Urupês (5ª edição)/O engraçado arrependido

O engraçado arrependido



RANCISCO Teixeira de Souza Pontes, galho bastardo duns Souza Pontes de trinta mil arrobas, afazendados no Barreiro, aos 32 annos de idade entrou a pensar sériamente na vida.

Alé ali, como de natural engraçado, vivera á conta de veia comica, e com ella amanhára casa, mesa, vestuario e o mais. Sua moeda corrente eram micagens, pilherias, anecdotas de inglez e tudo quanto bole com os musculos faciaes do animal que ri, vulgo homem, repuxando risos ou matracolejando gargalhadas.

Sabia de cór a Encyclopedia do Riso e da Galhofa de Fuão Pechincha, a creatura mais dissaborida que Deus botou no mundo, mas era tal a arte do Pontes, que as semsaborias mais relamborias ganhavam na sua bocca um raro chiste e os ouvintes babavam de puro gozo

Para arremedar gente ou bicho era um genio. A gamma inteira das vozes do cachorro da acuação aos caitetu’s ao uivo á lua, e o mais, rosnado ou latido, assumia em sua bocca perfectibilidade capaz de illudir aos proprios cães, e á lua.

Tambem grunhia de porco, cacarejava de gallinha, coaxava de untanha, rallava de mulher velha, choramingava de fedelho, silenciava de deputado governista ou perorava de patriota em sacada. Que vozeio de bipede ou quadrupedo não copiava elle ás maravilhas, em havendo na sua frente um auditorio bem fornido dos "musculos da alegria" que a Sra. Albertina Berta inventou?

Descia outras vezes á prehistoria. Como fosse d'algunas luzes, quando os ouvintes não eram pecos reconstituia para gaudio da sciencia delles os vozeirões paleontologicos dos bichos extinctos, roucos de mamutes amorosos das mastodontas no cio, ou berros de estegosaurios ao avistarem-se com "homos" pelludos, repimpados nos fétos arboreos, coisa muito de rir e divulgar a sciencia do sr. Barros Barreto.

Na rua, se pilhava um magote d'amigos parados á esquina, approximava-se de mansinho e "nhoc!" arremessava um bote de munheca á barriga da perna mais a geito. Era de ver o pinote assustado e o "passa!" nervoso do incauto, e logo em seguida as risadas sem fim dos outros. e a do Pontes, o qual gargalhava d'um modo todo seu, estrepitoso e musical — musica d'Offenbach. Pontes ria parodiando o riso normal e espontaneo da creatura humana, unica que ri além da raposa bebeda, e estacava de golpe, sem transição, cahido n'um serio de irresistivel comico.

Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas acções mais triviaes da vida, o raio do homem differençava-se dos demais no sentido de amolecal-as prodigiosamente.

E chegou a ponto que escusava abrir a bocca ou esboçar um gesto para torcer em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto. espirravam risos; se abria a bocca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os cóses, terceiros desabotoavam os colletes. Se entreabria o bico, nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, eram guinchos, engasgos, fungações e asphyxias tremendas.

— E' da pelle, este Pontes!

— Basta, homem, você me afóga!

E caso o pandego se innocéntava, com cara palerma:

— Mas que estou fazendo? Se nem abri a bocca...

— Quá, quá, quá! — a companhia inteira, desmandibulada, chorava no espasmo supremo dos risos incoerciveis.

Com o decorrer do tempo não foi preciso mais que seu nome para deflagrar a hilaridade.

Pronunciando alguem a palavra "Pontes", accendia-se logo o estopim das fungadellas pelas quaes o homem se alteia acima da animalidade que não ri.

Assim viveu até á edade do Christo, numa parabola risonha, a rir e fazer rir, sem pensar em nada serio — vida de filante que dá mômos em troca de jantares e paga continhas miudas com pilherias de truz. Um negociante caloteado disse-lhe um dia, entre frouxos de riso baboso:

— Você ao menos diverte, não é como o major Carapuça que caloteia de carranca.

Aquelle recibo sem sello mortificou seu tanto ao nosso pandego; mas a conta subia a quinze mil réis, valia bem a pelotada. Entretanto, lá ficou a lembrança della espetada como alfinete na almofadinha do amor proprio. Atraz desse vieram outros, e outros, estes fincados de leve, aquelles até á cabeça.

Tudo cança. Farto de tal vida, o hilarião entrou a sonhar nas delicias de ser tomado a serio, falar e ser ouvido sem repuxo de musculos faciaes, gesticular sem promover a quebra da compostura humana, atravessar uma rua sem presentir na pin'gada um côro de "E vem o Pontes!" em tom de quem se espreme na contensão do riso ou se ageita para uma barrigada das boas.

