VIDA PORTUENSE

Manoel Quentino habitava em uma rua proxima do extremo occidental da cidade, afastada assim do maior bulicio d'ella—bulicio que, desde as tres horas da tarde até ás seis da manhã, era para o guarda-livros insupportavel.

Os gostos de Manoel Quentino tinham de facto variações diurnas tão regulares, como as de um instrumento meteorologico.

Nas horas de vida commercial impacientava-o o socego do bairro em que vivia; ao romper do sol por detraz dos outeiros, que elle avistava ao longe das janellas do seu quarto, tomava-o a febre do trabalho; o cantar matutino das aves por entre os arbustos do quintal, a não ser aos domingos e dias santos, não o tentava a ficar a ouvil-as; parecia que mais bellezas de harmonia achava nos gritos dos vendilhões, que enchem as ruas da cidade baixa. Pelo contrario, ao declinar da tarde, entrava-lhe no coração a nostalgia domestica; começava a odiar o escriptorio, a rua dos Inglezes, o borborinho das praças, e a suspirar, como o expatriado, pela alegria do regresso; extasiava-se em ver de casa descer o astro do dia, e sumir-se no oceano; espectaculo magnifico, ao qual da varanda da sala do jantar assistia com o prazer do espectador que de um camarote de frente presenceia fascinado a vista final de gloria de um drama sacro.

O arranjo interior da pequena casa de Manoel Quentino exprimia certo bem-estar, certo conforto, que principiava a querer transpôr os limites que o separavam do luxo.

Permittiam-o os ordenados que Manoel Quentino, como primeiro guarda-livros, recebia das mãos de Mr. Richard, mãos nunca tão apertadas, que não deixassem saír algumas mealhas mais do que o ajustado.

Preciso é porém confessar que o espirito economico e a intelligente administração de Cecilia concorriam em grande parte para este resultado. Pelas suas mãos, de bem pequenas afeitas ao tracto domestico, tão escrupulosamente regulados andavam os capitaes, que não só satisfaziam ao necessario, mas derivavam-se ainda para o que se póde já dizer superfluo.

Escusado é quasi acrescentar que Cecilia era o idolo de Manoel Quentino. N'ella se concentravam todas as affeições do velho. Tinha apenas seis annos a filha, quando lh'a deixára confiada a esposa, que elle chorava ainda; emquanto cercava a innocente de constante vigilancia e de cuidados assiduos que, por inspirações do coração, soubera amenisar de carinhos e de meiguices verdadeiramente maternaes, robusteceu-se-lhe aquelle amor a ponto de referir d'ahi por diante a elle todos os outros sentimentos, que o moviam.

Nunca lhe pareceu demasiada qualquer despeza feita com Cecilia.

Empenhou-se em dar-lhe uma educação esmerada, e conseguiu-o.

Exultava de prazer, vendo crescer em vida, em intelligencia, em bondade, aquella bonita creança, junto de cujo berço velára noites e noites, scismando no futuro d'ella.

Pouco a pouco deixára-se possuir de um respeito, de uma veneração pela filha, que tinham seus vislumbres de idolatria.

A primeira madeixa loura cortada aos cabellos de Cecilia, ainda menina, trazia-a o velho sempre comsigo, como talisman milagroso; o menor bilhete, dos que ella lhe escrevia para o escriptorio, a respeito de qualquer negocio domestico, archivava-o, como reliquia, que seria profanação deixar perder.

Tinha puerilidades Manoel Quentino!... puerilidades que só farão rir aos poucos, que não as tenham tido iguaes. Movia-o, quasi até ás lagrimas, qualquer phrase affectuosa d'aquellas insignificantes correspondencias.

Como elle era feliz lendo, no alto do bilhete, por exemplo: «Meu bom pae» ou «meu querido pae», e no fim d'elle—«sua extremosa filha» ou «sua filha obediente».

Por irresistivel impulso aproximava dos labios aquellas palavras e beijava-as com fervor.

Quando, no meio do trabalho quotidiano, que elle, como vimos, executava com uma fleugma e regularidade, que deviam fazer suppôl-o homem pouco sujeito a expansões, a ideia de Cecilia lhe passava pelo espirito, tinha movimentos de creança.

Pousava a penna, interrompia a conta, correspondencia, ou o que quer que fosse em que estivesse occupado, para esfregar as mãos de contente, como o rapaz de escola ao acudir-lhe de subito a lembrança de um feriado proximo.

Ás vezes não resistia a dar dois passeios no escriptorio, trauteando, e a vir á janella, com a penna na orelha, a espreitar, por entre os vidros, a altura do sol.

Ao voltar a casa, Manoel Quentino não se distrahia pelas ruas; procurava as travessas e atalhos mais solitarios, para evitar importunos; tardava-lhe a conversa da filha.

