O Mata-Pau



INCAROS arriba perambeiras abaixo, a serra do Palmital escureco de mataria virgem, sombria e humida, tramada de taquarussu’s, afestoada de pócas, com grandes arvores velhas por cujo tronco e galhaça trepam cipós, escorre a barba de pau a adherem musgos.

Quem sobe da varzea, transpostas as capoeiras da raiz, ao emboscar-se de chofre no frio tunnel vegetal que é ali a estrada, inevitavelmente espirra. E se é homem das cidades, pouco affeito aos aspectos bravios do sertão, depois do espirro abre a bocca, pasmado da paulama. Extasia-se ante a copa graciosa dos samambaiussu's, ante as borboletas azues, ante as orchideas, os lichens, tudo.

Soffrea o animal sem o sentir, mas não pára. Vae parar adiante, na Volta Fria, onde um broto d'agua gelada, fluente por entremeio de pedras limosas, o tenta a sorver um gole aparado em folha de caheté. Bebida a agua, e dito que nas cidades não ha d'aquillo, leva-lhe a vista o soberbo mata-páu que abalisa o grotão.

— Que raio de arvore é esta? pergunta elle ao capataz, pasmado mais uma vez.

E tem razão de parar, admirar e perguntar, porque é duvidoso existir naquella sertania exemplar mais truculento de gamelleiro.

Eu, de mim, confesso, fiz as tres coisas.

O camarada respondeu á terceira:

— Não vê que é um mata-páu.

— E que vem a ser o mata-páu?

— Não vê que é uma arvore que mata outra. Começa, quer ver como? — disse elle escabichando as frondes com olhar agudo em procura d'um exemplar typico — está ali um!

— Onde? perguntei eu, tonto.

— Aquelle fiapinho de planta ali no gancho d'aquelle jacaré, contínuou o cicerone, apontando com dedo e beiço uma parasita humilde, grudada na forquilha de um galho, com dois filamentos pendurados, oscillantes ás brisas.

— Começa "assimzinho", meia duzia de folhas piquiras; bóta p'ra baixo esse fio de barbante na tenção de pegar a terra. E vae indo, sempre n'aquillo, nem p'ra mais, nem p'ra menos, até que o fio alcança o chão. E vae então o fio vira raiz, e pega a beber a sustancia da terra. A parasita cria folego, e cresce que nem embau'va. O barbantinho engrossa todo o dia, passa a cordel, passa a corda, passa a pau de caibro e acaba virando tronco de arvore e matando a mãe, como este guampudo, — concluiu dando com o cabo do relho no meu gamelleiro.

— Com effeito! — exclamei. E a arvore deixa?

— Que é que ha de fazer? Não desconfia de nada, a boba. Quando vê no seu galho uma isca de quatro folhinhas imagina que é parasita, e não se precata. O fio, pensa que é cipó. Quando a malvada ganha alento, e garra de engrossar, é que a arvore sente a dôr dos apertos na casca. Mas é tarde. O poderoso d'ahi para diante é o mata-páu. A arvore morre e deixa a lenha podre dentro delle.

Era isso mesino. O lenho gordo e viçoso da planta facinorosa envolvia um tronco morto, a desfazer-se em carcoma . Viam-se por elle acima, intervalados, os terríveis cingulos estranguladores; hoje inuteis, desempenhada já a missão constrictora, jaziam esses anneis frouxos e atrophiados.

Imaginação envenenada pela literatura, pensei logo nas serpentes de Laocoonte, na vibora aquecida no seio do homem da fabula, nas filhas do rei Lear, em todas as figuras classicas da ingratidão. Pensei e calei, tanto o meu companheiro era uma creatura simples, pura dos vicios mentaes que inoculam livros. Encavalgamos de novo e partimos.

Não longe d'ali a serra complana-se em rechan e a matta mingu'a em capoeira nova. No meio della, em terreiro descoivarado, entremonstra-se uma tapera. Esverdece o melão de S. Caelano por sobre o tapume arruinado do quintalejo onde laranjeiras hervadas, e uma ou outra planta domestica, marasmam agoniadas pelo matto suffocante.

— Antigo sítio do Elesbão do Queixo d'Anta, explicou o camarada.

