CONTAS DE CARLOS COM A CONSCIENCIA
Impressionado pelas occorrencias d'aquella noite, que lhe afugentavam o somno, Carlos ao voltar a casa, encostou-se pensativo á mesa e abriu machinalmente um livro.
Quiz o acaso que fosse um volume das obras de Byron e nas Horas de Ocio. Carlos leu:
Woman! experiance might have told me...
a attenção já o não acompanhou ao segundo verso. Fora fatal a primeira palavra:—Woman!—mulher!—Apoiada n'este magico substantivo, a imaginação ganhou esforço e, deixando os sentidos seguirem os versos restantes, divagou, á sua vontade, mais rapida e por mais longe do que elles.
O caminho, que estes continuaram seguindo, provavelmente poderá o leitor encontral-o, se quizer, na sua bibliotheca: deixaremos porisso Byron em paz, e iremos, como podermos, atraz da imaginação de Carlos.
Principiou por se recordar da revelação que a um acaso devera momentos antes. Recordar, disse eu? Para com rigor me poder servir do termo, era necessario que tal descoberta lhe tivesse já, por instantes sequer, deixado livre o campo do pensamento; e teria? É licito duvidar.
Entrou depois Carlos em tarefa mais activa, qual foi a de tentar avivar a imagem de Cecilia, que apenas lhe apparecia como vaga reminiscencia, e velada por uma nuvem, que elle em vão procurava dissipar.
Se o leitor já alguma vez pôz hombros a emprezas d'estas, deve saber que desesperadoras difficuldades ellas trazem quasi sempre comsigo. Quanto mais ardente é o desejo de recordar uma physionomia, que ainda não temos bem gravada na memoria, tanto mais parece comprazer-se um maligno espirito de impacientar-nos, alterando-lhe completamente o typo, combinando os elementos physionomicos mais disparatados, debuxando a capricho o perfil, colorindo mentirosamente os cabellos e a tez, assombrando com a mais grosseira infidelidade as inflexões e os relevos.
Em uma palavra, Carlos, que tinha visto frequentes vezes Cecilia, ainda que nunca muito attentamente, não pôde, por mais que o tentasse, tirar da memoria uma imagem distincta d'essa rapariga.
Em compensação recordava-se do metal de voz sonoro, com que ella lhe fallára no baile, da graciosa maneira de rir, de tudo quanto lhe dissera, de todas as pequenas circumstancias d'aquella aventura do carnaval, de todas, e tão profundamente se deixou embeber n'estas cogitações que, apoiada a cabeça entre as mãos, os cotovêlos sobre a mesa, e os olhos meio fechados, nem se lembrava de Byron, que sinceramente julgava continuar a ler, nem sequer tinha consciencia do logar onde estava.
A luz amortecida diffundia no aposento soturna claridade, e o silencio era tal, que Carlos ouvia-se respirar.
De repente, como que tentando sair d'aquelle estado, afastou de si o livro com vivacidade.
Vergou a cabeça para traz sobre as costas da cadeira, e passou a mão pelos olhos, á maneira de quem desperta de um sonho. Mas, depois de avivar a luz, caiu de novo na mesma abstracção de que saíra.
Foi porém só a mão esquerda que se encostou á cabeça d'esta vez, emquanto que a direita pegou em uma penna e pôz-se a desenhar e a escrever á tôa sobre uma folha de papel branco, que lhe estava ao alcance.
Escusado é dizer que a alma não tomava parte n'isto.
Segundo a theoria de Xavier de Maistre, la bête ou o outro, que, em nós, devemos distinguir do eu, cansára-se de ler e escrevia agora. A alma, essa continuava na tarefa anterior, meditava ainda.
Observo porém que são perigosas muitas vezes as occupações, a que o tal outro se entrega, quando sacode por momentos o jugo do companheiro. O mesmo Xavier de Maistre aponta-nos exemplos d'isso.
Uma das distracções mais arriscadas é esta de escrever, A mão é indiscreta; e a razão se se descuida, está sendo atraiçoada, quando menos o pensa, por estes automaticos movimentos, que parecem sem significação.