Quando na presença d'elle se fallava em alguma epidemia, que principiasse a ameaçar a cidade, já o bom homem não podia dominar um terror intenso; revelava-se-lhe no semblante em caracteres bem evidentes e havia-lhe conquistado a reputação de pusilanime, entre os seus collegas mais novos; já até se divertiam, mal suspeitavam com que crueldade, a despertar frequentes vezes estes receios pânicos.

A ideia do risco pessoal não era porém a que o fazia empallidecer; um só receio, uma só lembrança o torturava então, era a do perigo que podia correr a vida de Cecilia.

Não se concebe em que especie de loucura o lançou uma doença da filha. O serviço do escriptorio foi pela primeira vez perturbado na sua marcha regular, e a correspondencia, em cuja nitidez caprichava Manoel Quentino, não raro lhe saía das mãos toda manchada de lagrimas. No dia em que o medico lhe deu, sorrindo, a certeza de que Cecilia estava salva, Manoel Quentino não teve mão em si, que se não atirasse, a rir e a chorar, aos braços d'elle, chamando-lhe seu bemfeitor e beijando-o com paixão.

Esta crise exacerbou aquelle já extremoso amor de pae.

Não havia sabbado em que Manoel Quentino, parco em excesso talvez comsigo, e que por isso grangeára entre os amigos a immerecida reputação de avarento, entrasse em casa com as mãos vazias, sem um mimo, uma lembrança para Cecilia, arrostando com as meigas exprobrações d'esta e com seus mal simulados arrufos.

Quantas vezes elle fazia, como costuma dizer-se, vista grossa para o azulado ameaçador dos cotovêlos e das costuras do casaco, para as quebras lastimosas do seu chapéo de seda, só com o fim de poupar algumas libras e comprar um chaile, uma marqueza, um vestido novo a Cecilia!

Só depois de repetidas insinuações, pedidos, e até affectuosas ameaças da parte da filha, só depois d'ella haver esgotado os mil recursos da sua eloquencia, é que Manoel Quentino se decidia emfim a olhar por si e a attender ás necessidades proprias.

O meio mais poderoso a que, para isso, Cecilia recorria era pedir-lhe que a acompanhasse a um logar publico qualquer. Então o guarda-livros, que não aprendera a recusar-lhe nada, promettia, scismava, coçava a orelha, examinava o fato, torcia o nariz, resmungava e, no dia ajustado, elle ahi se apresentava de uniforme novo para servir de cavalheiro á filha.

A ideia de a fazer passar por uma vexação realisára o milagre e vencera a sua modesta repugnancia.

Cecilia sabia-se objecto d'este culto, e retribuia-lh'o com attenções e carinhos, que deixavam comprehender ao pae o que devia ser a felicidade suprema.

O leitor, costumado a passar a noite no theatro, nos bailes ou nas assembleias, mal póde fazer ideia do prazer intimo com que Manoel Quentino via escurecer a tarde e scintillarem, ainda pallidas, as primeiras estrellas no céo.

Preparava-se-lhe um d'esses gôsos placidos, que são mal concebidos por quem d'elles anda arredado em habitos de vida mais turbulenta; mas aos quaes não ha talvez caracter ou temperamento humano, que não corra o perigo de habituar-se, se por algum tempo lhes experimentar as doçuras.

É mais facil, e mais vezes se realisa, a transição da vida errante, tumultuosa e agitada para estes monótonos prazeres do viver domestico, do que a inversa; como se o pendor natural da indole do homem o chamasse mais para alli.

Os serões de Manoel Quentino, aquelles seus tão apreciados serões, passavam-se todos com uniformidade tal, que, por um, se ficava, com raras excepções, a conhecel-os todos.

O fim da tarde e a noite d'aquelle dia, em que se passou a parte das scenas, que havemos descripto até aqui, podem offerecer-nos uma perfeita amostra d'elles.

Manoel Quentino, depois de jantar, viera assistir, da varanda do occidente, ao espectaculo do crepusculo e regalar a vista por sobre as quintas, jardins, casas e alamedas do vasto panorama que o mar cingia de zona prateada.

A tarde estava de chuva, mas o vento de sudoeste conseguira romper o extenso manto, que cobria o firmamento, e mostrando um pouco do azul da abobada celeste, deixava que o sol no occaso dourasse as ultimas nuvens, que d'aquelle lado limitavam o horizonte.

As occupações domesticas de Cecilia só de quando em quando lhe permittiam assomar tambem á varanda, e recostando então o braço ao espaldar da cadeira do pae, fazia notar a este as particularidades de belleza d'aquelle vasto quadro, que o espirito pouco analytico do velho sómente apreciava em globo.

—Repare n'aquella nuvem côr de rosa. Não parece mesmo uma ave com as azas abertas?—perguntava Cecilia, designando uma das taes nuvens, que o sol tingia os reflexos afogueados.

