NO THEATRO

Dias depois, affixavam-se cartazes nas esquinas, annunciando a Lucia de Lammermoor.

Mr. Richard Whitestone não era assiduo frequentador do theatro lyrico.

Havia porém uma circumstancia, que, infallivelmente, o levava lá, uma vez pelo menos.

Tendo já desesperado de ouvir no theatro do Porto musica de compositores inglezes, como Haendel, Gray, Arnold, Bishop e outros, cujos nomes a cada momento citava com enthusiasmo, resignára-se a afagar sómente o seu acrisolado patriotismo com ir ao theatro, quando se cantavam aquellas operas, cujos librettos eram extrahidos de algumas das obras primas da litteratura ingleza.

O Othello, o Macbeth, os Capulletos, as Prisões de Edimburgo, os Foscaris, o Marino Faliero e outras n'este mesmo caso, luctavam vantajosamente com o seu muito amor pelo fogão e traziam ao publico aquella physionomia, radiante de contentamento e expressiva de saude, que o leitor já conhece.

Preparava-se de antemão, n'essa tarde, relendo a obra, que servira de assumpto á opera, e ia depois com vontade para o theatro.

Não era porém Rossini, Verdi, Bellini, Ricci e Donizetti os que o attrahiam e enlevavam; era Shakespeare, era Byron, era Walter Scott, cujos grandiosos vultos lhe parecia estar vendo no palco evocados, por sua vez, pelos mesmos personagens, que o genio d'elles tinha evocado outr'ora.—A musica era o accessorio. Os applausos do publico roubava-os Mr. Richard, por patriotismo, aos maestros, para conferir áquelles seus famosos conterraneos.

No numero das taes operas contava-se Lucia de Lammermoor. Assumpto escossez, tratado por penna escosseza, e das mais admiraveis em desenhar typos sympathicos e immortaes, não era para Mr. Richard resistir-lhe. Havia de ir por força.

Foi; mandou tomar um camarote para aquella noite. A plateia nunca lhe agradou. Estava mais comsigo e com os seus no camarote; e isto de estar comsigo e com os seus tinha para elle a força de necessidade.

Era costume invariavel de Mr. Richard convidar Manoel Quentino, n'estas occasiões.

Grande mortificação causava a este tal convite, mas não se atrevia a recusar. Aceitava e agradecia até, porém, a occultas, suspirava por ter de privar-se uma noite dos suaves prazeres dos seus serões domesticos, das attenções e cuidados filiaes de Cecilia e até das monótonas reflexões do amigo José Fortunato; este não sentia menos pezar em modificar habitos já inveterados n'elle e prescindir do chá e dos bocejos do vizinho.

Mas não havia remedio. Manoel Quentino ía.

Depois de resolvido a isso, entendia então que tinha restricto dever de chegar a tempo. Era o guarda-livros a pontualidade em pessoa; em tudo observava o preceito de antes esperar do que ser esperado; e, comquanto não fosse provavel que esperassem por elle para começar o espectaculo, é certo que, pouco depois de anoitecer, viam-o já a passeiar no atrio do theatro, aguardando que lhe abrissem as portas dos corredores.

Assim fez n'esta noite.

Logo que as viu patentes, comprou o libretto da opera; porque nunca pôde tambem resignar-se a ouvir cantar, sem entender o que se cantava; subiu para o camarote e, á escassa luz que havia ainda na sala, pôz-se a ler.

Depois assistiu ao accender das serpentinas, á afinação dos instrumentos da orchestra, ao encher gradual da plateia, dos camarotes e das varandas, o que para elle constituia uma parte da divisão e não das menos curiosas. Aguava porém este inoffensivo prazer o cuidado que lhe estava dando a demora da familia Whitestone; temia já que ella não chegasse ao principio da opera. Isto não o deixava socegar.

Emfim ouviu abrir-se, atraz de si, a porta do camarote; voltou-se.

Eram Mr. Richard e Jenny, que chegavam.

Mr. Richard saudou, com familiaridade, o guarda-livros; Jenny apertou-lhe a mão com affecto.