Olhae por cima do hombro do homem absorvido em graves pensamentos, cuja mão move ao acaso a penna sobre uma folha de papel; entre muita cousa insignificante, é raro que uma ou outra palavra, um ou outro signal não symbolise, não denuncie a ideia dominante, que o possue.
Esse outro motor ou principio, que nos domina as acções, quando a consciencia não as regula e dirige, parece ter, como a alma, uma memoria tambem. Exerce-a sobre as particularidades insignificantes, que acompanharam qualquer acontecimento de importancia para o nosso destino. Impressionou-nos uma revelação? quando o pensamento se estiver occupando d'ella, a memoria do outro reproduzirá a maneira de trajar da pessoa, de quem a ouvimos, a côr das paredes do aposento, onde a escutamos, uma phrase dita simultaneamente por um homem que passava. Ora, muitas vezes estes accessorios teem ainda bastante analogia com o facto principal, para que um espirito investigador, sabendo-os, possa ir por elles, de deducção em deducção, até o fundo dos nossos pensamentos.
D'ahi vem o perigo de confiar, em taes momentos, a penna da mão, que se move sob a vontade d'este guia, o qual não tem a discrição necessaria para não deixar no papel vestigios das suas curiosas memorias.
Era o que estava succedendo a Carlos.
Principiou por desenhar, distrahidamente, um elmo; isto parece nada ter que ver com as provaveis cogitações do seu espirito, n'aquelle momento. Cumpre-me, porém, declarar que, na occasião em que no theatro, pela primeira vez, Carlos reparou em Cecilia, passava por diante d'elle um individuo, embrulhado em um manto romano e com um elmo, exactamente similhante ao do desenho.
Depois do elmo, delineou a penna uma meia mascara; aqui já a analogia é mais evidente e dispensa commentarios; uma mão, depois; pensava talvez na de Cecilia, cuja belleza notára ao apertar-lh'a, á despedida. Adiante...—agora parece maior o desacerto—um lampeão de praça! É verdade que havia um a illuminar a mysteriosa incognita, no momento em que, na afflicção, invocára o nome de Jenny, e conseguira, graças a esse nome invocado, evitar a ulterior perseguição de Carlos. E é provavel que fosse esta a razão de similhante desenho, visto que, em seguida, a mão escreveu por muitas vezes, e em diversas fórmas de lettra:—irmã, por sua irmã, por Jenny! Depois chegou a vez de um orgão de igreja;—esboço, que só julgará incoherente quem se não recordar da santa do kalendario, da qual esse é o emblema. De facto, a ideia do sacro instrumento veio de Santa Cecilia, e a ideia da santa não era das que acudiriam á mente de um protestante, se, cá na terra, alguma homonyma, por canonisar, a não chamasse lá. Após isto, escreveu uma palavra absurda, singular, inqualificavel; foi esta:—Ailicec; mas inverta-a o leitor e cessará a estranheza, que ella lhe possa causar; seguiram-se-lhe outras, não menos exquisitas, e formadas de diversas combinações das mesmas sete lettras, que emfim appareceram dispostas por ordem natural na palavra: Cecilia. Mais abaixo,—singular transição!—escreveu Carlos em caracteres bem legiveis:—Papa;—depois:—Calvino; e, acto continuo, o nome de um compatriota e amigo seu, que, mezes antes, tinha casado com uma senhora catholica.—Veja o leitor se poderá interpretar estes signaes, e ao mesmo tempo diga se não estava sendo de grande indiscrição para a alma, o outro, companheiro inseparavel d'ella.
A final a mão traçou, muito de vagar, as duas seguintes palavras reunidas:—Cecilia Whitestone.
A razão pareceu então despertar, e, espantada com o que viu feito na sua ausencia, tentou pôr termo a similhantes imprudencias; e a mão subitamente passou um traço por as duas ultimas palavras, logo depois de escriptas.
Carlos levantou-se para passeiar no quarto.
Principiou então a convencer-se de que tinha de facto sido injusto em formar tão levianamente um conceito pouco favoravel da mascara, e menos cavalheiro do que devia, no seu procedimento para com ella. Jenny havia-o reprehendido por isso tudo—e Carlos julgou ouvir a propria consciencia applaudindo Jenny. Chegou a persuadir-se de que tinha remorsos, e pareceu-lhe necessario imaginar alguma maneira de remediar tão grandes culpas.