—Uma ave!—dizia Manoel Quentino, fitando o objecto designado—Então como te parece uma ave aquillo, menina?

—Pois não acha? Olhe; vê alli a cabeça, depois uma aza, depois a outra? Olhe, agora inda parece mais; até a cauda se conhece bem...

—Eu... se queres que te falle verdade...—continuava Manoel Quentino, sem perceber ainda a similhança.

—Olhem que pae este! Pois devéras não vê? Para onde é que está a olhar?

E Cecilia vinha collocar a sua bonita cabeça na posição da de Manoel Quentino, e tão perto, que o pae não perdia o ensejo de lh'a beijar na fronte.

—Ora diga, pois não lhe parece uma ave aquillo?—insistia Cecilia.

—Eu... Ah! agora sim!—exclamou o velho, tendo a final percebido a similhança—Agora, sim, senhora! Lá está, e que grande bico que ella tem! Eh! eh! eh!... Ora o diacho!

—A menina faz favor de chegar aqui.

Era a criada Antonia, que reclamava o conselho de Cecilia em alguma difficuldade de administração domestica.

Antonia era um tão genuino typo de criada de servir, que dispensa a descripção.

Cecilia retirou-se da varanda. Manoel Quentino permaneceu com os olhos fitos no sitio, para onde lh'os dirigira a filha, até que a nuvem côr de rosa de todo se descoloriu e desformou.

Então baixou-os para a terra e scismava... na sua felicidade.

Passados instantes, Cecilia aproximou-se pé ante pé, e, sem ser presentida, veio por detraz d'elle e tapou-lhe os olhos com as mãos, perguntando:

—Adivinha quem eu sou?

—Ora tem muito que adivinhar!—respondeu Manoel Quentino, gracejando—pelas mãos se conhece logo. É a aguadeira.

—Ora vamos!—exclamou Cecilia, rindo—Mas para onde é que estava a olhar assim entretido, que nem me viu?

—Estava a ver umas obras, que além se andam a fazer. Aquillo, se me não engano, é na casa do conselheiro Arantes.

—Ora se ha de olhar para acolá, para aquellas arvores, põe-se a reparar n'essas casarias! Não lhe appetecia estar alli, debaixo d'aquelles carvalhos?

—Não é nenhum impossivel; se quizeres...

—Então promette levar-me lá?

—Prometto tudo o que tu quizeres.

—Veja o que diz! Depois, se lhe pedir alguma cousa difficil!

—Eu já estou costumado ás tuas exigencias.

—Sim? pois eu tenho uma cousa a pedir-lhe.

—Ha de ser grande.

—E é, promette fazel-a?

—Dize lá.

—Mas promette?

—Mas dize primeiro.

—Não, senhor, prometta antes.

—Bem sabes que te não digo que não.

—Mas então que dúvida tem em prometter?

—Está bom, prometto.

—Dá-me a sua palavra?

—Dou a minha palavra—disse Manoel Quentino, rindo.

—Pois o que eu queria pedir-lhe—disse Cecilia, passando os dedos por entre os cabellos brancos do pae—era que comprasse outro guarda-chuva, que, a fallar verdade, aquelle sempre está!...

—Ora! cuidei que era outra cousa!

—Não importa; mas prometteu.

—Pois sim; mas escuta...

—Ágora escuto, que tenho mais que fazer.

E retirava-se apressada para não ouvir, dizendo:

—Não quero saber, prometteu!

D'ahi a pouco era o pae que a chamava.

—Cecilia, ó Cecilia! anda depressa ver um vapor no mar.

Cecilia correu á varanda.

—Vês?

—Agora estou como o pae ha pouco com a nuvem.

—Pois não vês?! Olha; aqui mesmo ao direito d'aquella chaminé; entre aquella entre-aberta de pinheiros.

—Bem vejo. Entra ou sáe?

—Quer entrar; mas com o rio assim! Aquillo é vapor inglez. Ora traze-me o oculo.

—Agora é quasi noite e não póde distinguir nada. E demais está frio, não será mau fechar a janella e vir cá para baixo. Eu tenho tambem de trabalhar e preciso de accender luz mais cêdo.

—Pois então vamos.

Principiava então ainda mais agradavel passa-tempo para o honesto guarda-livros.

Desciam para a sala contigua ao quarto de Manoel Quentino; sala modestamente mobilada, mas em cada particularidade da qual se revelava o bom gosto de Cecilia. Se alli dentro se não encontrava nenhum movel de alto preço, nenhum objecto de elegancia luxuosa, não havia tambem as ridiculas demonstrações de um gosto grosseiro, amontoadas sem ordem, adquiridas sem escolha.