—Não o esperava agora aqui!—disse Jenny, tirando a capa e reparando as leves desordens da sua toilette.

—O snr. Whitestone fez-me o favor de me dizer que viesse.

—E Cecilia?

—Cecilia!—disse Manoel Quentino, encolhendo os hombros—eu já lhe não digo nada. Para quê? Com'assim, não se resolve nunca a vir.

Mr. Richard, emquanto a filha se preparava, viera á frente do camarote passar um exame rapido á sala.

—E o Carlinhos?—perguntou Manoel Quentino a Jenny emquanto se encarregava, com soffrivel galanteria, de acommodar a capa, que ella acabava de tirar.

—É provavel que esteja cá—respondeu Jenny.

—Aonde? Na plateia?

—De certo.

—Tendo camarote! É vontade de gastar dinheiro!—pensou para si o economico Manoel Quentino.

Depois de tomarem todas as respectivas posições, Manoel Quentino, ficando junto da cadeira de Jenny, entendeu que não devia estar calado.

—Sempre me lembra—disse elle, portanto—quando venho ao theatro, de ver representar a celebre Josepha Thereza Soares! Aquillo é que era mulherzinha! Que tambem a Grata Nicolini... não sei se lhe diga... Se quer que lhe falle verdade, menina, agradavam-me mais as peças, que se representavam d'antes, do que as de hoje. Só os vestuarios e as vistas! Agora são salas e casacas, casacas e salas e acabou-se. É o pae que quer que a filha case com um velho rico; é a filha que quer casar com um rapaz pobre, que é poeta; é o rapaz a descompôr o velho; a rapariga a morrer... e passe por lá muito bem. Não lhe acho graça nenhuma. Eu queria que vissem: D. José II, visitando os carceresCamilla ou os subterraneosO Barba rôxaHa dezeseis annos ou os incendiariosOs sete infantes de LaraA Ignez de Castro...

E Manoel Quentino dispunha-se a continuar esta revista theatral, quando Jenny o interrompeu, perdendo assim a melhor occasião de se informar, entre outras cousas, dos merecimentos da celebre Josepha Thereza, de quem inda agora ouvimos fallar com saudades os frequentadores reformados, cujos legitimos successores são os dilletanti de hoje.

—Carlos tem ido ao escriptorio?—perguntou Jenny, a meia voz.

—Esteve lá ... no outro dia, na terça-feira, por infelicidade minha—respondeu o guarda-livros, lembrando-se dos enganos a que dera occasião a tal visita.

—Porque diz por infelicidade?

Manoel Quentino ia a contar a Jenny a especie de auxilio, que lhe prestára Carlos no escriptorio; mas, parecendo-lhe ver em Mr. Richard, ainda que apparentemente distrahido, certos indicios de estar prestando attenção ao que elle dizia, julgou conveniente mudar de rumo e respondeu:

—É que eu, apesar dos meus cincoenta e cinco annos, não tenho mão em mim que não me distraia, vendo-o; e, com a minha palestra, nem trabalho eu... nem...

Aqui hesitou alguns instantes, porque lhe parecia demasiado lisongeiro o que ia dizer, mas a final sempre concluiu:

—Nem... nem... nem o deixo trabalhar a elle.

O proprio Mr. Richard mordeu os labios, para encobrir um sorriso.

Jenny, a mesma Jenny, não pôde conservar-se inteiramente séria; mas, sorrindo, agradeceu com gesto de bondade as generosas intenções do guarda-livros.

Pareceu-lhe, porém, conveniente desviar a direcção da conversa e porisso lembrou a Manoel Quentino:

—Mas ainda não me disse por que Cecilia não veio.

—E eu sei lá? Não vem, porque não quer. Já d'antes era uma santa historia para a resolver a aproveitar-se de qualquer convite, que a menina tinha a bondade de lhe fazer. É lá de um genio particular aquella pequena; e desde creança que assim a conheço! Que se lhe ha de fazer? Mas agora sobre tudo... A rapariga tem o quer que é a affligil-a. Isso é que tem. Ella bem faz por disfarçar; mas...