Ouviu duas horas, ainda a pensar n'isto.
Deitou-se vestido sobre o leito; e cada vez a parecer-lhe mais necessaria e urgente uma resolução n'aquelle sentido!
Eram tres horas, quando julgou ter somno. Deitou-se por baixo da roupa, e apagou a luz.
O socego, que o rodeiava, um d'estes socegos nocturnos, tão completos que até o roer da larva invisivel, occulta no seio da madeira, se ouve distinctamente, impacientava-o, longe de convidal-o ao repouso. Quando o espirito está agitado, quando uma ideia qualquer nos inquieta, o silencio, a tranquillidade exterior parecem-nos um escarneo e irritam-nos.
Em menos de um quarto de hora já a cama estava em desordem, e a travesseira no chão. Carlos accendeu de novo a vela, trouxe um livro para a cama e esteve meia hora com elle aberto nas mesmas paginas.
Sentou-se impaciente no leito, e imaginou que tinha febre.
E assim se conservou até ás cinco horas da manhã, que foi sómente quando adormeceu, ou antes se deixou caír exhausto por o cansaço, que produz a insomnia.
E que resultou de tanto pensar? Vêl-o-hemos brevemente.
Vamos agora a casa de Manoel Quentino, onde nos encontraremos com antigos conhecimentos.
Ao voltar do theatro, contára Manoel Quentino á filha, não só o enredo da Lucia, que não podéra concluir no camarote, mas todos os principaes successos da noite; esqueceu-lhe porém o episodio do lenço, ao qual não dera importancia.
Cecilia escutou-o calada.—Dir-se-hia que já a impacientava ouvir tantas vezes fallar em Carlos; porque, de facto, parecia proposito formado em Manoel Quentino o ter sempre que contar do rapaz, d'essé estouvado, a quem, apesar de todos os estouvamentos, o bom homem queria devéras.
A julgar pela apparencia de ligeira mortificação, que tomava n'esses instantes o rosto de Cecilia, devia suppôr-se que existia n'ella uma forte antipathia para com o predilecto do pae.—Mas será prudente não confiar demasiado no rigor logico d'estas deducções physionomicas, e muito mais em mulheres.
No dia seguinte pela manhã, ao partir para o escriptorio, Manoel Quentino não deixou a filha menos melancolica do que nos anteriores; até lhe pareceu mais falta de côr. Falta de côr! Deus sabe os intimos e dolorosos estremecimentos, que estas palavras desafiam no coração de um pae! São para elle as faces rosadas de uma filha, como o firmamento para estas organisações impressiveis em excesso, onde, ao toldar-se de nuvens o céo, se projectam as sombras da tristeza; onde, quando elle ostenta um azul sem mácula, se reflecte a luz das alegrias.
Imagine-se o cuidado, com que devia partir o bom homem.
Que tratos não dava á memoria! Que concepções mais ou menos extravagantes! que minuciosas investigações sobre todos os seus proprios actos e palavras não vinha fazendo pelo caminho, só para descobrir a causa d'aquella mal disfarçada melancolia! E tudo em vão!
No escriptorio não o deixou este cuidado; mais de uma vez, se surprendeu com a penna, a incansavel companheira, parada no meio de uma palavra, com os olhos fitos no papel, e sem verem cousa alguma; em completa abstracção, elle, tão pouco propenso a isso!
Depois da morte da mulher—havia quinze annos—, e da doença de Cecilia—havia seis—nunca tal lhe acontecera; estranhava-se.
Alguma razão tinha Manoel Quentino para estes cuidados.
Não que se podesse dizer Cecilia verdadeiramente triste; a imaginação do pae, excitada pelo seu muito amor, exagerava o mal, á força de o temer; mas perdera a despreoccupação, quasi infantil, que era natural n'ella; desgostára-se de repente de alguns passatempos, que, no meio das canceiras domesticas, ainda conservava de creança; tomára-se inesperadamente do gosto de passeiar só pelos corredores e pelas ruas do quintal, que não era proprio do seu caracter pouco meditativo, até então pelo menos. Manoel Quentino estranhava, por exemplo, não a ver fazendo saltar o agil e engraçado gato maltez, que não andava pouco sentido com a mudança; não a ouvir já cantar a meia voz, quando trabalhava á janella do quintal; ou formular observações, innocentemente satyricas, a respeito de alguns vizinhos, e as impertinentes perguntas com que, muito de proposito, costumava impacientar a criada; nem o mais ligeiro indicio denunciava agora n'ella uma indole propensa ao jovial.