Descobria-se em todo aquelle recinto um asseio e conchego, que fazia bem contemplar.

Manoel Quentino sentava-se junto da mesa do trabalho, em uma cadeira de braços, verdadeiramente patriarchal; Cecilia trazia luz, fechava as janellas, pousava a cesta da costura e vinha sentar-se ao lado do pae.

Manoel Quentino contava alguma cousa do occorrido no escriptorio; Cecilia correspondia-lhe, referindo o que, na ausencia de Manoel Quentino, succedera em casa.

N'aquella noite o pae fallou muito de Carlos, das suas travessuras, do seu estouvamento, dos enganos que n'aquella manhã lhe fizera ter na escripta, do episodio da agua-ardente, dos sentimentos de Mr. Richard para com o filho, e sobre tudo do bom coração do rapaz.

Cecilia escutava-o com attenção, sem nunca o interromper com perguntas, mas tambem sem nunca levantar os olhos da costura, para os fitar no pae.

N'isto retiniu a campainha do portal.

—Ahi está o homem—disse Manoel Quentino.

—Antonia, vá alumiar—bradou Cecilia.

Ouviu-se Antonia descer pesadamente as escadas, depois algumas palavras trocadas no portal, os passos de duas pessoas subindo, e o homem, que Manoel Quentino parecia esperar, entrava para a sala, tirando o chapéo e cumprimentando os circumstantes com a invariavel fórmula:

—Muito boas noites, snr. Manoel Quentino; muito boas noites, menina.

Este homem era um vizinho e amigo de Manoel Quentino, que, havia muito tempo, ganhára o habito de vir todas as noites alli ouvir ler os jornaes, tomar chá e sustentar com o guarda-livros o mais soporifero e descosido dialogo que se póde conceber, retirando-se emfim, ao bater das nove horas, depois de agasalhar o pescoço com uma manta de lã, a qual levava sempre de prevenção para toda a parte. Chamava-se José Fortunato; fora em tempo negociante de cereaes; n'esta época era proprietario de predios velhos, possuidor de papeis de credito, homem de habitos pacificos e ideias conservadoras, modesto no vestir, discreto no fallar, fazendo ao jantar o seu forte no cozido, e, entre as maiores extravagancias da sua vida actual, contando a de comprar, de quando em quando, uma lagosta para comer de salada.

Era d'estes sujeitos, fieis observadores das leis commerciaes, e rigorosos nas suas contas, a ponto de poderem parodiar uma das petições do Padre-nosso, dizendo:—Fazei que nos paguem, Senhor, as nossas dividas, assim como nós pagamos aos nossos credores.

Esta quotidiana visita a Manoel Quentino tornára-se já para o snr. Fortunato uma necessidade, e de igual fórma a presença e o conversar do ex-negociante de cereaes, com quanto pouco ferteis em distracções, não eram menos precisas ao pae de Cecilia, que estava n'aquella idade, em que os habitos imperam com mais força, e menos se amoldam os genios ás exigencias de habitos novos.

Passados os cumprimentos de tarifa, José Fortunato tomava assento ao lado de Manoel Quentino, e principiava entre elles um dialogo, que, com as variantes que o leitor prevê, era d'este teor a fórma:

—Muito frio, snr. Fortunato—dizia um.

—E muita chuva—respondia o outro, ageitando-se.—Esteve hoje lá em baixo?

Pergunta ociosa.

—Estive.

—Então que se diz de novo?

—Nada.

—O rio vae muito cheio?

—Parece que começa a abaixar um pouco.

—Sempre está um tempo, santo nome de Deus!

—E que desgraças tem já causado!

—Que eu dou-me melhor com o frio—acrescentava d'ahi a instantes Manoel Quentino.

—Eu lhe digo, eu tambem, para que digamos, não passo mal no inverno; tenho mais appetite; mas esta catarrhal...

Tossia, para exemplo.

Todos os dias diziam isto um ao outro.

—Para as terras é que isto vae mal.

—Já tudo está por a manta de Judas.

Phrase da linguagem popular, que quer dizer, não sei por quê, que tudo está caro.

—Pois a carne?!

—Se deixam ir todo o gado para o estrangeiro! Devia fazer-se uma lei, que prohibisse esse desafôro.

Alvitre economico, que ainda não perdeu de moda.

—Isto está o diacho!

Este apophthegma fechava quasi sempre e com chave de ouro o dialogo. Calaram-se os dois.

Cecilia, que esperava por este silencio e já por habito sabia o que significava, ia então buscar as folhas do dia e preparava-se para ler; os dois velhos dispunham-se a escutar.

Qualquer d'elles experimentava um prazer indefinivel em ouvir ler Cecilia.

Lia com tanta intelligencia e graça, que o snr. José Fortunato confessava, que muitas vezes, ouvindo-a, entendia cousas, em que debalde tentára penetrar, a grandes esforços de leitura propria.