Manoel Quentino tomou n'este ponto ares de mysterio e proseguiu em tom mais baixo:

—Eu não sei, mas... acho-a outra ha dias para cá. Não lhe tenho querido dizer nada, porque... porque sei como ella é, e tenho mêdo de mortifical-a ainda mais, porém...

—Mas então—perguntou Jenny, sinceramente attenta ao que Manoel Quentino lhe dizia—o que é que lhe faz julgar?...

—Acho triste a rapariga. Olhos de pae não se enganam com essa pressa. Os outros nada vêem, mas os meus... A Cecilia não era assim; quem a viu d'antes! Ella ri e graceja ainda, é verdade; mas ha alli certo modo, que eu lhe estranho. A menina, que bem a conhece, ha de ter visto...

—Não; não tenho notado mudança n'ella.

—Não que tambem... eu lhe digo... Ora deixe-me ver... Ella não voltou a sua casa desde... desde terça-feira, não? É isso mesmo. De então para cá é que eu mais tenho notado...

Jenny escutava com crescente curiosidade o que Manoel Quentino dizia.

—Ahi está que hoje...—continuou elle—depois de eu chegar a casa... mas peço-lhe, por amor de Deus, que lhe não vá dizer estas cousas; ella põe-se por lá depois a scismar...

—Fique descansado—disse Jenny, procurando não perder uma só das palavras que ouvia.

—Pois esta tarde... Eu já notára que ella ao jantar não tinha comido quasi nada... e eu, a fallar verdade, não gosto de ver aquillo. N'aquellas idades é que é o comer, e as cousas não correm bem, quando não ha appetite. Pois não lhe parece?

Jenny fez um movimento de affirmação, comquanto eu não dê por assentado que ella tivesse sobre o appetite absolutamente as mesmas ideias que Manoel Quentino.

—E depois?—perguntou ella.

—De tarde—continuou o velho—a pequena, contra o seu costume, metteu-se para o quarto, a ponto de me assustar; não tive mão em mim, que a não chamasse. Não me respondeu logo. Lembrou-me se lhe teria dado alguma cousa, e, já sobresaltado, ia a descer as escadas, para ver o que era, quando ella me appareceu, mas... ó menina, ou me engano muito, ou a rapariga tinha chorado; ella vinha a rir, vinha, mas eu...

—Foi de certo illusão sua; por que havia Cecilia de chorar?

—Pois ahi está o que me afflige. É o não saber! Ás vezes lembra-me... serei eu a causa? Ora é preciso que lhe diga que eu antes queria trabalhar como um negro toda a minha vida, e não ter um triste bocado de pão para comer, do que dar motivo a uma só lagrima d'ella.

E havia um tremor na voz de Manoel Quentino, ao dizer isto, que commoveu Jenny.

—Socegue—disse-lhe ella, animando-o.—De certo não é a causa d'essa tristeza, que lhe parece notar em Cecilia. Que mais póde fazer por ella, do que o que faz?

—E tudo merece, menina, e mais! Assim eu podesse. É um anjo! Não imagina.

—Não imagino, sei; pois não é ella a minha mais querida amiga?

Manoel Quentino não pôde ter-se, que não tomasse as mãos de Jenny e as apertasse commovido.

N'isto rompeu a orchestra a symphonia da opera; fez-se silencio na sala.

As ideias de Manoel Quentino seguiram novo curso; esqueceu as confidencias que tinham deixado Jenny pensativa, e, prestando ouvidos á musica, fixou os olhos no panno, que esperava ver subir immediatamente.

—Pois a historia d'esta peca—dizia elle, emquanto o panno não subia—é bem bonita, mas muito triste. Pelos modos, era um fidalgo..., não me lembro agora d'onde...

E, depois de pensar um momento, acrescentou:

—De Hespanha, acho eu... Era, era de Hespanha...

Mr. Whitestone estava distrahido; mas não ha distracção possível que impeça um inglez de corrigir qualquer inexactidão, que, embora de leve, toque pela sua nacionalidade; por isso interrompeu immediatamente a narrativa de Manoel Quentino, emendando-a.