Reagindo, tentou Pontes a seriedade. Desastre. Pontes serio mudava de tecla, cahia no humorismo inglez. Antes divertia como clown, agora como Tony.

O estrondoso exito do que se afigurou a toda a gente uma faceta nova da sua veia comica, lançou mais sombras na alma do engraçado arrependido. Era certo que se não poderia traçar outro caminho na vida além daquelle, era odioso? Palhaço, então, eternamente palhaço á força?

Mas a vida de um homem feito tem exigencias sisudas, impõe gravidade e até casmurrice dispensaveis nos annos verdes.

O cargo mais modesto da administração, uma simples vereança, requer na cara a immobilidade da idiotia que não ri. Não se concebe vereador risonho. Falta ao dito de Rapelais uma exclusão: o riso é proprio á especie humana, fóra o verador.

Com o dobar dos annos a reflexão amadureceu, o brio crystallizou-se, e os jantares cavados acabaram por saber-lhe a azedo. A moeda pilheria tornou-se-lhe dura ao cimho; já a não fundia com a frescura antiga; já usava della como expediente de vida, não por folgança despreoccupada como outr'ora. Comparava-se a si proprio, mentalmente, a um palhaço de circo, velho e achacoso, a quem a miseria obriga a transformar rheumatismo em caretas hilares, como as quer o publico pagante.

Deu de fugir dos homens, e gastou bons mezes no estudo da transição necessaria ao conseguimento de um emprego honesto para a sua actividade. Pensou no commercio, na industria, na feitoria d'uma fazenda, na montagem d'um botequim, que tudo lhe era preferivel á paspalhice comica de até então.

Um dia, bem maturados os planos, resolveu mudar de vida. Foi a um negociante amigo e sinceramente lle expoz os propositos regeneradores, pedindo por fim um lugar na casa, de varredor que fosse. Mal acabou a exposição o gallego e a caixeirada em peso, que espiava de longe à espera do desfecho, torceram-se em estrondoso gargalhar como sob cocegas.

— Esta é boa! E' de primeirissima! Quá! quá! quá! Com que então... quá! quả! quá! Você me arruina os figados, homem! Se é pela continha dos cigarros, vá socegado, que me dou por pago, e bem pago! Quá! quá! quá! Este Pontes tem cada uma... Ouvin, José, a boa piada? quá! quá! quá!

E a caixeirada, os freguezes, os sapos de balcão e até gente que, de passagem na rua parou na calçada para "aproveitar" o lance, desboccaram-se em "quás" de matraca até doerem os diaphragmas.

O miserando, atarantado, e seriissimo, tentou desfazer o equivoco.

— Falo serio, e o senhor não tem direito de rir-se. Pelo amor de Deus, não zombe de um infeliz que pede trabalho e não gargalhadas.

O negociante desabotoou o cós da calça.

— Fala serio, pff! Quá! quá! quá! Olhe, Pontes, você...

Pontes largou-o em meio da frase e se foi com a alma atenazada entre o desespero e a colera. Era demais. A sociedade o A sociedade o repellia, então?

Correu outros balcões da cidade, explicou-se como melhor poude, implorou. O caso foi julgado, por voz unanime, como uma das melhores pilherias do "incorrigivel", e muita gente o commentou com a observação costumaria:

— E' sempre o mesmo! Não se emenda, o raio do rapaz! E olhem que já não é criança...

Barrado no commercio, voltou-se para a lavoura. Procurou um velho fazendeiro que despedira o feitor e expoz-lhe o seu caso. O coronel, depois de ouvir-lhe attentamente as allegações, conclusas pela offerta do allegante para capataz da fazenda, explodiu:

— O Pontes capataz! Ih! Ih! Ih!

— Mas...

— Deixe-me rir, homem, que cá na roça isto é raro. Ih! Ih! Ih! E' muito boa! Eu sempre digo: graça como o Pontes, ninguem!

E berrando para dentro:

— Maricota, venha ouvir esta do Pontes. Ih! Ih! Ih!

Nesse dia o infeliz engraçado chorou. Comprehendeu que se não desfaz do pé para a mão o que levou annos a cristallisar-se. A sua reputação de pandego, de impagavel, de monumental, de homem do chifre furado o ou da pelle, estava construida com muito boa cale rijo cimento para que assim esboroasse de chofre.