Era uma scena curiosa aquella.

A compaixão paternal só perdoava a Cecilia a secção dos annuncios; o mais tudo lhes lia a condescendente rapariga; o artigo de fundo, com resignação; com intrepidez, as noticias estrangeiras; com curiosidade, as locaes; o folhetim, com mais vontade; e tudo sem o menor constrangimento, que podesse aguar aquelle prazer dos seus ouvintes.

O genio de Cecilia nem sempre lhe permittia proceder, sem commentarios, áquella leitura toda. A apologia exaltada do governo interrompia-a ella ás vezes com um áparte, capaz de produzir crise ministerial, se fosse escutado nas camaras; uma catilinaria, acerbamente opposicionista, desafiava-lhe reflexões, que neutralisavam o contagio anti-governamental que principiava a fazer das suas nas profundas convicções de ordem do snr. José Fortunato.

O leitor deve estar certo de que, por aquelle tempo, monopolisavam a curiosidade publica as variadas peripecias da guerra da Crimeia.

Cecilia era obrigada a ler aquellas descripções de carnificina, que todos os dias enchiam as columnas dos periodicos; isto o fazia ella sempre com a fronte contrahida de desgosto.

Manoel Quentino era pelos alliados, José Fortunato esposava a causa dos russos—um e outro sem saberem bem porquê. Cecilia era só pelos mortos e feridos.

Um dia parou no meio da descripção de um dos mais sanguinolentos encontros dos dois exercitos, para interpellar o pae sobre a causa d'esta guerra implacavel.

A pergunta embaraçou consideravelmente Manoel Quentino, que olhou para o snr. José Fortunato, como a ver se lhe vinha auxilio d'alli; o snr. Fortunato o mais que pôde dizer foi:—«Que a guerra era lá por causa de umas cousas».

Cecilia tambem não exigiu saber mais.

—«Os russos...—leu ella n'aquelle serão—fazem fogo durante a noite sobre o campo dos alliados; estes absteem-se de responder.»

—Teem mêdo—commentou logo o snr. José Fortunato com um sorriso.

—Isso é plano!—acudia Manoel Quentino, com ares de quem entrava no mysterio.

—«Os atiradores alliados respondem porém de dia com proveito»—continuava a ler Cecilia.

—Então? era ou não era plano? Eu logo vi—exclamou Manoel Quentino, exultando.

—Balas perdidas—replicava o outro, encolhendo os hombros com desdem.

—«Os soldados—proseguia Cecilia—pedem com enthusiasmo ao general em chefe, que dê a batalha»—e, acabando de ler isto, fez um gesto de aversão.

—Pois vão para lá!—respondia o snr. José Fortunato, como homem que conhecia a preceito os recursos de defeza da praça.

—«Em Sebastopol ha duas mil bôcas de fogo»—lia ainda Cecilia.

José Fortunato olhou para o seu amigo, com gesto provocador e triumphante; parecia que o convidava a atacar, propondo-se elle a defender com aquelles auxiliares.

Em seguida Cecilia leu que Vassif-Pachá acabava de tomar o commando do exercito da Asia.

Foi a vez de Manoel Quentino pagar o gesto do outro, como se depositasse grande confiança no Vassif e nas operações campaes do exercito da Asia. Mas o gosto de triumpho foi maior ainda quando ouviu que, a 30 de janeiro, partira para a Crimeia, Ulrich, que elle não sabia quem era, com a guarda imperial franceza; José Fortunato só teve, a compensar-lhe o receio d'esta acommettida, a noticia de que estavam seis mil russos em Pruth.

As noticias locaes eram o terreno neutro, onde caminhavam a par, e sem conflicto, as curiosidades do auditorio.

Uma cousa não podia Cecilia perdoar aos localistas, era que tratassem levianamente certos assumptos tristes: a prisão de um pobre, uma desordem domestica, uma tentativa de suicidio, por exemplo. Impacientava-se com isto, e formulava um voto de censura, que Manoel Quentino e José Fortunato apoiavam.

O noticiario vinha então abundante de descripções de desastres, causados pela cheia do Douro.

Era com consternação que Cecilia lia a narração de tantas miserias. Commoveu-a sobre tudo um facto verdadeiramente tragico, do qual ainda haverá talvez no Porto quem conserve memoria. O irmão de um piloto de um dos navios que a corrente arrebatára, depois de tentar em vão salvar o irmão em perigo, perdeu a razão, vendo-o succumbir; e esta dupla catastrophe feriu de morte o velho pae de ambos. Manoel Quentino, que tinha razões para saber o que era o amor de pae, limpou uma lagrima a occultas. José Fortunato, com ser boa creatura, tinha, em circumstancias assim, certas observações sêccas, de fazerem perder a paciencia a um santo.