—Ho! não, não. De Hespanha! Ho! Da Escossia, da Escossia. In the Lothian county. The bride of Lammermoor, de sir Walter-Scott. É bem conhecido isso.

—Ai, é verdade, é da Escossia, é. Já me não lembrava. Pois este fidalgo, ao que parece, tinha lá umas birras com outro seu vizinho, tambem muito nobre, é verdade, mas sem nada de seu. Eram rixas velhas e até me parece que uma demanda dos meus peccados! Vae logo o... o S. Pedro e faz com que este tal se namore da irmã do outro. Que isto acontece muitas vezes.

N'este ponto foi o panno acima.

Manoel Quentino, depois de exame passado á scena, proseguiu:

—Esses homens de saias, que ahi estão, são os criados do tal fidalgo. Andam á cata do amante, que vinha fallar com a rapariga ao jardim.

O argumento exposto por Manoel Quentino proseguiu por este teor e estylo, sem que Mr. Richard nem Jenny lhe dessem attenção.

Depois da chegada do barytono e durante o recitativo d'este, ia Manoel Quentino vertendo em vernaculo as phrases italianas que percebia, por conseguinte aquellas que menos precisavam de ser vertidas.

«Mortalnemico»—recitava no palco o barytono.—«Mortal inimigo»—traduzia o velho do camarote.—«Di mia prosapia»—dizia um.—«Elle mesmo confessa que tem prosapia»—interpretava, e d'esta vez desastradamente, o outro.—«Io fremo!»—acrescentava d'ahi a pouco tempo o cantor.—«Diz que treme»—traduzia Manoel Quentino.

E assim por diante, até que Mr. Richard, ao principiar no palco a aria:

Cruda... funesta smania.

pôz termo com ligeiro psiu aos luminosissimos esclarecimentos do guarda-livros.

Manoel Quentino calou-se logo, promettendo a continuação para o primeiro intervallo.

Antes do fim do acto, deu-se na plateia um incidente vulgar no nosso theatro, e cuja frequente repetição, em certos annos, mantem em perpetua tribulação o espirito dos emprezarios.

Á entrada da prima-donna, e antes d'ella soltar a primeira nota, romperam de um dos lados da sala alguns signaes de desagrado.

A maioria do publico, alheia ás altas questões de bastidor, elementos d'estas subitas tempestades, estranhou ver assim reprovar quem, dias antes, se applaudia com phrenesi, porventura exagerado.

Manifestou-se portanto reacção, extremaram-se os campos, desenvolvendo-se, de parte a parte, um ardor, que, durante alguns minutos, interrompeu o espectaculo.

Na plateia tudo era movimento e confusão; nos camarotes, os homens penduravam-se, para observarem, au vol d'oiseau, a borrasca humana que se lhes desencadeiava aos pés, e alguns, menos impacientes, formulavam, lá de cima, acerbas censuras, que se perdiam no espaço; as senhoras quasi desmaiavam de assustadas; outras, mais animosas, examinavam a binoculo as peripecias da contenda; a orchestra, deixando de tocar, e erguida em massa, passára a ser espectadora; os cantores cruzavam os braços e imitavam-a; os habitantes das varandas,—porventura os unicos espectadores de boa fé e de amor de arte sem mescla,—urravam de indignados; a auctoridade punha-se em pé no camarote e pedia para ser ouvida...

No meio d'este tumulto, Mr. Richard dava evidentes signaes de desagrado, traduzidos por muitos hos! por muitos estalidos de lingua, por muito sacudir de cabeça, e por pancadas de impaciencia com os nós dos dedos no encosto do camarote.

Manoel Quentino, igualmente escandalisado, era mais verboso na expressão de sua indignação.

Esse fartou-se de fallar, de ralhar, de gesticular, de censurar as auctoridades, de formular projectos absurdos de policia theatral, e isto tudo, quasi debruçado no camarote, e fitando a massa escura da plateia, cujo alvoroto ia crescendo.