— Largado? perguntei.

— Ha que annos! Des'que mataram o homem ficou assim.

Bacorejou-me historia como as quero.

— Mataram-n'o? Conte-me lá como foi isso.

O camarada contou a historia que para aqui traslado com a possivel fidelidade. O melhor della evaporou-se, a frescura, o correntio, a ingenuidade de um caso narrado por quem nunca aprendeu os pronomes e que porisso mesmo narra melhor que quantos por ahi sorvem literaturas inteiras, e grammalicas, na ancia de adquirir o estylo.

Grandes folhetinistas andam por esse mundo de Deus, perdidos entre a gente do campo, ingrammaticalissima, porém pittoresca no dizer como ninguem.


Elesbão morava com o pae no Queixo d'Anta, onde nascera. Quando se lhe engrossou a voz, disse ao velho:

— Meu pae, eu quero casar.

O pae olhou para o filho pensativamente, e em seguida falou:

— Passarinho cria penna é para voar. Se você já é homem, case.

O rapaz pediu-lhe que puzesse em prova a sua virilidade.

O pae reflectiu e disse:

— Derrube o jatahy da grotinha, — sem tomar folego.

Elesbão afiou o machado, arregaçou as mangas e feriu o pau. Em toada de compasso bateu firme a manhã inteira A' hora do almoço o "pan-pan" continuava sem esmorecimento.

Só quando o sol aprumou no pino é que a madeira gemeu o primeiro estalido.

— Está no chão, disse o pae, que se acercára do filho exhausto mas victorioso. Póde casar. E' homem.

Elesbão trazia d'olho uma menina das cercanias, filha do balaieiro João Póca, a Rosinha, bilro sapiroquento de treze annos, feiosa como um rastolho.

— Meu pae, eu quero a Rosinha Póca.

— Case. Mas ouça o que eu digo. Os Pócas não são boa gente. Os machos aínda passam, o João é um coitado, o José não é má hisca; mas as saias nunca valeram nada. A mãe da Rosa é falada. Laranjeira azeda não dá laranja serra d'agua. Você pense.

— Meu pae, o futuro é de Deus. Eu quero casar com a Rosinha.

— Pois case.

Deliberado com tal firmeza, Elesbão tratou de sitiar-se. Arrendou a rechan da tapera, roçou, derrubou, queimou, plantou, armou choça. Barreada que foi, pediu a menina e casaram-se.

Rosa só era rosa no nome. No corpo, simples botão inverniço desses que meiara aos frios extemporaneos de Maio. Olhos cosidos e nariz rebitado, tal qual o da mãe. Feia, mas da feiura que o tempo ás vezes concerta. Talvez se fiasse nisso o noivo.

Elesbão, rijo no trabalho, prosperou. Aos tres annos de labuta era já sitiante de monjolo, escaroçador e cevadeira, com dois aggregados no eito.

Filhos, até esse tempo, nenhum, e isso entristecia a casa, mas resignavam-se já ao vasio da esterilidade quando, certa noite, ouviram choro de criança no terreiro. Não se conta o terror de ambos, que aquillo era na certa alma penada de criança morta pagan. Como, entretanto, a pobre alma berrasse com pulmões muito da terra, e cada vez mais, Elesbão duvidou do bruxedo e accendendo uma braçada de palha lançou-a para fóra, atravez da janella. O terreiro clareou até longe e elles viram, a pouca distancia, uma creaturinha de gatas a berrar com desespero de quem é muito deste mundo.

— E não é que é uma criança de verdade? exclamou elle saido de um assombro e entrado n'outro. E agora?

— Pois é recolhel-a, disse Rosinha, cujo instincto de mulher só via no caso um pobre enjeitadinho ao léo, reclamando conchego.

Recolhen-o Elesbão, depondo o chorincas no collo da esposa, que o estreitou ao seio. acalmando-o, de passo que "assentava” o marido, propondo:

— Se não apparecer a mãe. cria-se o menino. Faz tanta falta um chorinho nesta casa..

No dia seguinte bateram as vizinhanças em indagações. sem nada colher explicativo do estranho caso. O pae de Elesbão, consultado. ponderou:

— Não presta criar filho alheio.

