Urupês (5ª edição)/Os Pharoleiros
Os Pharoleiros
AVIO?
Dava azo á duvida uma luz vermelha a piscar na escuridão da noite. Escuridão, não direi de breu, que não é o breu de sobejo escuro para referir um negror daquelles. De cego de nascença. vá.
Ceu e mar fundia-os um só carvão, sem fresta nem pique além da pinta vermelha, que, subito, se fez amarella.
— Lá mudou de côr, é pharol.
E como era pharol a conversa recahiu sobre pharóes. Eduardo interpellou-me de chofre sobre a ideia que eu delles fazia.
— A ideia de toda a gente, ora essa!
— Quer dizer, uma ideia falsa. "Toda a gente" é um monstro com orelhas d'asno e miolos de macaco, incapaz d'uma ideia sensata sobre o que quer que seja. Tens na cabeça, respeito a pharol, uma ideia de rua, recebida do vulgo e nunca recunhada na matriz d'uma impressão pessoal. E'rro?
— Confesso-me capaz de estarrecer um auditório de casaca, conferenciando sobre o thema: mas não affirmo que o pharol decripto se pareça com algum.
— Pois asseguro-te eu, sem menospreço do teu engenho, que tal conferencia, ouvida por um pharoleiro, poria o homem de olho parvo, a dizer como o outro: se percebo, sebo!
— Acredito. E entenderia melhor a tua séca? — retorqui abespinhado.
— E’ de crer. Já vivi uma temporada inesquecivel no pharol dos Albatrozes, e falaria de cadeira.
— Viveste em pharol! — exclamei com espanto.
— E lá fui comparsa n'uma tragedia nocturna de arrepiar cabellos. O escuro desta noite evoca-me o tremendo drama…
Estavamos ambos de bruços na amurada do "Orion", em hora propicia ao esbagoar d'um dramalhão inedito. Esporeado na curiosidade, provoquei-o:
— Vamos ao caso, que estes negrumes clamam espectros que o povoem. E' calamidade á Shakespeare ou á Ibsen?
— Assigna o meu drama um nome maior que o de Shakespeare…
— ???
— …a Vida, a grande mestra dos Shakespeares maiores e menores.
Eduardo começou do principio.
— O pharol é um romance. Um romance iniciado na antiguidade, com fogueiras armadas nos promontorios, para norteio das embarcações de remo, e continuado seculos em fóra até nossos possantes holophotes electricos. Emquanto subsistir no mundo o homem, o romance "Pharol" não conhecerá epilogo. Monotono como as calmarias, embrecham-se nelle, a espaços, capitulos de tragedia e loucura — gravuras pungentes de Doré quebrando a monotonia de um diario de bordo. O caso dos Albatrozes foi um delles.
Gerebita metteu-se no pharol aos vinte e tres annos. E' raro isso.
— Quem é Gerebita?
— Sabel-o-ás em tempo. E' raro isso porque no geral só se mettem nas torres maritimos erados, quarentões batidos pela vida e descrentes das suas illusões. Deixar a terra na quadra verdolenga dos vinte annos é apavorante. A terra!... Nós mal damos tento da nossa profunda adaptação ao meio terreno. A sua fixidez, o variegado dos aspectos, o bulicio humano, a cidade, os campos, a mulher, as arvores... Sabem os pharoleiros melhor do que ninguem o valor dessas teias.
Enlurados num bioco de pedra, tudo quanto para nós é sensação de todos os instantes nelles é saudade ou desejo. Cessam os ouvidos de ouvir a música da terra, rumorejo de arvoredo, vozes amigas, barulho da rua, as mil e uma noites d'uma polyphonia que nós sabemos que o é, e encantadora, unicamente quando uma segregação prolongada nos ensina a lhe conhecer o rythmo. Cessam os olhos de rever as imagens que desde a meninice lhes são habituaes. Para os ouvidos só ha ali, dia e noite, anno e anno, o marulho das vagas ás chicotadas no enrocamento da torre. Para a vista, a eterna massa que ondula, ora torva, ora azul.
