DIPLOMACIA DO CORAÇÃO

A educação commercial de Carlos continuou e com os mais rapidos e auspiciosos progressos. Á segunda noite espantava elle Manoel Quentino, apresentando-lhe os lançamentos, que pela manhã fizera e nos quaes o experimentado guarda-livros nada teve que notar.

A custo pôde convencer o fogoso discipulo de que não convinha que elle proprio escrevesse nos livros geraes, onde era contra as praxes apparecer lettra de mais do que um individuo. Bastava, dizia o velho, e já não era pequeno serviço, que Carlos o auxiliasse no expediente e deixasse tudo preparado para que, ao terminar o seu impedimento, elle, Manoel Quentino, só tivesse a transcrever no Diario e no Razão as transacções operadas durante essa época.

No fim de tres ou quatro serões, Manoel Quentino já não tinha que ensinar mais ao discipulo.

Elle sabia tudo!

Terminaram pois as lições, mas não terminaram com ellas as visitas de Carlos, como seria natural que acontecesse. Mudaram apenas de caracter aquelles serões.

Carlos era agora o que se encarregava da leitura das folhas, com grande mágoa de José Fortunato, que não podia encontrar na diversão metade do prazer que n'ella recebia, quando a leitura era feita por Cecilia.

De mais a mais, Carlos divertia-se muitas vezes á custa do velho. Sabendo de Manoel Quentino que elle era possuidor de varios papeis de credito, raro era o dia em que, no decurso da leitura, não improvisava noticias e insinuações, que faziam entrever uma imminente baixa de fundos e porventura uma banca-rota.

José Fortunato declamava então contra os governos presentes, passados e futuros, com toda a acrimonia que lhe era possivel.

Quando os dois velhos tratavam ás vezes alguma discussão acalorada, Carlos aproveitava a occasião de entrar com Cecilia em um dialogo, cuja indole era cada vez mais perigosa para o coração de ambos. E senão, ouçamos.

Cecilia trabalhava, certa noite, em uma camisa de panninho para o pae.

—Que nome se dá a isso que está a fazer?—perguntou Carlos, curvando-se sobre a costura.

—É uma camisa—respondeu Cecilia, sorrindo. Pois nem conhece!?

—Que é uma camisa sei eu; não perguntava isso; mas... essa costura em que está agora a trabalhar, como se chama?

—Isto? É um posponto.

—Ah! um posponto!... Um posponto é a mesma cousa que um sobre-cosido; pois não é?

Cecilia desatou a rir a esta pergunta.

—Não, senhor, não é. Nem tem nada uma cousa com outra.

—Não?! Pois olhe... parece, porque... posponto é... como quem diz: depois do ponto; sobre-cosido, sobre ou depois do cosido, e portanto... depois do ponto tambem.

—Será; mas... em todo o caso, são cousas diversas.

—Então que differença fazem?

—Ora que curiosidade! Ha de interessar-lhe muito agora conhecer essa differença.

—E porque não? Não vê que ando com vontade de ampliar os meus conhecimentos? Não tem reparado na minha docilidade a ouvir as lições de escripturação?

—Mas essas podem servir-lhe.

—Mas vamos; um posponto é isso; muito bem. E agora um sobre-cosido?

Cecilia, rindo, procurou na obra, que estava a fazer, o exemplo já realisado de um sobre-cosido e mostrou-o a Carlos, dizendo:

—Ahi está um sobre-cosido. Agora estude a differença, a ver se a sabe explicar.

Carlos examinou-o com apparente attenção e a mais composta seriedade.

E Cecilia interrompia o trabalho, só por causa d'isto.

—Então?—perguntou ella maliciosamente, quando Carlos deu mostras de haver terminado o exame.

—Reconheço que de facto são cousas diversas, mas não posso bem dizer em que consiste a differença.

—O que o deve affligir muito.

—Mas diga—insistia Carlos, que parecia devéras empenhado em elucidar este negocio dos pospontos—todas as costuras se fazem a posponto?...

Cecilia não podia escutar com seriedade este inquerito inesperado.

—Não, senhor;—respondeu a rir—conforme a qualidade da obra, assim se prefere a qualidade do ponto.

—Ah! visto isso, o posponto... é um ponto tambem?

—Pois está claro. É um ponto que se dá assim. Ora repare.

E Cecilia, acompanhando a palavra com a acção, principiou a trabalhar com todo o vagar, ao passo que Carlos assistia á demonstração com a attenta seriedade de um discipulo. Ainda que me parece que menos vezes lhe seguiam os olhos os movimentos da agulha, do que se fixavam a admirar a perfeita modelação e delicado colorido da mão que a movia.

—Repare—dizia Cecilia—dá-se, supponhamos, o primeiro ponto; maior ou menor, conforme a delicadeza da obra, já se sabe. Assim. Ora agora, a agulha entra aqui mesmo pelo meio d'este primeiro ponto... Vê?... E vae saír adiante, de maneira que este segundo ponto tenha o mesmo comprimento do primeiro. Entende? A terceira vez entra por onde saíu a primeira, a quarta por onde saíu a segunda... e assim por diante... Entende agora?

—Muito bem. E o sobre-cosido?

—Mas como lhe deu para querer saber doestas cousas?

—É uma esquisitice. Concordo. Mas... então que quer? Mau é que eu tenha um d'estes desejos. Incommodo-me deveras, se os não satisfaço.

—Ah! Não sabia que era assim caprichoso!

—E não concebe esta maneira de sentir?

—Eu, não.

—Não diga que não. É impossivel. A imaginação feminina, sem duvida mais delicadamente sensivel do que a nossa, não póde ignorar estes pequenos caprichos. O capricho é, a meu ver, uma prova de superioridade moral em que o tem. Vamos; termine a minha lição.