Mas como o consutente armasse cara de vacillação. remendou philosophicamente:

— Tambem não é caridade enjeitar um enjeitado — e ficou-se nisso.

Rosa conservou o pequeno, e deu com elle criado á força de leite de cabra e caldinhos.

O menino, porém, á medida que medrava, punha a nu' a má indole congenial. Não promettia boa cousa, não.

— Eu bem avisei. recordou o velho, como Elesbão se queixasse um dia da ruim casta do recolhido.

— Meu pae disse tambem que não era caridade enjeitar um enjeitado...

— E' verdade, é verdade... conformou o philosopho sertanejo, calando-se.


Manoel Achado era o nome do rapazinho. Como tivesse olhos gateados, e cabellos louros de milho, denunciativos de origem estrangeira, appuzeram-lhe os vizinhos a alcunha de Ruço. Ganhou fama de madraço e o era refinado, inimigo de enxada e foice, só attento a negociatas, barganhas, espertezas. Amado pela Rosa como filho, livrava-o ella da sanha do marido escondendo suas malandragens, que Elesbão ameaçava sempre endireital-o a rabo de tatu'. Não endireitou coisa nenhuma. Com 18 annos era o Ruço a peste do bairro. atarantador dos pacificos e traiçoeiro com os escoradores.

— E' ruim inteirado, dizia o povo.

Por esse tempo navegava Rosa na casa dos trinta. Como a não estragaram filhos, nem se estragou ella em grosseiros trabalhos de roça, valia muito mais do que em menina. O tempo curou-lhe a sapiroca, e deu-lhe carnes a boa vida. Concertou de tal forma que todo mundo gabava o arranjo.

— Ninguem perca a esperança. Olhem a mulher do Elesbão, aquella Póquinha sapiroquenta, como está chibante!

A sua boniteza residia na saude dos olhos e na gordura. Na roça, gordura é synonimo de belleza; gordura e olhos azues "que nem uma conta". Além disso Rosinha cuidava de si. Virou faceira. Sempre limpa, vestida de boas chitas da sua côr, cabellos bem alisados para traz, torcidos em pericote lustroso á força de pomada de lima, não havia na serra, pimpona assim, nem moça de fazenda com pae coronel.

Suas relações com o Ruço, maternaes até ali, principiaram a mudar de rumo como quer que espigasse em homem o menino. Por fim degeneraram em namoro, medroso no começo, descarado ao cabo. A má casta dos Pócas, desmentida no decurso da primavera, reaffirmava-se afinal em plena sazão calmosa. O verão das Pócas! Que quadra!

Tudo transpira. Transpirou nas redondezas a feia maromba daquelles amores. Boas linguas, e más, boquejávam o quasi incesto.

Quem de nada nunca suspeitou foi o honradissimo Elesbão, e como na porta dos seus ouvidos paravam os rumores do mundo, a vida das tres creaturas corria-lhes na toada mansa a que se dá o nome de felicidade.

Foi quando cahiu de cama o pae de Elesbão, doente de velhice. Mandou chamar o filho e disse-lhe com voz de quem está com um pé na cova.

— Meu filho, abra os olhos com a Póca.

— Porque fala assim, meu pae?

O velho ouvira o zumzum da má vida; vacillava, entretanto, em abrir os olhos ao infeliz enpulhado. Correu a mão tremula pela cabeça do filho, afagou-a, e morreu sem mais palavra. Sempre fora amigo de reticencias, o bom velho...


Elesbão regressou ao sitio com aquelle aviso a verrumar-lhe os miolos. Passou dias pensando nelle e acastellando hypotheses, de cara amarrada.

Vendo o marido assim demudado, casmurro, de prazenteiro que era, Rosa cabiu em guarda. Chamou de parte o Ruço e disse:

— Lesbão des'que morreu o pae anda a mo' que hervado. Mas não é sentimento, não. Elle desconfia !... A's vezes pega de olhar para mim d'um geito exquesito que até me gêa o coração.

Manoel segurou o queixo e reflectiu. Continuar naquella vida era arriscado. Ir-se. peior; nada possuia de seu, e trabalhar para outrem não era com elle. Se Elesbão morresse...