Variante unica trazem-n'a as velas que passam de largo, donairosas como garças, ou os transatlanticos pennachados de fumo.
Figura tu a vida de um homem, desraigado á querencia, e assim posto, qual galé, dentro d'uma torre de pedra, grudada como craca a um ilhéo tambem de pedra. Terá poesia de longe; de perto é allucinante.
— Mas o Gerebita...
— Uma leitura de Kipling despertou-me a curiosidade de conhecer um pharol por dentro.
— "O perturbador do trafego?"
— Parabens pela argucia. Foi justamente a historia do Dowse o ponto inicial do meu drama.
Esse desejo incubou-se-me cá dentro, á espera d'occasião para grelar.
Certo dia fui espairecer ao cáes, e lá estava, de mãos ás costas, a seguir o vôo dos joão-grandes e a notar a gamma dos verdes luzentes que a sombra dos barcos ondeia na agua represada dos portos, quando abicou uma lancha e vi saltar em terra um homem de feições duras e pelle encorreada. Ao passar por pé d'um magote de catraeiros, um delles chasqueou em tom amolecado:
— "Gerebita, como vae a Maria Rita?
O desembarcadiço rosnou um palavrão de grosso calibre, e seguiu caminho, de sobrecenho carregado.
Interessou-me aquelle typo.
— "Quem é? indaguei.
— "Pois quem ha de ser senão o pharoleiro dos Albatrozes? Não vê a lancha?
De facto, a lancha era do pharol. A velha ideia deu-me cotoveladas: é hora!
Fui-lhe no encalço.
— "Sr. Gerebita..."
O homem entreparou, como admirado de ouvir-se nomear por bocca desconhecida. Emparelhei-me com elle e, enquanto andavamos, fui-lhe expondo os meus projetos.
— "Não póde ser, respondeu, o regulamento prohibe sapos na torre; só com ordem superior.
Ora eu tenho corrido mundo, sei que marosca é essa de ordens superiores. Metti a mão no bolso e cochichei-lhe o argumento decisivo. O pharoleiro reluctou uns instantes, mas corrompeu-se mais depressa do que supuz e, guardando o dinheiro, disse:
— "Procure o Dunga, patrão da "Gaivota Branca", terceiro armazem. Diga-lhe que já falou commigo. De quinta-feira em diante. E bico, hein?
Prometti-lh'o caladissimo e tornei ao cáes em cata do Dunga. Que sim — foi a resposta do ilhéu palavroso, logo que expuz o negocio — já fizera isso certa vez a "outro maluco", e sabia prender á lingua para não atazanar a vida dos amigos.
E como me informasse do pharoleiro:
— "E' Gerebita, d'appellido ganho no "Puru's", onde serviu como grumete. Ao depois se metteu na lanterna, pr'amor d'amores, o aiarve, como se faltassem ellas por ahi, e bem catitas. Mulheres! A mim é que não empecem, as songuinhas. O demo as tolha, que eu...
E foi pelas mulheres além, a dar de rijo, com razões nem melhores nem peiores que as de Schopenhauer d'alto bordo.
No dia aprazado, antemanhã, a "Gaivota", largava de rumo ao pharol. Saltei n'um atracadouro tosco, de difficil abordagem. Encontrei o pharoleiro occupado em pulir os metaes da lanterna. Recebeu-me de boa sombra, largando o esfregão para fazer as honras da casa. Examinei tudo, dos alicerces ao lanternim, e á hora d'almoço já entendia de pharol mais que uma encyclopedia. Gerebita deu trela á lingua e falou do officio com muita psychologia e psychologia melhor do que a que um romancista põe num romance maçador. Tambem narrou a sua vida desde menino, a grumetagem no "Puru's", a sua paixão pelo mar e, por fim, a entrada para o pharol aos vinte e tres annos de idade.
— "Porque, assim tão moço?
— "Caprichos do coração, má sorte, coisas... respondeu com ar triste; e accrescentou após uma pausa, mudando de tom:
— "Pois a vida é cá isto que vê. Boasinha, hein? Entretanto, boa ou má, temos, os pharoleiros, um orgulho: sem nós, essa bicharada de ferro que passeia n'agua fumando seus dois, seus tres charutos..