Ouvindo ler aquillo, disse:

—Ora! Isso é historia! Os gazetilheiros ás vezes...

—Historia! Ó snr. Fortunato, por quem é!—exclamou Cecilia impaciente—Lembre-se de que é um irmão a querer salvar um irmão, e a vel-o morrer; de que é um pae que perde dois filhos; não acha ainda razão de mais para a morte ou para a loucura?

—Pois então o outro que não fosse metter-se ao perigo; devia lembrar-se...

—Ora devia lembrar-se!... quem se lembra de nada n'aquelles momentos? O snr. Fortunato tem cousas!

Fortunato já estava arrependido do que dissera.

—Com menos motivos—acudiu Manoel Quentino—se arriscou ha tempos na Foz o Carlitos, lá o filho do meu patrão. Virou-se no meio do rio um pequeno barco valboeiro, que ía governado por duas creanças, uma das quaes nem sabia nadar; e elle, que andava ás gaivotas com outros inglezes—que é o seu gosto—não esperou mais nada e zás... mergulhou como um peixe e salvou a creança. Depois continuou a caçar, com a roupa molhada no corpo, inda por muito tempo, em termos de ganhar qualquer doença.

Cecilia estava tão entretida a examinar não sei o quê, que vinha no periodico, tão perto tinha os olhos das lettras, que julgo nem dava attenção ao episodio, narrado por Manoel Quentino.

É verdade que, assim que o snr. José Fortunato, depois de ouvil-o, disse, com os seus modos sêccos:—«Estroinices», Cecilia levantou a cabeça com impeto e fitou-o córando e com uma expressão, pouco lisongeira para o velho.

Eu não sei bem explicar este movimento em uma pessoa distrahida, como ella estava, movimento, que aliás não teve consequencias, pois, voltando á posição anterior, passou a ler o folhetim.

Esta parte ouvia-a Manoel Quentino dormitando. Não lhe levem isto a mal os folhetinistas. José Fortunato, pelo contrario, ouvia-a com ardor; a maneira de ler de Cecilia inoculára-lhe o gosto dos romances. Tomava agora pelas peripecias um calor exagerado. Para elle era ponto de fé que tudo aquillo acontecera, e que tinham vivido, ou viviam ainda, os personagens, entre quem se travava a acção. Censurava por isso com a mesma violencia, e louvava com a mesma satisfação esses heroes phantasiados, como se fossem membros reaes da sociedade.

Lido o folhetim, Cecilia passava o jornal ao snr. Fortunato, e ia tratar do chá. Fortunato lia para si os annuncios.

Manoel Quentino passava então pelo somno.

Depois travava-se entre os dois um dialogo, todo cortado de bocejos contagiosos;—os assumptos eram para estes effeitos. Eis o programma d'esta noite:

Primeira parte:—Fortunato principia por dizer—«Pois é verdade.»—Replica-lhe Manoel Quentino—que a vida estava para elle.—«Queixe-se, que tem de quê»—diz o outro—«E não tenho pouco»—responde Manoel Quentino. Dois bocejos de ambos os lados, e pausa.

Segunda parte:—Manoel Quentino queixa-se de umas dores de cabeça.—Fortunato attribue-as ao tempo e esfrega os olhos. Manoel Quentino inclina-se a que seja antes do estomago. O outro aconselha-lhe que não use de café ao almoço. Bocejos reciprocos.

Terceira parte:—O snr. Fortunato, olhando para o tecto, nota que a sala tem diminuto pé direito. Manoel Quentino responde que, para a largura, é o bastante. O outro diz algumas palavras sobre as vantagens dos estuques. Manoel Quentino concorda e procura uma transição para fallar contra os senhorios; Fortunato responde-lhe com uma diatribe contra os caseiros. Reproduz-se um bocejo em Manoel Quentino, que se transmitte ao outro.

Quarta parte:—Fortunato diz que está a expirar o carnaval. Manoel Quentino replica que lhe não deixa saudades. Fortunato faz igual declaração. Manoel Quentino vê com maus olhos a chegada da quaresma, por causa das confissões. Discute-se quaes os confessores mais passa-culpas. Manoel Quentino lembra-se de perguntar quem inventaria isto de confissões. Fortunato fal-as remontar ao tempo dos romanos, supremo grau de vetustez, e d'elle conhecido.

D'esta vez os bocejos ficaram em meio, graças á entrada de Cecilia e de Antonia com o taboleiro do chá.

Era notavel a transformação, operada em Fortunato. Alegrava-o o aspecto das tostas e do leite. Então que querem? Não era que o homem precisasse d'aquillo; mas emfim todo aquelle apparato bulia-lhe com a sensibilidade gustativa e, por os mysteriosos laços do physico e do moral, lá se lhe ia entender com a alma por fim.

