimos, dizer Cecilia apaixonada como uma italiana, pensativa como uma allemã, séria como uma ingleza, languida como uma hespanhola, coquette como uma franceza, porque de nenhum d'esses typos se aproximava; era verdadeiramente portugueza, e, para caracterisar estes, só conheço uma phrase, de que talvez o leitor se vá rir, mas pela qual eu tenho inexplicavel predilecção. Associa-lhe o meu pensamento tal conjuncto de qualidades physicas e moraes, que sempre que a ouço applicar, ella só suppre para mim uma longa descripção, e se for a analysal-a não lhe encontro de certo a comprehensão, que instinctivamente lhe attribuo. Se ao leitor succeder o mesmo, conceberá o typo de Cecilia depois de eu a pronunciar.
Cecilia era o que naturalmente a todos occorre chamar—uma pobre rapariga.—N'esta expressão nada ha que faça suppôr a belleza da pessoa a quem se applica, bem sei; nem em rigor se refere a qualidade alguma moral.
É certo; porisso não analyso. Succede porém que, quando de qualquer mulher, que não conheço, ouço dizer que é—uma pobre rapariga—, não sei por que a imagino bella, bella de belleza nacional e com um coração... como o coração de Cecilia.
Aqui temos a ingleza Jenny, que não poderia receiar confrontos com a sua amiga, nem em gentileza nem em bondade; mas, não sei porquê, lembrou-me chamar a Jenny anjo e fada, e hesitaria em definil-a, como defino Cecilia.
Accusar-me-hão de dar á filha de Manoel Quentino uma feição demasiadamente burgueza, com a phrase burgueza, pela qual a caracteriso. Folgarei de que seja merecida a critica, porque...—vá aqui mais outra confissão, em que revelarei a minha coragem—, eu sympathiso mais com os typos burguezes do que com os typos aristocraticos,—e em mulheres sobretudo. Rodeia-se de mais poesia aos meus olhos a rapariga burgueza, e sem aspirações a deixar de sel-o, quando a trabalhar á luz do candieiro, do que a elegante dos salões, gastando a imaginação em problemas de toucador; a costura, a simples, a modesta costura, util e abençoada applicação da agulha feminina, agrada-me bem mais do que as bonitas futilidades do, reputado mais nobre, trabalho de bastidor; a mulher que a si propria se penteia, acho-a mais merecedora da contemplação do artista, do que a indolente que, reclinada n'uma poltrona e folheando o jornal de modas, entrega a cabeça ás mãos de uma criada ou do cabelleireiro. Esta, a ser copiada, basta-lhe por téla ... um leque ou uma tampa de cartonagem.
Sim, Cecilia não tinha nada do typo aristocratico; n'isso era ella ainda genuinamente do Porto, cidade cujo principal titulo de gloria é o ter, em épocas em que a nobreza era tudo, previsto que podia e devia prescindir d'ella, para se engrandecer.