— "Lá vem um! — interrompeu-se, fisgando com a luneta uma fumaça remota.
— "Bandeira allemã, duas chaminés, rumo sul. Ha de ser um "Cap", o "Trafalgar", talvez. Seja lá que diabo fôr, vá com Deus. Mas como ia dizendo, sem os pharoleiros a manobrar a "optica" esses comedores de carvão haviam de rachar atoinha ahi pelos bancos. Basta cahir a cerração e põem-se elles tontos, a urrar de medo pela bocca das sereias, que é mesmo um cortar a alma á gente. Porque, então, nem pharol nem caracol. E' a cegueira. Navegam com a morte no leme. Fóra disso salva-os o foguinho lá de cima. Pouco antes da minha entrada para aqui houve desgraça. Um cargueiro do "Bremen" rachou o bico alli no Capellão... Quem é o "Capellão?" Ah! ah! o "Capellão!" Pois o "Capellão" é o raio da terceira pedra a boreste. São tres deste lado, a "Menina", que é a primeira, a "Gurutuba" que é a do meio. A criminosa é o "Capellão" que reponta mais ao largo e só mostra a corôa nas grandes vasantes. Cá a bombordo ainda ha duas. a "Virgem" e a "Maldicta", onde bateu o "Rotterdam".
— "E aquella lisinha, acolá?
— "Uma coitada que nem nome tem. E' mansa, está muito perto da terra, não faz mal a navio. Ali mora um anequim, bichanca do tamanho do diabo, que gosta de virar canôas. Mas, aqui para nós, moço, isto é embromação. Peixe mora em todo lugar, não tem toca como bicho de terra. E' abusão de pescador. Quando ha mar, não se enxerga nada por ali; mas se a agua serena, e vem vindo a vasante, vai appareccendo um lombo de pedra lisa com geito de peixe. Passa um pescador atolambado. vê aquillo de longe. E' anequim! é anequim! e toca a safar com o medão n'alma. Se acontece embrabecer a agua, e dá temporal, e a canôa vira: qu'é de Fulano? tá, tá, tá, foi o anequim! Toda a gente péga feito mulher velha: foi o anequim do pharol! Ora ahi está como são as coisas. Elle ha muito anequim e tintureiras por aqui. Onde é mar sem cação? Mas dizer que um tal móra ali, é embroma.
E na sua pinturesca linguagem de maritimo, que ás vezes se tornava prodigiosamente technica, narrou-me toda a vida daquellas paragens maldictas. Falou de como, segundo a tradição, se foram baptisando os recifes; falou dos crimes de cada um, das hecatombes periodicas de aves nocturnas que, cegadas pela luz, batem de peito contra os vidros da lanterna, juncando o chão de corpinhos latejantes; das medonhas tormentas nas quaes o pharol estremece como a tiritar de pavor. De que não falou Gerebita, naquelle inesquecivel dia?
— "E o ajudante? Tem-n'o cá? — perguntei.
O rosto do meu pharoleiro mudou de expressão. Vi de relance que eram inimigos.
— "E' aquelle estupor que pesca, — disse apontando da janella um vulto immovel, acocorado n'um penedo.
— "Está a apanhar garoupinhas. E' o Cabrea. Máu companheiro, máu homem...
Entreparou. Percebi que mascava uma confidencia difficil. Mas a confidencia denunciou-se apenas. Gerebita sacudiu a cabeça e murmurou como de si para si:
— "Está cá de pouco, e é o unico homem no mundo que não podia cá estar! Já reclamei, já mostrei o perigo ao capitão do poto, mas qual!...
Estranha creatura, o homem! Isolados do mundo n'aquella fragua, ambos naufragos da vida, o odio os separava... Não faltavam, entretanto, accomodações no pharol para as familias dos seus guardiães. Porque não as tinham ali? Seria um bocado de mundo a lenir as agruras do emparedamento. Interpellei-o, mas Gerebita retrucou-me de modo enviezado:
— "Familia não tenho, isto é, tenho e não tenho. Tenho, porque sou casado, e não tenho porque... Historias! Estas coisas de familia é bom que fiquem cá com a gente.