Não se sabe se houve concerto entre os amasios. Mas Elesbão morreu. E como! Certa vez, de volta da villa proxima, ali pelo escurecer, caiu de borco na Volta Fria, foiçado barbaramente na nuca. Descobriram o cadaver pela manhã, bem rente ao mata-pau.

A justiça, coitadinha! apalpou d'aqui e d'ali, n'uma cegueira... Desconfiou-se do Ruço, mas que é das provas? O Ruço era mais fino que o delegado, o promotor, o juiz, mais até que o vigario da villa, um padre gozador da fama de enxergar atravez das paredes.

A viuva chorou como mamoeiro lanhado, fosse de sentimento, de remorso, ou para illudir aos outros — talvez sem calculo nenhum, pelos tres motivos.

Manoel permaneceu na casa.

Viviam como filho e mãe, dizia ella; como marido e mulher, resmungava o povo.


O sitio, porém, entrou logo a desmedrar. Comiam do plantado, sem lembrança de metter na terra novas sementes. O moço ambicionava vender as bemfeitorias para mergulhar no Oeste e, como Rosa reluctasse, deu de maltratal-a.

Estes amores serodios são como a vide, mais judiam com elles, mais reviçam. A's brutalidades do Ruço respondia a viuva com redobros de carinhos. Seu peito maduro, onde o verão em declinio annunciava a invernia proxima, chammejava em fogo bravo, desses que roncam nas retranças dos taquarussu's. E isso vingava Elesbão, esse amor sem geito, sem conta, sem medida, duas vezes criminoso, sobre sacrilego e, o que era peior, aborrecido pelo facinora já farto.

— Córóca! Sapiquá de defunto! Cangalha velha!

Não havia insulto, com o peão do veneno plantado na nota da velhice, que lhe não desfechasse, o ingrato.

Rosa depereceu a galope. Adeus, gordura! Boniteza outoniça, adeus! Saias a rufar, tesas de gomma, pericote luzidio rescendente a lima, quando mais?

Os vizinhos commentavam:

— O Ruço dá cabo della, como deu cabo do marido, e é bem feito.

Voz do povo...

Um dia o Ruço ameaçou de largal a se não vendesse tudo já e já, e a pobre mulher deu ao bandido essa derradeira prova de amor. Vendeu por uma bagatella o que restava accumulado pelo trabalho do defunto, a moenda, o monjolo, a casa, o cannavial em soca. E combinaram para o outro dia o ambicionado mergulho na terra roxa.

Nessa noite, altas horas, Rosa despertou suffocada por fumaceira. A casa ardia. Salta como louca da enxerga e berra pelo Ruço. Ninguem responde. Atira-se contra a porta e encontra-a fechada por fóra. O instincto fal-a agarrar o machado e romper o taboado fragil. Rola para o terreiro com as vestes em fogo, precipita-se no tanque e, liberta das chammas, cae inerte para um lado, justamente onde, vinte annos atraz, estivera o engeitadinho chorando ao relento...

Quando, de manhã, passantes a recolheram, estava d'olhos pasmados, e muda. Levaram-n'a em maca para o hospital, onde sarou das queimaduras, mas nunca mais do juizo. Foi feliz, Rosa. Enlouqueceu no momento preciso em que ia tornar-se-lhe a vida um puro inferno.

O Ruço...

O Ruço abalou com o dinheiro. Dizem uns que corre o Oeste como ladrão de cavallos. Outros, que já tem negocio e prospera. Eu pendo para esta ultima opinião, e tenho esperanças de vel-o ainda coronel, vereador, ou barão, quem sabe? Parece-me sujeito de altos destinos!


Ahi parava a historia do Elesbão, como a sabia o meu camarada. Um crime vulgar como os ha na roça ás dezenas, se a lembrança do mata-pau o não colorisse com tintas de symbolo.

— Não é só no matto que ha mata paus!... disse eu philosophicamente á guiza de commentario.

O capataz entreparou um momento como quem não entende. Depois abriu na cara o ar de quem entendeu e gostou.

— Não é por gabar, mas vosmecê disse ahi uma palavra que merece escripta! E' tal e qual!

E calou-se, de olho parado, — pensativo...






Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.