Esta satisfação interior desentranhava-se em amabilidades para com a Hebe domestica d'aquella ambrozia—a snr.ª Antonia.

—Ai, snr.ª Antonia—dizia elle—assim é que é; cada vez mais nova.

—Não me diga isso, snr. Fortunato; logo eu, que estou acabada.

—Acabada! Ainda mal principiou...

Eu não sei se era intenção do snr. Fortunato terminar aqui a oração, cujo sentido fica um tanto obscuro. E não o sei, porque n'este ponto Cecilia interrompeu-o, dizendo-lhe:

—Faz favor de ver se está bom do assucar, snr. Fortunato.

—Excellente, menina; mas faz-me favor de mais uma colherinha. Assim, muito bem; mais uma agora e mais nada... assim... agora mais não. Está muito bem.

Depois de cada um tomar a sua posição respectiva, o snr. Fortunato principiou a fallar, misturando na bôca as palavras com chá, com leite, e com tostas e bolos.

—Pois, menina, eu estou morto agora por ver se o tal meliante escapa da prisão.

—Pois quem foi preso?—perguntou Manoel Quentino, que, tendo estado a dormir, não sabia que o seu amigo se referia ao romance, que vinha na folha.

—Então não ouviu?—disse o snr. Fortunato, engulindo um bolo—Ella foi bem pilhada, isso lá foi. Porque o homem, pelos modos, não sabia que o desconhecido era o pae da rapariga, e tanto que elle ficou espantado quando o outro lhe appareceu, vestido de preto, e lhe disse...—Aqui o snr. Fortunato engrossou a voz.—«Eu sou a ultima das tuas victimas!»—E o filho então é que veio a saber d'isto: sim, porque até alli não sabia nada. Veio então a saber que a irmã do amigo do commendador é que tinha dado o dinheiro, que elles entregaram á tal viuva do cunhado do escrivão.

Manoel Quentino mexia machinalmente o chá, olhando boquiaberto para o amigo, sem que percebesse uma só palavra, apesar do snr. Fortunato gesticular, voltado para elle.

—Que diacho de embrulhada é essa? Eu se o entendo!

—Então não leu?—teimava o outro—Elles tinham combinado que, logo que partisse o navio, o rapaz fosse accusado do roubo feito ao commendador; e para isso mandaram dizer aos tios do defunto que as joias foram encontradas na caixa do escudeiro do desconhecido, mas...

—Mas quem demonio é essa gente toda? Que mexerofada de cousas!—exclamou Manoel Quentino, devéras impaciente.

—Então não ouviu?—insistiu o snr. Fortunato, cuja natural difficuldade de expressão se exacerbava ao expôr as enredadas aventuras de um romance francez.

Cecilia, que ao principio não attentára no dialogo comico, que se estava trocando entre os velhos, não pôde deixar de rir com vontade, ao dar por elle.

—Mas onde aconteceu isso tudo, homem?—perguntava Manoel Quentino.

—Em Paris. Pois não...

—O pae não vê que o snr. Fortunato está a fallar do romance?

—Ah! isso sim.

—Pois que cuidava?

—Eu sei lá o que cuidava. Eu cá de romances não entendo. E agora por isso lembra-me que aquelle endiabrado rapaz, o Carlitos, teimava que me havia de emprestar lá uns romances... Eh! eh! Tem diabo o rapaz.

—Tambem está um estroina!—disse o snr. Fortunato, que era dos que tinham Carlos na conta de homem perigoso.

—Mas deixe lá, que é uma boa alma!—respondeu Manoel Quentino—Ninguem lhe póde querer mal. É capaz de tirar a camisa do corpo para soccorrer um pobre. Ahi está que uma vez viram-o, era ainda dia claro, entrar na cidade, trazendo o cavallo á arreata e na sella vinha uma pobre velha, que elle encontrou na estrada com um pé desmanchado; outro que fosse... Ó Cecilia, então? onde tens tu o sentido, que nem reparas que alli o snr. Fortunato tem ha tanto tempo a chicara vazia?

—Ai, perdão—disse Cecilia, córando pela distracção em que caíra.

Não sei bem por que isto a fez córar assim; mas o facto deu-se.

O snr. Fortunato, que havia muito tossia e suspirava com o fim de chamar para si, e para a chicara, as attenções, disse por delicadeza:

—Não tinha pressa.

Manoel Quentino continuou tecendo louvores a Carlos.

—Mas emquanto á tal historia da mulher—dizia Fortunato, recebendo de Cecilia a outra chavena—isso tambem foi parlapatice no rapaz, pois...

—Então; faz favor de ver se quer mais assucar—disse Cecilia, com um certo modo desabrido, que eu tambem não sei explicar, e que contrastava com a doçura que lhe era habitual.