Na manhã, em que Manoel Quentino luctava com as apprehensões que estas mudanças em Cecilia lhe despertavam, trabalhava ella no quarto com as janellas fechadas, contra o seu costume, e tão distrahida, que não era raro parar-lhe a agulha a meio caminho da costura.
Por mais de uma vez, Antonia, vindo consultal-a sobre negocios domesticos, foi constrangida a repetir a pergunta, porque Cecilia não a tinha comprehendido—o que, seja dito em abono da snr.ª Antonia da Natividade, não procedia de falta de clareza na redacção da phrase.
De uma d'estas fundas abstracções, tão repetidas n'aquella manhã em Cecilia, veio arrancal-a o toque impetuoso da campainha do portal.
A este som Cecilia estremeceu e dirigiu os olhos para o relogio da sala, com um gesto de surpreza. Pouco passava da uma hora; não podia ainda ser o pae que voltasse, e raras vezes outra mão que não a d'elle fazia assim soar a campainha—muito menos áquellas horas do dia.
A estranheza augmentou e quasi degenerou em inquietação e susto com a entrada da criada, cuja physionomia não era de facto, n'aquelle momento, para tranquillisar ninguem.
A veneravel matrona trazia estampado no rosto, vigoroso de expressão, o mais completo espanto.
Cecilia, vendo-a, ergueu-se de subito e fez-se pallida, como se já aguardasse uma má noticia.
—Menina!... menina!...—dizia, a custo, a criada, fóra de respiração.
—Jesus! Que é, Antonia? que é?—perguntou Cecilia, batendo-lhe o coração com tal violencia, que parecia despedaçar-lhe o peito.
—Ai que ainda não estou em mim! continuava a outra.
—Diga, mulher! diga o que é.
—Ora que ha de ser! Ai!... Não se assuste... Safa!... Eu sempre fiquei!...
—E não diz!
—Digo, digo, menina. Pois porque não havia de dizer? Para isso vim.
—Pois não parece. Não vê o susto em que estou?
—Susto?! Não é caso d'isso, socegue... É que... aí, deixe-me, por amor de Deus, respirar...
Cecilia ajuntou as mãos com impaciencia.
—É um senhor—disse por fim Antonia—um senhor todo asseiado e bonito, que quer... Ai! sempre se me pregaram umas dores de cabeça!
—Que quer o quê, Antonia?
—Que quer fallar á menina.
—A mim! Você que diz, mulher? Isso póde lá ser!
—Tanto póde, que elle lá está.
—Lá! Aonde?
—Na sala das visitas.
—Pois mandou-o entrar?! Valha-me Deus!
—Então que havia eu de fazer? Se elle procurava a menina... Não, a delicadeza não fica mal a ninguem; sobre tudo com pessoas delicadas tambem. Havia de ver que modos aquelles tão bonitos! Obsequio vae, obsequio vem; senhora para aqui, senhora para alli; não é lá como estes cabouqueiros, que ás vezes veem por ahi, que julgam que todos foram creados a borôa e a caldo verde, como elles. Não, senhora; bem se vê que este é pessoa fina...
—Mas... é impossivel. Ha engano; não póde ser a mim que elle procura... Você ouviu bem?
—Ouvi, menina, ouvi. Ora que scisma! Graças a Deus não estou tonta de todo. Ia agora deixar entrar assim, sem mais nem menos, um homem pela casa dentro, sem ouvir, sem perguntar... Credo, menina! melhor conceito faça de mim. Olhem agora! Ora essa não está má! Não, se eu não entendia aquillo, estava bem servida com a minha vida! Por as palavras se entende a gente e nosso Senhor nos dê sempre ouvidos para ouvir, olhos para ver e juizo para entender. Amen.
—Está bom, está bom. Já agora não ha remedio senão ir ver quem é. E o pae não estar em casa!...