Urgia, entretanto, mudar de vida, e Pontes volveu as vistas para o Estado, patrão commodo e unico possivel no caso, porque abstraeto, porque não sabe rir nem conhece de perto as cellulas que o compõem. Esse patrão, só elle, o tomaria a serio — o caminho da salvação, pois, embicava por ali.

Estudou as possibilidades da agencia do correio, dos tabellionatos, das collectorias e o resto. Bem ponderados prós e contras, trunfos e naipes, fixou a escolha na collectoria federal cujo occupante, major Bentes, por avelhantado e cardiaco, era de crer não durasse muito. Seu aneurisma andava na berra publica, com rebentamento esperado para qualquer hora.

O az de Pontes era um parente do Rio, sujeito ricaço, em via de influenciar a politica, no caso de realizar-se tal reviravolta no governo. Lá correu atraz delle e tantas fez para movel-o á sua pretenção que o parente o despediu com promessa formal.

— Vae socegado que em a coisa rebentando por cá e o teu collector rebentando por lá, ninguem mais ha de rir-se de ti. Vae e avisa-me da morte do homem, sem esperar que esfrie o corpo.

Pontes voltou radioso de esperança e aguardou pacientemente a successão dos factos, com um olho na politica e outro no aneurisma salvador.

A crise veiu afinal; cahiram ministros, subiram outros e entre estes um politicão negocista, socio do parente. Meio caminho era andado. Restava a segunda parte.

Infelizmente a saude do Major encruára, sem signaes patentes de declinio rapido. Seu aneurisma era, na opinião dos medicos que matavam pela allopathia, coisa grave, de estourar ao menor esforço; mas o precavido velho não tinha pressa de ir-se para melhor, deixando uma vida onde os fados lhe conchegaram tão fofo ninho, e lá engambelava a doença com um regimen ultra-methodico. Se o mataria um esforço violento, socegassem, não faria tal esforço.

Ora Pontes, já meio dono daquella sinecura, impacientava-se com o equilíbrio desequilibrador dos seus calculos .Como desempeçar o caminho d'aquella travanca? Leu no Chernoviz o capitulo dos aneurismas, decorou-o; andou em indagações de tudo quanto se dizia ou se escreveu a respeito; chegou a entender da materia mais que o Dr. Iodureto, medico da terra, o qual, seja dito aqui á puridado, não entendia de coisa nenhuma desta vida.

O pomo da sciencia, assim comido, induziu-o á tentação de matar o homem, forçando-o a estourar. Um esforço o mataria? Pois bem, Souza Pontes o levaria a esse esforço.

— A gargalhada é um esforço, philosophava satanicamente de si para si, a gargalhada, portanto, mata. Ora, eu sei fazer rir...

Longos dias passou alheio ao mundo, em dialogo mental com a serpente.

— Crime? Não! Em que codigo fazer rir é crime? Se morresse disso o homem, culpa era da sua má aorta.

A cabeça do maroto virou picadeiro de lucta onde o "plano" se bateu em duello contra todas as objecções mandadas ao encontro pela consciencia. Servia de juiz da contenda a sua ambição amarga, e sabe elle quantas vezes tal juiz prevaricou, levado de escandalosa parcialidade por um dos contendores.

Como era de prever, venceu a serpente e Pontes resurgiu para o mundo um tanto mais magro, de olheiras cavadas, porém com um brilho estranho de resolução victoriesa nos olhos. Tambem notaria nelle o nervoso dos modos quem o observasse com argucia, mas a argucia não era a virtude sobeja entre os seus conterraneos, além de que estados d'alma do Pontes eram coisas de somenos, porque o Pontes...

— Ora o Pontes!!

O futuro funccionario forgicou, então, meticulosos planos de campanha. Em primeiro era mistér approximar-se do Major, homem recolhido comsigo e pouco amigo de lerias; insinuar-se-lhe na intimidade, estudar suas venetas e cachacinhas até descobrir em que zona do corpo trazia elle o calcanhar d'Achilles.

Começou frequentando com assiduidade a collectoria, sob pretextos varios, ora para sellos, ora para informações sobre impostos, que tudo era ensejo de um parolar manhoso, habilissimo, calculado para combalir a rispidez do velho.

Tambem ia a negocios alheios, pagar sizas, extrahir guias, coisinhas. Fizera-se serviçal aos amigos que traziam negocios com o fisco.

O Major extranhou tanta assiduidade, e disse-lh'o, mas Pontes escamoteou-se á interpellação montado n'uma pilheria e perseverou n'um bem calculado dar tempo ao tempo que fosse desbastando as arestas aggressivas do cardiaco.