Notei de novo que, a pique d'uma revelação, mascava o segredo, por desconfiança ou pudor. Suas feições endureceram. Sombras más annuvearam-lhe a physionomia. E mais torvo inda me pareceu quando Cabrea entrou, sobraçando um balaio de pescado Typo de má cara, passou, em direitura á coisinha, sem nos volver um olhar. Mal se sumiu o bruto Gerebita exclamou "Raio do diabo!" perspegando n'um caixote expiatório um murro de fender pinho. Depois:
— "O mundo é tão grande, ha tanta gente no mundo, e cae-me aqui o unico companheiro que eu não podia ter...
— "Porque?
— "Porque?... Porque... é um louco.
Entre o primeiro e o segundo "porque" notei transição radical. Dubio o primeiro, o segundo afigurou-se-me resoluto, como illuminado pelo clarão de uma ideia brotada no momento.
Desde esse dia nunca mais Gerebita abandonou o thema da loucura do outro. Demonstrava-m a de mil maneiras.
— "E aqui, onde os sãos perdem a tramontana, — argumentava — um já assim rachado de telha aos tres por dois rebenta como bomba em fogueira. Eu jógo que não vára o mez. Não vê os seus modos?
Metade por suggestão, metade por observação leviana, razoavel me pareceu a prophecia, e como Gerebita sem cessar malhasse na mesma tecla, acabei por convencer-me que o casmurro era um fadado ao hospicio, com pouco tempo de equilibrio nos miolos.
Um dia Gerebita abordou a questão nestes termos:
— "Quero que o senhor me resolva um caso: estão dois homens sós n'uma casa; de repente um enlouquece e rompe, como cação esfomeado, sobre o outro. O outro deve deixar-se matar como um porco ou tem o direito de atolar a faca na garganta do bicho?
Era por demais clara a consulta. Respondi como um rabula positivo:
— "Se Cabrea enlouquecesse e te aggredisse, não havendo soccoro á mão, matal-o seria um direito natural de defesa. Matar para não morrer não é crime, mas isto só em ultimo caso, você comprehende.
— "Comprehendo, comprehendo, respondeu-me distrahidamente como quem lá segue os volteios duma ideia secreta e, depois de longa pausa,
— "Seja o que Deus quizer" — murmurou entre si, recahindo em scismas.
Deixei-me ficar á janella a ver cahir a tarde. Nada mais triste do que uma ave-maria no ermo. A tréva espessára as aguas e absorvia no céo os derradeiros palores da luz. No poente, um leque aluarado vermelhava nas varetas, com dedadas sangrentas de nuvens a barral-o de listrões horizonaes. Triste... A ardosia do mar, as primeiras estrellinhas entreluzindo a medo, o marulho na pedra, "tchá", "tchá", compassado, eterno... A alma confrangeu-se-me de angustia. Vi-me naufrago, retido para sempre n'um navio de pedra, grudado como desconforme craca na pedranceira da ilhota. E pela primeira vez na vida senti profundas saudades dessa coisa sordida a mais reles de quantas inventou a civilisação, o "café", com o seu tumulto, a sua poeira, o seu bafio a tabaco e a sua freguezia habitual de vagabundissimos "agentes de negocios"
Correram dias. Minto. No vazio daquele dissaborido viver no ermo o tempo não corria — arrastava-se com a lentidão da lesma por sobre o chão liso e sem fim.
Gerebita tornara-se enfadonho. Não mais narrava pinturescos incidentes da sua vida de marujo. Afferrado á idéa fixa da loucura do Cabrea, só cuidava em demonstrar-me os progressos della. Fóra desse thema sinistro sua occupação era seguir de olhos os navios que repontavam ao largo té vel-os sumirem na curva das aguas. Velas, poucas alvejavam, tirante barquinhas de pesca. Mas uma que surgia lá nos levava os olhos e a imaginação.
Como casa bem com o mar o barco de vela! E que sordido baratão craquento é ao pé delle o navio de vapor!