—Então que quer saber agora?

—Que é um sobre-cosido?

Cecilia condescendeu ainda em lhe explicar o que era o sobre-cosido, como já lhe explicára o que era o posponto. Carlos deu-se no fim por satisfeito.

Agitou-se ainda algum tempo a discussão a respeito de assumptos d'esta natureza.

Carlos foi durante ella sempre serio; Cecilia, a cada momento, a interrompia com o riso, que lhe desafiava a estranha lição, que nunca esperára ter de dar a um discipulo d'este genero.

Em quasi todos os serões, passados em casa de Manoel Quentino, os colloquios entre Carlos e Cecilia versaram sobre objectos de igual transcendencia e sustentaram-se em um tom da mesma gravidade que este, que registamos.

Ahi estão uns colloquios inoffensivos e inconsequentes, pensará talvez o leitor. Pois engana-se, se pensa assim. Recorde-se da sentença de quem, n'estas cousas de amor, escreveu ex-professo:

Parva leves capiunt animos.

De facto, nada ha de tanta influencia para o coração como um colloquio assim, bem futil, bem insignificante, no estado a que haviam chegado os sentimentos de Carlos e de Cecilia.

Quanto mais ligeiro, quanto mais pueril é o assumpto de um dialogo d'estes, tanto mais se empenham os corações dos que o sustentam.

Os dialogos amorosos, que estamos costumados a escutar entre o galan e a primeira dama, no tablado dos theatros, ou a ler nos capitulos dos romances, dialogos cortados de interjeições e cheios de subtis theorias do mais acrisolado sentimento, são excepções na vida real; e, quando se dão, sáe-se d'elles mais livre, mais disposto a esquecer, menos propenso a sonhar; servem como de expansão aos affectos accumulados—expansão em que estes ás vezes completamente se dissipam. Mas os constrangimentos, os silencios, dos quaes a imaginação em vão procura livrar-se, e sobre tudo o conversar aturado sobre mil cousas futeis e indifferentes, isso sim, que é bem mais para temer; porque, emquanto dura a troca reciproca de formulas insignificantes, o coração põe em campo outros emissarios secretos e invisiveis, que adiantam consideravelmente as negociações pendentes e conseguem realisar a entrega da praça, sem o minimo combate manifesto.

Digam-o os numerosos pares, para quem voam as horas e desapparece o mundo, de enlevados que se entregam a esses interminaveis dialogos, motivo de zombarias apparentes e de occultas invejas dos que os não podem gosar; digam se, quando mais sinceros sentiam em si os affectos, eram metaphysicas e transcendentes especulações sobre o amor o que assim lhes absorvia as attenções e os cuidados; digam se, quando, ao terminar um d'esses felizes dias, tentavam reproduzir as impressões recebidas no decurso d'elle, recordando as palavras ditas e escutadas n'aquellas longas entrevistas, outra cousa lhes conseguia avivar a memoria que não fosse dialogos pouco dramaticos, banalidades sobre assumptos indifferentes, mas sob cujo disfarce o coração achára meio de dizer muito, e até mais eloquentemente, do que ainda poeta algum o pôde exprimir—nem o proprio Petrarca nos seus trezentos e dezoito sonetos.

Isto aconteceu a Carlos Whitestone. Poucas vezes voltára a casa mais possuido d'essa intima e indefinida alegria de quem assiste em si ao ateiar de uma paixão, do que na noite, em que se verificou o dialogo, que o leitor provavelmente julgou sem consequencias.

Prolongou-se este estado de cousas. O medico, a quem fora confiado o tratamento de Manoel Quentino, prudente em demasia, apenas lhe promettia esperanças de o deixar saír passada uma semana mais.

Carlos não pensava com frieza de animo no termo d'aquelle praso. Poderia, sem causar estranheza, continuar, ainda depois d'elle, as visitas que lhe eram já tão necessárias? Até alli servia-lhe o pretexto de vir dar contas a Manoel Quentino do serviço da manhã; mas depois?

Carlos continuou a ser diligente nos negocios do escriptorio. Mr. Richard ainda não acabára de conformar o espirito áquella mudança do filho.

Em casa de Manoel Quentino, só este era quem talvez não suspeitava um segundo motivo na assiduidade de Carlos. Antonia e José Fortunato já a commentavam havia muito.

E Cecilia? Respondam por mim as leitoras.

Uma noite ia o snr. José Fortunato a retirar-se, e entre elle e Antonia travou-se, já no portal, o seguinte dialogo:

—Então, snr.ª Antonia, que lhe parece este inglez aqui sempre mettido?

—Que quer que lhe faça? O que me admira é o snr. Manoel Quentino não reparar...

—Mas diga-lhe que...

—Eu?! Deus me livre! O snr. José Fortunato é quem...

—Eu?! Nada; n'essa me não metto; mas a snr.ª Antonia tem quasi obrigação de...

—Eu lhe digo... Eu, como o outro que diz, não quero fallar, sem primeiro me encher de razão... Hei de tirar umas informações a respeito do inglez, e depois...

—Informações de quem?

—Mesmo defronte da casa d'elle vive uma cunhada do homem da sobrinha de uma comadre minha, de quem eu sou muito conhecida e amiga; ámanhã, se tiver tempo, sempre hei de lá chegar. Porque a mim consta-me que este rapaz é um estoira-vergas dos meus peccados...

—Elle lá se vê!

—Ora o que nos havia de apparecer!

E os dois despediram-se; José Fortunato para ir curtir em casa as cruas mágoas do coração; Antonia para assentar, no repouso do travesseiro, sobre a maneira de obter da cunhada do homem da sobrinha da sua comadre as informações de que precisava, para se encher de razão.