Dentro de dois mezes já se habituára Bentes aquelle serelepe, como lhe chamava, qual, afinal de contas, parecia um bom rapaz, sincero, amigo de servir, e, sobretudo, inoffensivo. D'ahi a lá em dia d'accumulo de serviço pedir-lhe um obsequio, e depois outro, e terceiro, e tel-o por fim como uma especie de addido á repartição, foi um passo.

Para certas commissões não havia outro. Que diligencia! Que finura! Que tacto!

— O Major, ralhando um dia o escrevente, puxou aquella diplomacia como lembrete.

— Grande pasmado... Aprende com o Pontes que tem geito para tudo, e inda por cima tem graça.

Nesse dia convidou-o para jantar.

Grande exultação na alma de Pontes: a fortaleza abria-lhe as portas.

Aquelle jantar foi o inicio d'uma serie onde o screlepe, hoje "factotum" indispensavel, teve campo de primeira ordem para as evoluções tacticas.

O Major Bentes, entretanto, possuia uma invulnerabilidade: não ria, limitava suas expansões hilares a sorrisos ironicos. Pilheria que levava outros commensaes a se erguerem da mesa atabafando a bocca nos guardanapos, encrespava apenas os seus labios. E se não era a graça de superfina agudeza, o collector mofino desmontava sem piedade o contador.

— Isso é velho, Pontes, já n'um almanaque Laemmert de 1850 me lembra de o ter lido.

Pontes sorria com ar vencido; mas consolava-se dizendo lá por dentro, dos figados para o rim, que se não pegára aquella, outra pegaria.

Toda a sua sagacidade enfocava para o fito de descobrir o fraco do major. Cada homem tem predilecção por um certo genero de humorismo ou de chalaça. Este morre pela pilheria fescenina de frades bojudos. Aquelle pella-se pelo chiste bonacheirão da chacota germanica. Aquell'outro dá a vida pela pimenta da canalhice gauleza. O brasileiro adora a chalaça onde se põe a nu' a burrice tamancuda de gallegos e ilhéos — o meio mais commodo que a nossa gente achou para demonstrar-se, pelo contraste, que é ella um alho de intelligencia.

Mas o Major? Porque não ria á ingleza, nem á allemã, nem á franceza, nem á brasileira? Qual o seu genero?

Um trabalho systematico de observação e uma methodica exclusão de generos já provados inefficientes, levaram Pontes a descobrir a fraqueza do rijo adversario. O major lambia as unhas por casos de inglezes e frades. Era preciso, porém, que viessem juntos. Separados negavam fogo. Exquisitices de velho. Em surgindo bifes vermelhos, de capacetes de cortiça, roupa enxadrezada, sapatões formidolosos e cachimbo, e ao lado frades redondos, namorados da pipa e amigos da polpa feminina, lá abria o major a bocca, e interrompia o serviço da mastigação, como crisuiça a quem acenam com cocada; e quando o lance comico chegava, elle ria com gosto, abertamente, embora sem exaggero capaz de lhe transtornar o equilibrio sanguineo.

Pontes, com infinita paciencia, bancou nesse genero, e não mais sahiu dalí. Augmentou o repertorio, a gradação do sal, a dóse de malicia, e hombardeou systematicamente a aorta do major com os productos da sua habil manipulação.

Quando o caso era longo, porque o narrador o florejava no intento de esconder o desfecho e realçar o effeito, o velho interessava-se vivamente e nas pausas manhosas pedia esclarecimentos ou contiuação:

— "E o raio do bifstek?" "E dahi?" "Mister John apitou?"

Embora tardasse a gargalhada fatal, o futuro collector não desesperava, confiado no apologo da bilha que de tanto ir á fonte lá ficou.

Não era máu o calculo. Tinha a psychologia por si, e teve tambem por si a quaresma

Certa vez, i'indo o carnaval, o major reuniu os amigos em torno d'uma enorme piabanha recheiada, presente do escrivão.

O entrudo desmazorrára a alma dos commensaes, e a do amphitrião, que estava naquelle dia contente de si e do mundo, como se houvera enxergado o passarinho verde.

O cheiro vindo da cosinha, valendo por todos os aperitivos de garrafaria, punha nas caras um enternecimento estomacal.

Quando o peixe entrou scintillaram os olhos do major. Pescado fino era com elle, inda mais cozido pela Gertrudes. E naquelle brodio primára a Gertrudes n'um tempero que excedia ás raias da culinaria e se guindava ao mais puro lyrismo. Que peixe! Vatel o assignaria com a penna da impotencia molhada na tinta da inveja, disse o escrivão, sujeito lido em Brillat-Savarin e outros praxistas do paladar.