Escunas, corvetas, pequeninos "cutters", fragatas, lugres, brigues, hiates... O que lá vae passando de leveza e graça!... Substituem-n'as, ás garças leves, feios escaravelhos de ferro e pixe; a ellas, que viviam de brisas e ventos, negros comedores de carvão, bicharocos que mugem roncos de touro enrouquecido.
Progresso amigo, tu és commodo, és delicioso, mas feio a valer.
Que fizeste da coisa linda que é a vela enfunada? do barco á antiga, onde resoavam canções de maruja, e todo se enleava de cordame, e trazia gageiro na gavea, e lndas de serpentes marinhas na bocca dos marinheiros, e a Nossa Senhora dos Navegantes em todas as almas, e o medo das sereias em todas as imaginações?
Desfez-se a poesia do reino encantado de Amphitrita ao ronco dos "Lusitanias", hoteis ambulantes com "garçons" em vez de "lobos do mar", incaracteristicos, cosmopolitas, sem donaire, sem capitães de suiças, pettorescos no falar como seiscentos milhões de caravellas. O carvão sujou a aquarella maravilhosa que Hannon e Ulysses vinha pintando o veleiro na tela oceanica...
— Se pára o caso dos louco e te mettes por intermezos poeticos para uso de meninas olheirudas, vou dormir. Volta ao pharol, romanticão de má morte.
— Devia castigar-te sonegando á tua curiosidade o epilogo do meu drama, ó filho lo Café e do carvão.
— Conta, conta.
— Certa tarde Gerebita chamou a minha attenção para o aggravamento da loucura de Cabrea e adduziu varias provas concludentes.
— "Queira Deus não seja hoje!...
— "Tens medo?
— "Medo? Eu? De Cabrea?
Queria que tu visses a extranha expressão de ferocidade que lhe endureceu o roslo!...
A conversa parou ahi. Gerebita chupava cachimbadas nervosas, fechado de sobrecenho como quem rumina uma idéa fixa. Deixou-me e logo em seguida subiu. Como anoitecesse, recolhi pouco depois e deitei-me. Dormi e sonhei. Sonhei um sonho agitadissimo, guinhoesco, com luctas, facadas. o diabo. Lembro-me que, aggredido por um facinora, desfechei contra elle cinco tiros de revólver; as balas, porém, grudaram-se á parede e deram de resoar e barulhar d'um modo tal que me despertou. Mas,acordado, continuei a ouvir o mesmo rumor, vindo de cima, da lanterna. Presinto a catastrophe esperada. Salto da cama, e aguço o ouvido: barulho de lucta. Corro á escada, galgo-a aos tres degráos, mas no topo esbarro com a porta fechada. Tento abril-a; não cede. Escuto: era de facto lucta. Rolavam corpos no chão, fazendo retinir os vidros da lanterna, e ouvia-se um resfolegar surdo entremeiado de embates contra os moveis. Completa escuridão. Nenhuma restea de luz coava para a escada.
Minha situação era esquerda. Ficar ali, inutil, quando portas a dentro dois homens se entrematavam?
Estava nessa dubiedade quando um choque violento escancarou-me a porta Um clarão de sol chofrou-me OS olhos. Senti nas pernas um tranco e rodei escada abaixo, de cambulhada com dois corpos engalfinhados. Ergui-me, tonto, e vi em rebolo no chão os dois pharoleiros atracados. Atirei-me á lucta em auxilio de Gerebita.
— "Dois contra um ! gemeu Cabrea suffocado. é cobardia!
Pela primeira vez lhe ouvia a voz, e hoje noto que nada nella denunciava loucura. No momento pensei diversamente, se é que pensei alguma coisa.
Gerebita, com grande assombro meu, tambem me repelliu.
— "Não, não! Eu só!
Nisto um pégão de nortada, varrendo a torre, trancou a porta do lanlernim com estrondo. Envolveu-nos de novo a escuridão.
Começa aqui o horror.
Os rugidos que ouvi, os arrancos e sacões formidaveis da lucta nas trevas, a minha anciedade... Estão ahi uns minutos de vida que não desejo ver reproduzidos.