Jenny olhava tambem na mesma direcção, mas o motivo era outro.

No camarote proximo ouvira fallar com severidade dos amotinadores da sala, e, entre os nomes mencionados, escutára o do irmão. Jenny estremeceu, e d'ahi vinha o cuidado com que examinava a plateia.

No entretanto, Manoel Quentino bradava:

—Eu, se fosse á auctoridade, mandava todos para o Carmo. Isto é um desaforo. Vem uma pessoa para se divertir, e vae... e vae... e vae...

A hesitação no terminar a phrase era devida a ter alguma cousa attrahido a attenção do velho para um ponto da sala.

—Oh! oh!—disse elle por fim—Ora, se elle lá não havia de estar! Podera! A festa não se fazia sem elle. Estava de ver!

—Quem?—perguntou Jenny, receiando comprehendel-o.

—Lá está tambem o Carlinhos; pois não vê?

—Onde? Onde?—perguntou logo, com vivacidade, Mr. Richard.

Manoel Quentino sentiu ao mesmo tempo a mão de Jenny a apertar-lhe o braço, como para recommendar-lhe discrição. Antes porém de a sentir, já elle tinha percebido a necessidade de ser prudente.

—Acolá!—e apontou em direcção exactamente opposta ao logar, em que estava Carlos.

—Aonde, homem?... Não vejo.

—Pois não será elle? Alli, ao pé d'aquelle sujeito de chapéo branco. O snr. Richard ainda não vê... Admira!... Olhe, elle lá vae embora... Olhe agora... Adeus, lá foi...

—Não era elle.

—Era, era... Até me parece que elle me fez signal de lá, como quem... sim... como quem... estava zangado com este desaforo.

Principiava Manoel Quentino a prejudicar a causa que defendia, levando longe demais a defeza. Era sestro seu.

Carlos achára-se effectivamente envolvido na maior força do tumulto, ainda que com fim louvavel, qual era o de pacificar dois amigos, prestes a entrar em combate por causa d'esta questão theatral. Levantando porém occasionalmente os olhos para o camarote, percebeu um signal de supplica e inquietação em Jenny, e porisso, emquanto os olhos de Mr, Richard, guiados traiçoeiramente por Manoel Quentino, o procuravam em outro ponto, cedeu elle o logar a novos apaziguadores e saiu da plateia.

Manoel Quentino, que lhe seguia os movimentos, respirou então, dizendo:

—Elle ahi vem; verá v. s.ª que não tarda. E tem razão em vir; não se pôde estar lá em baixo com similhante gente.

Effectivamente Carlos não tardou a entrar. O primeiro olhar foi para a irmã, que soube tranquillisal-o com outro, e habilital-o a comprehender o papel, que lhe convinha representar diante do pae.

Carlos, entendendo-a, foi severo para com os desordeiros, o que evidentemente agradou a Mr. Richard.

No entretanto, havia-se restabelecido a serenidade na sala; o primeiro acto terminou sem outra novidade mais do que a de ser no fim a prima-donna applaudida com enthusiasmo pelos mesmos que a tinham pateado á entrada.

Mysterios de theatro, os quaes nunca pude penetrar.

Mr. Whitestone saíu no intervallo; Carlos ficou.

Manoel Quentino tomou então a palavra para prégar um sermão a Carlos, sobre os perigos das más companhias. Carlos escutou-o, rindo e commentando-lhe as sentenciosas palavras com ditos jocosos, que não permittiam ao velho a manutenção d'aquella seriedade, que reclamava tão substancioso assumpto.

Passado tempo, principiou Carlos a analysar as differentes toilettes e typos femininos, que adornavam os camarotes, critica em que nem sempre era em demasia benevolo. De uma das occasiões em que, para proseguir n'este exame, procurava limpar os vidros do binoculo, tirou do bolso um pequeno lenço de mulher, com cercadura de renda, para o qual se pôz a olhar admirado.

Depois, segurando-o por uma das pontas, e mostrando-o á irmã, disse, sorrindo:

—Ainda me tinha esquecido isto, Jenny.