Entre goles de rica vinhaça era o peixe introduzido nos estomagos com religiosa uncção. Ninguem se atrevia a quebrar o silencio da bromatologica beatitude.

Pontes presentiu opportuno o momento da cartada. Trazia engatilhado um caso de inglez, sua mulher e dois frades barbadinhos, anecdota que elaborára á custa da melhor materia cinzenta do seu cerebro, aperfeiçoando-a constantemente em longas noites de insomnia. Já de dias a tinha de tocaia, aguardando sempre um momento em que tudo concorresse para obter della o effeito maximo.

Era a derradeira esperança do facinora, seu ultimo cartucho. Negasse fogo e, estava resolvido, mettia uma bala nos miolos Reconhecia impossivel manipular torpedo mais engenhoso. Se o aneurisma lhe resiste ao embate, então é que o aneurisma era uma potoca, a aorta uma ficção, o Chernoviz um palavrorio, a medicina uma miseria, o Dr. Iodureto uma cavalgadura e elle, Pontes, o mais chapado semsaborão jámais alumiado pelo sol, indigno portanto de viver.

Matutava Pontes assim, negaceando com os olhos da psychologia a pobre victima, quando o major veiu ao seu encontro, e lhe piscou o olho esquerdo.

— E' agora, pensou o bandido — e com infinita naturalidade, pegando na garrafinha de molho, como por acaso, poz-se a ler o rotulo.

— Perrins, Lea and Perrins. Será parente daquelle Lord Perrins que bigodeou os dois frades barbadinhos?

Inebriado pelos amavios do peixe e do vinho, o major alumiou um olho concupiscente, guloso de chulice:

— Dois barbadinhos e um lord! A patifaria foi marca F. F. F. Conta lá, serelepe.

E mastigando machinalmente absorveu-se no caso fatal.

A anecdota correu capelosa pelos fios naturaes, narrada com arte de mestre, segura e firme, n'um andamento estrategico onde havia genio até ás proximidades do desfecho. Por essas immediações, a maranha empolgou por tal forma o pobre velho que ficou elle suspenso, de bocca entre-aberta, e uma azeitona, fisgada no garfo, detida a meio caminho. Um ar de riso — riso parado, riso estopim que não é senão o armar bote da gargalhada, illuminou-lhe as faces.

Pontes vacillou. Presentiu o estouro da arteria. A consciencia travou-lhe a lingua. Mas por um instante só. Cuspilhou-a Pontes fóra de si e com voz firme desfechou o gatilho.

O major Antonio Pereira da Silva Bentes desferiu a primeira gargalhada da sua vida, franca, estrondosa, de ouvir-se ao fim da rua, gargalhada igual á de Teufelsdrock diante de João Paulo Richter. Primeira e ultima, entretanto, porque em meio della os convivas attonitos viram-no cahir de borco sobre o prato, de passo que uma onda de sangue avermelhava a toalha.

O assassino ergueu-se allucinado, e aproveitando a confusão esgueirou-se para a rua, como um Cain. Escondeu-se em casa, trancou-se no quarto, bateu dentes a noite inteira e suou gelado. Os menores rumores retranziam-no de pavor: policia?

Dias mais tarde é que entrou a declinar aquelle transtorno d'alma que toda gente levava á conta de dôr pela morte do amigo. Não obstante, trazia sempre diante dos olhos a mesma visão: o velho de bruços no prato, golfando sangue, emquanto no ar, inda vibrantes, os echos da sua derradeira gargalhada.

E foi nesse deploravel estado que recebeu a carta do parente do Rio. Entre outras cousas dizia o az: "Como não me avisaste a tempo, conforme o combinado, só pelas folhas vim a saber da morte do Bentes. Fui ao ministro mas era tarde, já estava lavrada a nomeação do successor. A tua leviandade fez-te perder a melhor occasião da vida. Guarda para teu governo este latim: "tarde venientibus ossa", e sê mais esperto para o futuro".

Um mez depois encontraram-no pendurado numa trave do quarto, com a lingua de fóra, rigido.

Enforcára-se numa perna de ceroula.

Quando a noticia deu volta á cidade, toda gente achou graça no caso. O gallego do armazem commentou para os caixeiros

— Vejam que creatura! Até morrendo fez chalaça! Enforcar-se na ceroula! Esta só mesmo do Pontes!...

E reeditaram em côro meia duzia de "quás" — unico epitaphio que lhe deu a sociedade.











Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.