O que tremia de medo era Maffei.
O conforto da riqueza e o roçar áspero dos anos poiram-lhe o vigor primitivo; o remorso, colaborando nessa obra de destruição, acaba por extinguir-lhe a força moral, que dantes lhe luzia feroz no olhar. Sentia-se apequenado em presença de Miguel a quem tinha por morto.
O vulto transformado da sua vítima, que já em sonhos o houvera perseguido, aparecia-lhe agora, real, palpável, como se fora a própria imagem do remorso; afigurava-se-lhe Miguel salvo naquele instante, saindo do mar; parecia-lhe até ver a umidade do cabelo e sentir-lhe o cheiro de sangue.
O olhar fixo e desvairado do moço refletia-se-lhe na consciência, como uma luz condenatória e daí persistia a fitá-lo; o sorrir cadavérico de Miguel derramava-se como um filtro de ironias pelos membros lassos do velho e o fazia estremecer; era um sorrir trágico de caveira a fitá-lo com os dentes ameaçadores e ferozes.
A imobilidade do moço impunha ao outro a mesma imobilidade, e no entanto a arrogância daquele não incutia neste o mesmo sentimento; Maffei, ao contrário, cada vez mais se desapercebia de ânimo e forças.
Enquanto isto sucedia no jardim, o baile continuava a folgar indiferente.
Miguel, afinal, chegando à cara pálida de Maffei a boca arreganhada, rebentou medonha e cavernosamente:
— Velho amaldiçoado! mau! ambicioso! és o único obstáculo de minha ventura! és a minha asa negra! o meu pesadelo! a minha raiva! a minha desgraça! o meu ódio! o meu mal! o meu crime! Queres, bruto, regenerar-te? queres por uma vez abaixar este braço, que a tua maldade levantou sobre a tua cabeça, velho estúpido?! dá-me a mão de tua filha. Já! Peço-ta de joelhos, cão! Responde!... Queres?!...
Maffei estremeceu como se fora acordado de um sonho mau por uma chuva de pedras. As palavras de Miguel despertaram-no, chamando-lhe o sangue à cabeça com o efeito de um aluvião desencontrada de bofetadas, voltou a si e fez um movimento para erguer-se.
— Responde! Gritou asperamente Miguel, descarregando-lhe com força nos ombros os punhos impacientes e nervosos. Responde! E o obrigou a ficar sentado. Responde!
— Nunca! atroou energicamente Maffei e ergueu-se de ímpeto!
Miguel, porém, em meio da resposta, rápido abarcara-lhe o pescoço, encravando-lhe pelas carnes as unhas doidas e assanhadas. Um ronco surdo e gutural fundiu-se confusamente na turbulência aguardentada do baile.
E o moço não desgarrava da vítima as unhas envenenadas pela cólera velha e sedenta de vingança, continuava a asfixiá-la.
Como uma lagarta no fogo o velho torcia-se, esforçando-se por gritar e erguer-se. Embalde! Miguel lograra pôr-lhe um joelho de bronze sobre o esôfago e, empregando com bruteza toda força do corpo, oprimia-o contra a pedra do banco.
Roxidão apoplética cobriu a cara e as unhas do pai de Rosalina; um suor abundante e úmido escorria-lhe da cabeça, inundando as mãos frenéticas do assassino.
E o roncar moribundo e bestial do velho, mal casado com o ranger dos dentes do moço, contrastava com a turbulência folgazã e sensual da dança, da embriaguez e do jogo, que além fermentavam nos salões do baile, como fermentam as larvas numa podridão.
Miguel, no fim de algum tempo, desgarrou saciado a presa e o cadáver do antigo pescador caiu-lhe pesado e retorcido aos pés, gosmando pelas ventas e por entre os dentes um muco grosso e esbranquiçado.
O moço contemplava-o sorrindo, alimpar tranqüilamente as mãos úmidas e pegajosas nas fraldas da sua blusa. Depois, abaixou-se e fitou satisfeito o corpo de Maffei, observando minuciosamente se estava bem morto, mexia-lhe com as pálpebras, passava-lhe os dedos no vítreo ensangüentado dos olhos e esbugalhava-os mais, puxava-lhe as barbas empastadas de gosma, mexia-lhe com a língua e afinal bem certo que estava morto escarrou-lhe com desprezo à cara e em seguida ergueu-se, empurrando-o desdenhosamente com o pé.
Isto feito, fugiu.
Ao chegar à rua, parou, tomou com ambas as mãos o peito e respirou livremente o ar da noite, como quem se livrasse de um peso horrível.
— Finalmente! disse ele e correu à tasca.
Sombra da Noite dormia. Acordou-o.
— Partamos, disse ele.
— Para onde?
— Para qualquer parte.
E desapareceram.