—O quê?

—Outra apprehensão que fiz, com esperança de por ella obter esclarecimentos, e... que cabeça a minha!... nem já sabia que o tinha em meu poder...

—Mas a que te referes?

—Então esqueceste-te já da minha confidencia, no dia do carnaval?

—Ah!—disse Jenny, olhando immediatamente para Manoel Quentino.

As vistas d'este tinham-se tambem fixado no lenço, e parecia examinal-o cada vez com mais curiosidade.

—Dá-m'o—disse Jenny, estendendo a mão para recebel-o.

—Não posso—respondeu Carlos, retirando a sua, a rir.

—Dá-me licença?—disse Manoel Quentino, estendendo tambem a mão para elle.

—Para o entregar a Jenny depois?

—Não, não é; queria ver...

—Que tem você a ver com este lenço?—perguntou Carlos, dando-lh'o.

Jenny mostrava-se cada vez mais inquieta.

Manoel Quentino examinava o lenço com attenção.

—É celebre!—dizia elle—É exactamente um dos lenços que eu dei a minha filha no dia dos annos d'ella.

—Como?—perguntou Carlos, olhando para a irmã.

A inquietação de Jenny redobrava.

—Não que é exactamente!... as rendas... o bordado dos cantos... Só falta... Ah... mas a marca também!... um C.!... Este lenço é de Cecilia! Como é possível?!...

Jenny julgou que era tempo de intervir.

—Ora ahi temos o snr. Manoel Quentino embaraçado com uma cousa bem simples—disse ella, rindo.—Esse lenço, é de Cecilia, é; que duvida? Deixou-o ella, por esquecimento, ha dias... na terça-feira... em minha casa. Este buliçoso tem o costume de levar tudo do meu quarto, sem me consultar, e, julgando que era meu...

—Ah! bem me parecia que era o lenço que eu tinha dado a Cecilia. Estava admirado!

Carlos olhava para Jenny e para Manoel Quentino, como sem saber ainda bem o que pensar d'aquillo.

—Espero que m'o restituirás—disse Jenny—a mim é que compete entregal-o a Cecilia.

Carlos ia a responder, talvez imprudentemente, quando um gesto da irmã lhe impôz silencio e acabou de explicar tudo.

Emfim já não era mysterio para elle o nome da desconhecida do baile.

Tirando o lenço das mãos de Manoel Quentino e entregando-o á irmã, disse, com entonação de intelligencia, para esta:

—Tens razão, Jenny. És tu, a quem compete entregal-o. Acredita que foi por esquecimento que eu não te fallei n'este... roubo... O que reputo uma felicidade.

—Porquê?—perguntou Jenny, fazendo-se séria.

—Por... por causa da surpreza que veio agora causar ao nosso amigo Manoel Quentino.

—Não, eu só estranhei...

Jenny mudou o assumpto da conversa.

Carlos ficou pensativo. Voltou á plateia, ao principiar o segundo acto. Todos lhe estranharam a distracção e a indifferença com que assistia á discussão, que ainda durava, sobre o facto da pateada.

Nem mais attenções lhe mereceram os cantores e a opera.

Jenny observava-o do camarote, e não deixou de reconhecer essa indiferença na posição invariavel, em que elle se conservou durante dois actos e um intervallo inteiro, como alheio a tudo o que em volta de si se passava.

—Que resultará agora de todo aquelle meditar?—pensava a irmã.

Ao principiar o ultimo acto, Carlos voltou ao camarote.

Manoel Quentino, não podendo luctar mais tempo contra a força do habito, adormecera. Mr. Richard estava absorvido em um dialogo, com um seu compatriota, de cabellos e suissas côr de neve, gravata da côr das suissas, e tez côr de rosa de Alexandria; fallavam nos triumphos lyricos da celebre Malibran, que ambos tinham, quando rapazes, escutado em Londres; no estylo de canto da phenix dos tenores—o famoso Rubini, o qual haviam admirado em 1831, no Queen's Theatre; no D. Giovanni, de Mozart, musica de que nunca se saciam os tympanos britannicos; e na Beggar's Opera de Gray—protesto do gosto nacional contra a escola italiana, que se riu do protesto.