Perdi a noção do tempo. Durou muito aquilo? Não sei dizer. Só sei que, a tantas, ouvi, escapo ao peito de Gerebita, um urro de dor, e logo em seguida uma imprecação, desgraçado", cujas derradeiras syllabas morreram n'um trincar de dentes atassalhando carnos. Cabrea grugulejou uns roncos que se casaram com o arquejar do peito de Gerebita. A lucta esmoreceu..
Sem palavras na bocca, cegado pèla escuridão, eu só ouvia, fóra, os uivos da nortada, e ali, aquelle arquejo do vencedor exhausto, cahido á beira do vencido. Com os olhos da imaginação eu via esse quadro, que com os da cara enxergava tanto como se tivera a cabeça envolta em velludo negro.
Não te conto os pormenores do epilogo. Obtive luz e o que vi não te conto. Não te descrevo o hediondo aspecto de Cabrea, com a carotida estralhaçada a dente, cahido n'um lago de sangue. Nem te digo o estado de Gerebita, com a cara e o peito vermelhos, a mão sangrenta com um dedo a menos, estatelado no chão sem sentidos. Nem te conto os meus transes diante daquelles corpos martyrisados, áquella hora da noite, daquella terrivel noite, negra como esta e sacudida por um vento do inferno...
Na manhã seguinte Gerebita pousou a mão no meu hombro e disse:
— "O mar não leva daqui os corpos á praia. O mundo não precisa saber de que morreu Cabrea. Cahiu n'agua, — morte de marinheiro, e o moço é testemunha de que matei para não morrer. Foi defesa. Agora vae jurar-me que isto ficará entre nós.
Jurei-o lealmente, tocando de leve a mão mutilada. E elle, num accesso de infinito desalento, quedou-se immovel, a olhar para o chão, murmurando insistentemente:
— "Eu hem avisei. Não me acreditaram. Agora, está ahi, está ahi, está ahi....
Nesse mesmo dia veiu buscar-me o Dunga. Mal a "Gaivota" largou, narrei-lhe a morte do pharoleiro, romanceando-a: Cabrea, louco, a despenhar-se torre abaixo e a sumir-se para sempre no seio das ondas.
Dunga, assombrado, susteve no ar os remos.
— "Pois morreu? e louco?
— "Está claro!
— "Claro lhe parece, que a mim...
— "Conhecia-o?
— "Não conhecia outra coisa. Des'que furtou a Maria Rita...
— "Que Maria Rita?
— "Pois a Maria Rita, mulher do Gercbita, então não sabe? que elle seduziu, hom'essa.
Abri a minha maior bocca e arregalei o que pude os olhos.
— "Como sabe disso?
— "E' boa. Sei porque sei, como sei que aquella gaivota que ali vae é uma e que este mar é mar. A Maria Rila era uma morena de truz, perigosa como o demo. O tolo do Gerebita derreou-se d'amores pela bisca e lá casou. E vae ella, a songuinha, mal o homem sahia no "Puru's", mettia em casa ao Cabrea. E nesse jogo viveram até que um dia fugiram juntos para outra terra. O pobre do Gerebita, se não acabou de paixão, é que é teso. Mas entrou para o pharol, o que é tambem um modo de morrer p'r'o mundo. Pois bem. A bola vira, o tempo corre, e vae senão quando quem mette o Governo no pharol, em lugar do defunto Gavriel? Ao Cabrea! Ao Cabrea que tambem andava descrente da vida porque a Rita fugira com terceiro. Coisas do mundo. Agora diz-me V. S. que o homem enlouqueceu e rodou do penedo e lá o róe o peixe. Está bem. Antes assim. Que do contrario era em ponta de faca que aquillo acabaria.
Calei-me. Ha situações na vida em que as ideias embaralham de tal arte que é de bom conselho deixal-as assentarem-se de per si, como liquidos lurvos. Eis como...
— … o grande Eduardo foi empulhado por um assassino vulgar!
— Perdão. O facto de se não manejarem floretes não tira áquelle pugilato o caracter de duello.
— “Cavalleria rusticana” então?
— E porque não?
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.