—Ora não temos nenhum ataque de ladrões. Nem que fosse alguma cousa do outro mundo... Se a menina estivesse só, não digo ... mas na companhia de uma pessoa de ... de representação...
Cecilia parecia ainda irresoluta.
Antonia insistiu:
—Então, menina! Olhe que isso até parece mal tambem. Fazer esperar assim aquelle senhor! A final não sei de que tem receio. Então se a gente vae a...
—Ora cale-se, mulher, cale-se. Se eu sei o que você tem estado para ahi a prégar...—interrompeu-a Cecilia, já impaciente—Que hei de ir, sei eu. Já que o mal está feito...
—O mal! Ó menina, não me diga isso, por quem é. Então queria que eu...
Cecilia, depois de rapidamente se ageitar ao espelho, voltou as costas á snr.ª Antonia, e dirigiu-se para a sala onde a criada introduzira a estranha visita, que tanto a estava inquietando.
Antonia seguiu-a, resmoneando o resto das suas reflexões.
Ao entrar, não viram ninguem. A pessoa, que alli esperava, saíra para a varanda de pedra, que deitava sobre o quintal. Voltou porém, logo que percebeu que as duas haviam entrado na sala, mas, como ficasse com as costas voltadas á luz, não foi logo possivel a Cecilia reconhecer quem fosse.
Cecilia deu alguns passos, com hesitação, dizendo:
—Ao que parece, v. s.ª deve ter vindo enganado.
—Não, minha senhora, não vim. É v. exc.ª mesma que eu procuro.
Cecilia parou estupefacta. A voz, que assim lhe respondia, era-lhe conhecida; a pessoa não o era menos.
Ella reconheceu Carlos Whitestone.
O sobresalto e a confusão, que se apoderaram da filha de Manoel Quentino, n'esse momento, são indescriptiveis, mas faceis de conceber por quem tenha escutado, com Jenny, a dupla confidencia, de que atraz fizemos menção.
Cecilia teve de apoiar-se ao encosto da cadeira proxima, para disfarçar a sua turbação, as faces córaram intensamente e a custo pôde dizer, em voz tremula e sumida:
—Ó snr. Carlos!... V. s.ª aqui!...
—Venho cumprir um dever, minha senhora.
—Queira sentar-se—disse Cecilia, quasi constrangida ella propria a fazel-o para não cair.
—Tem duvida, minha senhora, em me escutar a sós?—perguntou Carlos, designando Antonia, com o olhar.
Cecilia, ainda mal senhora sua, fez signal á criada, que, collocada no limiar da porta, mostrava poucas disposições de abandonar o posto, e por isso fingiu não perceber a ordem, apesar de ter entendido bem até as palavras de Carlos.
O genio de Cecilia precisava de reagir contra o enleio, que a tomára; encontrou auxiliar na impaciencia com que repetiu a ordem, acrescentando com certo desabrimento:
—Saia.
Antonia não resistiu. Subiu as escadas, de mau humor, resmungando:
—Olhem agora o peralvilho! Ora já viram! Louvado seja Deus! Sempre ha gente n'este mundo! Que não vá eu descobrir o grande segredo! Melhores barbas do que as d'elle teem confiado na filha de meu pae. O snr. doutor Raposo, um lettrado de mão cheia... pois não punha nenhuma aquella em fallar diante de mim dos seus autos e demandas. Servi tres annos o doutor Dionysio, e, depois de jantar, contava-me tudo o que via e ouvia por casa das familias, onde tratava de medico. E, graças a Deus! nunca tiveram de se arrepender d'isso. Está para nascer o primeiro que tenha razão de queixa da minha lingua... Olha agora .. O lerma, o magricellas, o dois de paus...
E procurando parodiar burlescamente os modos de Carlos:
—Tem duvida, minha senhora, em me escutar a sós?!... Tem duvida, tem, sim, senhor; e então que acha?... Ou, se não tem, devia ter... Então escuta-se assim um creancelho, um homem, que nem põe navalha na cara, sem estar presente uma pessoa de juizo? Hein?—E ella então: «Saia!» Gósto d'isto! «Saia»; não que elle não ha mais «Saia». Não sáe, não, senhora, não sáe assim com essa pressa. Ora ahi está... Ou se sáe é porque... é porque... é por a gente querer viver bem com todos; é o que é... não é por mais nada!