Carlos, sentando-se junto da irmã, podia pois julgar-se a sós com ella.

—Então a minha bella incognita do dóminó de seda...—principiou elle.

Jenny olhou receiosa para Manoel Quentino.

—Não tenhas mêdo—disse Carlos.—Dorme e ameaça resonar.

—Estás agora convencido, Charles—disse Jenny ainda a meia voz—da verdade do que eu te dizia aquella manhã?

—A respeito?...

—A respeito da tua aventura da noite de carnaval. Cecilia é uma menina bem educada e de grande delicadeza de sentimentos. Deu imprudentemente aquelle passo, que Deus sabe quantos desgostos lhe poderia vir a causar, se a tua generosidade não prevalecesse a final sobre as tuas... loucuras; como ha de continuar a prevalecer ainda, assim o espero. Não estiveste tu mesmo para a perder no conceito dos que a não respeitam, porque a não conhecem? Não terias agora remorsos?

—Mas Cecilia...

—No mesmo dia, em que tu me fallaste n'isso, me veio ella contar tudo. Tambem tenho a sua confiança. E se soubesses com que receios o fez! se visses com que lagrimas não fingidas me interrompeu, quando eu lhe ia a confessar o que pensavas das mulheres, que se encontram sós e mascaradas n'aquelles logares!

—Pois tu disseste-lhe... Ó Jenny!...

—O bastante para a acautelar de passos, como aquelle; visto que nem sempre apparecem protectores que, no meio das suas velleidades, conservem ainda uns restos de sentimentos generosos...

—Valha-te Deus, Jenny! Mas... na verdade que me custa ainda a acreditar! Pois era Cecilia! Confesso-te, Jenny, que nunca suppuz que aquella rapariga tivesse tanta graça, tanta intelligencia, tanto...

—Não é d'essa injustiça que eu desejo ver-te arrependido, Charles, mas antes da do conceito que fizeste de Cecilia, do modo como a trataste, só por a veres onde nem quizeste suppôr que podesse estar tua irmã...

—E repito!—acudiu Carlos, com vivacidade.

—Pois bem, Charles—respondeu Jenny placidamente, mas em tom reprehensivo.—Digo-te eu então que as qualidades, que a vida inteira de Cecilia dão-lhe direito a exigir de ti tanta consideração e estima, como a que dizes ter-me. É ainda hoje a minha melhor amiga.

Carlos olhou para a irmã, admirado; tal era a gravidade, que lhe descobriu no olhar e na voz.

Devemos confessar que elle nunca viu em Cecilia outra cousa mais do que uma rapariga bonita, a qual muitas vezes lhe merecera olhares complacentes, mas de quem tão depressa se esquecia, como d'ella se afastava.

Recordo-me de haver dito, que esta qualidade, de não desafiar immediatamente impressões profundas, caracterisava a especie de belleza, que Cecilia possuia.

Nos seus dotes moraes nunca pensára Carlos; e para que havia elle de pensar n'isso? Por estes motivos a seriedade, de que se revestira subitamente o rosto de Jenny, impressionou-o.

—Bem, Jenny—respondeu elle, fazendo-se serio tambem.—As tuas palavras rehabilitariam até aquelles que precisassem de ser rehabilitados. E Cecilia, creio-o firmemente, não está n'esse caso. Censuras, em tudo isto, só as mereço eu. Hei de provar-te que assim o penso.

Jenny estendeu-lhe a mão.

—Agora reconheço-te pelo que és. Agradecida.

E depois, apontando para Manoel Quentino:

—Escuso de lembrar-te que elle ignora tudo.

—E ficará ignorando.

Manoel Quentino sonhava-se agora no escriptorio, a fazer uma baralhada conta de sommar.

Passados momentos, rodava pelas ruas da cidade a carruagem, que transportava a casa a familia Whitestone.

Das tres pessoas, que ella conduzia, nenhuma fallou durante todo o caminho.