O snr. Fortunato notou-o.

—Está muito bem, menina—disse elle.—Faz-me o favor de mais uma colherinha. Está muito bem.

—Menos isso, snr. Fortunato—continuou Manoel Quentino.—Bem se vê que não conhece o Carlitos. De imposturas é que elle nunca foi. Já em creança...

—Meu pae, sirva-se antes d'estes bolos—disse Cecilia de modo tão affectuoso, que alvoroçou a sensibilidade do velho.

—Deixa estar, filha, que eu cá me vou servindo.

—Pois sim—insistia o snr. Fortunato—mas que elle não é lá de muitos bons costumes, isso é que é verdade.

—Antonia, sirva aqui o snr. Fortunato—disse Cecilia sêccamente, ordem que, por excepcional, surprendeu a todos.

Tambem não sei bem explicar a razão d'esta ordem.

—Tudo isso não passa de rapaziada—proseguiu Manoel Quentino.—Mas o que se chama fundo, boa alma, isso tem.

—Olhe, snr. Manoel Quentino, homem que não toma rumo de vida...

—Tambem ha muitas más almas á testa de grandes estabelecimentos, snr. Fortunato. Se um modo de vida fosse garantia e probidade!—disse Cecilia com ironia.

—Pois bem sei que não, menina, mas...

—Mas, mas, meu caro—disse Manoel Quentino—o que ninguem póde negar é que está alli um homem de bem... é verdade isso... Muitos fazem peior com menos a desculpal-os.

O dialogo proseguiu, discutindo-se muito Carlos. Cecilia porém absteve-se de tomar parte n'elle.

Terminou o chá. O ardor da conversa baixou. Manoel Quentino presentia o somno. José Fortunato sentia-se a digerir. Cecilia trabalhava e ás vezes ficava parada com os olhos fitos na luz, como se ella lhe offerecesse qualidades novas a examinar. Davam emfim nove horas.

—Ora vamos até casa—disse José Fortunato erguendo-se.

—Olhe se se agasalha—recommendou-lhe Manoel Quentino.

—Antonia, venha alumiar—disse Cecilia.

E o snr. Fortunato, feitos os seus cumprimentos, descia as escadas, conversando com Antonia até á porta da rua a respeito de frieiras, e mettia-se em casa, onde a imaginação teimava em recordar-lhe a doce figura de Cecilia, e tudo quanto lhe dissera.

—Estranhei hoje os modos da rapariga—dizia elle ao deitar-se.

Uma perfida paixão começára, havia muito, a minar o coração do pobre homem.

Manoel Quentino, como tinha de se levantar cedo, ia-se deitar pouco tempo depois de Fortunato sair.

O dialogo entre o pae e a filha d'esta vez consistiu n'isto:

—Este snr. Fortunato ás vezes!...

—É caturra, é...

—E tem umas ideias! Boa noite, meu pae.

—Muito boa noite, minha filha. Deus te abençoe.

Cecilia retirou-se.

Apesar de na vespera se ter deitado tarde, como o leitor sabe, Cecilia não sentia somno. Parecia-lhe estar ainda experimentando o atordoamento do baile. Lembrava-lhe tudo quanto Carlos lhe dissera, e o mais que de Jenny tinha sabido, e affligia-se então. Depois vinham as reflexões de Fortunato, depois as palavras do pae e os episodios que de Carlos Whitestone referira. A final cedeu ao somno. Pouco lucrou na transição. Ha certo dormir que fatiga mais que a vigilia. Trava-se uma lucta de sonhos, que nos deixa extenuados.

Cecilia imaginou que ia n'um barco, levado pela corrente impetuosa do rio, em direcção da barra. O perigo era certo, e comtudo o barco ia cheio de mascaras que dançavam. Cecilia gritava, mas ella propria não escutava a sua voz. O barqueiro era o snr. Fortunato, e, cousa singular, ao mesmo tempo que remava, ia tomando chá. Depois vinha Carlos, com um cavallo pela rédea; mas o que mais a surprendia era que vinha pelo mar. Carlos queria salval-a, tirando-a do barco, mas as outras mascaras e o snr. Fortunato não deixavam. Porém o snr. Fortunato já não era o snr. Fortunato, mas sim um dos personagens do romance, que tanto o impressionára; e o mar tambem já não era bem mar, porque tinha camarotes em volta. E comtudo o perigo persistia, sem saber bem como ou em quê, e agora era ella a que fugia de Carlos.

Finalmente, o sonho era de um enredo complicado, tendo por elementos os diversos acontecimentos e assumptos, que mais tinham preoccupado Cecilia n'aquelle dia, mas tudo em desordem completa.

Em consequencia d'este sonho, acordou de manhã, pallida e abatida—o que não pouco inquietou Manoel Quentino.