A palinodia prolongou-se n'esta afinação; e a reputação de Carlos ficou de rastos no conceito da snr.ª Antonia.
Logo depois de se perder nas escadas o som dos passos de Antonia, Cecilia, tremula e confusa, continuou:
—Não posso ainda imaginar a que deva a honra...
Carlos não a deixou proseguir.
—Perdão, minha senhora, v. exc.ª deve suppôr qual o fim, que me levou a solicitar este favor...
—Eu?!—perguntou Cecilia, a tremer.
—Sim, minha senhora—continuou Carlos—se v. exc.ª me conhecesse, se tivesse aprendido a fazer-me justiça, devia prever, ao ver-me entrar hoje aqui, em sua casa, que só um motivo me podia trazer.
—E era?—murmurou Cecilia, quasi receiando-se da resposta.
—Pedir-lhe perdão, minha senhora.
—Perdão!...
Cecilia sentiu o atordoamento precursor da vertigem, ao ouvir aquellas palavras.
—Sei tudo, minha senhora—proseguiu Carlos—e acredite que tenho sinceros remorsos de não haver adivinhado logo; nunca senti assim o effeito das minhas leviandades.
—Mas... sabe... o quê, senhor?—balbuciou Cecilia, como se tentasse ainda duvidar do que era já certeza para ella.
—Não me quer poupar ao desgosto de recordar uma scena, em que eu fui tão culpado?
—Pois Jenny disse-lhe?—exclamou, quasi involuntariamente, Cecilia, como fallando comsigo mesma.
E os olhos brilharam-lhe de lagrimas, prestes a desprenderem-se-lhe pelas faces.
Carlos atalhou-a:
—Não, minha senhora; Jenny não foi indiscreta. O acaso revelou-me tudo o que eu, desde aquella noite, tanto desejava saber. Minha irmã apenas me fez comprehender bem toda a pouca delicadeza do meu procedimento e a necessidade de uma justificação; é essa que eu venho aqui offerecer-lhe. V. exc.ª tem direito a ella, como o teria Jenny e como eu o exigiria de quem tratasse minha irmã... tão grosseiramente, como eu tratei v. exc.ª
—Mas, snr. Carlos, toda a culpa tive-a eu...
—Não diga isso! Insistir em não me reconhecer culpado é apenas uma maneira delicada de recusar-me o perdão que, de proposito, vim aqui implorar-lhe.
Cecilia não respondeu; Carlos proseguiu:
—V. exc.ª é a melhor amiga de Jenny; ella mesma, hontem, m'o disse. Peço-lhe que me não julgue indigno da sua amizade tambem, minha senhora. Eu supponho-me igualmente o melhor amigo de minha irmã. Duas pessoas, que teem assim a estima de um anjo, como aquelle, devem estimar-se uma á outra; não lhe parece?
—Mas eu, snr. Carlos, nunca tive motivos para... não tenho direito para deixar de... estimal-o.
—Perdôa-me portanto?
Cecilia guardou por algum tempo silencio, depois, fazendo esforço sobre si mesma, disse com vivacidade:
—Snr. Carlos, não fallemos mais n'isto, peço-lhe... Esqueçamos tudo, como se tivesse sido um sonho... mau.
E terminando assim o pensamento, baixou os olhos, como desfallecida pela violencia da lucta, que sustentára.
Carlos não replicou immediatamente. Houve um silencio de alguns segundos, incommodo para ambos; emfim, olhando para Cecilia:
—Esquecer!—disse Carlos, de uma maneira, que parecia mostrar não lhe ser demasiado grata a proposta, e depois acrescentou:—Pois sim... Esqueçamos, visto que assim o quer. Mas eu tenho a esquecer, arrependendo-me; já o fiz; v. exc.ª, perdoando; por que recusa fazel-o? Perdôa?
Cecilia ia de novo negar-se a admittir-lhe a culpa, mas, erguendo os olhos, viu Carlos que lhe estendia a mão e, sem bem attentar o que fazia, estendeu também a sua, murmurando:
—Perdôo.
Quando, reflectindo, a quiz retirar, e juntamente a palavra, já não era tempo.
Logo que ouviu de Cecilia o perdão, que viera de proposito solicitar alli, Carlos levantou-se.
—Obrigado, minha senhora—disse elle.—Cumpri o meu dever; agora parto satisfeito.
A pobre rapariga não podia responder mais nada; se ainda lhe estava parecendo um sonho tudo aquillo!
—Mais duas palavras só;—disse ainda Carlos, pegando no chapéo—quando v. exc.ª chegou, não estava eu aqui dentro; reparou? N'esse momento, minha senhora, acabava de fazer uma singular decoberta.
—Uma descoberta?!
—Muito singular. Ha poucos dias—continuou Carlos, aproximando-se da janella, junto da qual estava já Cecilia—passeiava eu n'aquelles pinheiraes... acolá. Meditava... nem posso bem dizer em quê. Não sei de que maneira me attrahiu a vista, e depois me occupou a imaginação, uma casa, que avistei d'alli. Tinha a varanda revestida de trepadeiras, uma roseira no intervallo das duas janellas e, no andar de cima, apparecia frequentemente uma senhora, toda occupada em trabalhos domesticos, n'esse lidar modesto, que rodeia, a meus olhos, de suave perfume de poesia as mais bellas figuras de mulher.
Cecilia baixou os olhos, córando, e pareceu entretida a examinar a andarella do castiçal de vidro, que lhe ficava á mão.
—Imagine agora a minha surpreza, quando, ha pouco, chegando aqui, reconheci esta varanda, esta janella, esta roseira, por as mesmas que de tão longe me haviam chamado a attencão. D'ahi—acrescentou, sorrindo—facil me foi concluir quem era a senhora. Não haverá mysterio n'isto? Não parece que esta roseira queria aconselhar-me de longe o passo que hoje dei? Eu, por mim, estou tentado a crêl-o, e tanto que, por gratidão, peço-lhe licença, minha senhora, para levar commigo uma memoria d'ella. Permitte-me que córte uma d'aquellas flores?
Cecilia só pôde sorrir em resposta, baixando a cabeça.
Carlos aproximou-se da japoneira e cortou um botão, ainda mal desabrochado; voltando á sala, curvou-se respeitosamente diante de Cecilia, e, depois de mais outra phrase de cumprimento, saíu.
Ella viu-o saír, sem que fizesse o menor movimento, e por muito tempo permaneceu no mesmo logar e na mesma posiçao em que havia ficado.
Dominava-lhe o espírito um turbilhão de ideias, que ora o mortificavam, ora, não sei de que maneira, o embalavam agradavelmente.
Foi ainda Antonia quem fez cessar mais esta abstracção.
—Então quem era a final este senhor de tantos recatos e cautelas?—perguntou a criada, a quem a curiosidade mordia com verdadeira sofreguidão.
—Pois não conheceu? Era o filho do snr. Ricardo, do patrão do pae...
—Ai sim?! Como está um homem! A ultima vez que o vi, era elle uma creança... Pois olhe que... a respeito de educação... póde com a que tem... Sempre é herege!
—Por que diz isso?
—Então não viu o descôco, com que lhe pediu, e na minhã cara, para me mandar embora? E a menina então... foi logo! E que queria por fim este chincharabelho?
—Nada... E sabe?... Escusa de fallar a meu pae... n'esta visita...
—É porque... Jenny... e o irmão querem causar uma surpreza a meu pae... para o dia dos annos d'elle e... avisam-me... por isso...
Decididamente Cecilia não tinha geito para mentir; hesitava, córava, a dizer isto, que não era possivel illudir-se ninguem.
A criada que, segundo ella mesma dizia, tinha olhos para ver, notou este rubor e confusão, e commentou-os a seu modo:
—Aqui anda cousa. Ora queira Deus, queira!... Nem sei se diga ao snr. Manoel Quentino... Mas nada, nada; ella lá sabe voltar o pae para onde quer e a final quem fica mal sou eu. Lá se arranjem... Humh! Uma surpreza para o dia dos annos. Pois não foste! Para mim é que elles veem com isto!
Cecilia, procurou encerrar-se no quarto; pegou de novo na costura; mas posso afiançar que não adiantou o trabalho.
Manoel Quentino tinha razão; alguma cousa affligia a filha.