O comprador de fazendas
EIOR fazenda que a do Espigão, nenhuma. Já arruinára tres donos, o que fazia dizer aos praguentos : Espiga é que aquillo é. O detentor ultimo, um David Moreira de Souza, arrematára-a em praça, convicto de negocio da China, mas lá andava, tambem elle, escalavrado de dividas, coçando a cabeça n’um desanimo...
Os cafesaes em vara, anno sin, anno não, batidos de saraiva ou esturrados pela geada negra, nunca deram de si colheita de entupir tulha.
Os pastos ensapesados, enguanxumados, ersamambaiados nos topes, eram acampamentos de cupins com entremeios de macegas mortiças, formigantes de carrapato ; boi entraido ali punha-se logo de costellas á mostra, encaroçado de bernes, triste e dolorido de metter dó.
As capoeiras substitutas das matlas nativas, revelavam pela indiscreção das tabocas a mais safada das terras seccas. Em tal solo a rama bracejava a medo varetinhas nodosas : a canna cayenna assum aspecto de canninha, e esta virava uns taquariços magrelas que passavam incolumes por entre os cylindros moedores.
Piolhavam os cavallos. Os porcos escapos á peste encru'avam na magrem pharaonica das vaccas egypcias.
Por todos os cantos imperava soberano o ferrão da sau'va dia e noite entregue á tosa dos capins para que. em Outubro. se toldasse o céu de nuvens de içá em saracoteios amorosos com enamorados savitu's.
Caminhos por fazer, cercas no chão, casas d'aggregados engotteiradas, combalidas de cumieira, prenunciando feias taperas. Até na moradia senhorial insinuava-se a bréca, aluindo pannos de reboco, carcomendo assoalhos. Vidraças sem vidro, mobilia capengante, paredes lagarteadas... intacto que é que havia lá?
Dentro dessa esborcinada moldura o fazendeiro, avelhuscado por força de successivas decepções, e, a mais, roido pelo cancro voraz do premio, sem esperança e sem concerto, cocava cem vezes ao dia o redomnoinho capillar da cabeça grisalha.
Sua mulher, a pobre D. Izaura, perdido o viço do outono, agrumava na cara quanta sarda e pé de gallinha inventam os annos de mãos dadas á trabalhosa vida.
Zico, o filho mais velho, sahira-lhes um pulha, amigo de erguer-se ás dez, ensebar a pastinha até ás onze, e consumir o resto do dia em namoriscos mal azarados.
Afóra este malandro tinham a Zilda, então nos dezesete, menina galante, porém sentimental mais do que manda a razão, e pede o socego dos paes. Era um ler Escrich a rapariga, e um scismar amores d'Hespanha...
Em tal situação só havia uma aberta: vender a fazenda maldita e respirar a salvo de hypothecas. Era difficil, entretanto, em quadra de café a cinco mil réis, pôr unhas n'um tolo das dimensões requeridas. Já levados por annuncios manhosos alguns pretendentes abicáram ao Espigão ; mas franziam todos o nariz, indo-se a arrenegar da pernada, sem abrir offerta.
De graça é caro, cochichavam de si para comsigo.
O redomoinho do Moreira, a cabo de coçadelas, suggeriu-lhe uma traça mystificatoria : entreverar de cahelés, cambarás, unhas de vaca e outros padrões transplantados das visinhanças a fimbria das capoeiras. e uma ou outra entrada accessivel aos visitantes. Fel-o, o maluco, e mais: metteu um páu d'alho importado da terra roxa em certa grota. E adubou os cafeeiros margeantes ao caminho, o sufficiente para encobrir a mazela do resto. Onde um raio de sol denunciava com mais viveza um vicio da terra, ahi o allucinado velho botava a peneirinha...
Um dia recebeu carta de seu agente de negocios amunciando um novo pretendente: "Você tempere o homem, aconselhava elle, e saiba manobrar os padrões que este cáe. Chama-se Pedro Trancoso, é muito rico, muito moço, muito prosa, e quer fazenda de recreio. Depende tudo de você espigal-o com arte de barganhista ladino".
Preparou-se Moreira para a empresa. Advertiu em primeiro aos aggregados para que estivessem a postos, afiadissimos de lingua. Industriados pelo patrão estes homens sabiam responder com manha consummada ás perguntas dos visitantes, de geito a transmutar em maravilhas as ruindades locaes. Os pretendentes, como lhes é suspeita a informação do proprietario, costumam interrogar á socapa os encontradiços. Ali, se isso acontecia, — acontecia sempre, porque era Moreira em pessoa o machinista do acaso, — havia dialogos desta ordem:
— Gêa por aqui?
—Coisinha, e isso mesmo só em anno bravo.
— O feijão dá bem ?
— Nossa! Inda este anno plantei cinco quartas e mallei cincoenta alqueires. E que feijão!
— Berneia o gado?
— Qual o que! Lá um ou outro carocinho, de vez em quando. Para criar não ha melhor. Nem herva, nem feijão bravo. O patrão é porque não tem forças. Tivesse elle os meios e isto virava um fazendão!
Avisados os espoletas, discutiram-se á noite os preparativos da hospedagem, alegres todos com o reviçar das esperanças emmurchecidas.
— Estou com palpite que desta feita a "coisa" vae, disse o filho maroto; e declarou necessitar á sua parte de tres contos de réis para estabelecer-se.
— Estabelecer-se com que? perguntou admirado, o pae.
— Com armazem de seccos e molhados na Volta Redonda!
— Na Volta Redonda! Já me estava espantando uma idéa boa nessa cabeça de vento. Para vender fiado á gente da Tudinha?
O rapaz se não corou, calou-se: tinha razões para isso.
Já a mulher queria casa na cidade; de ha muito trazia d'olho uma de porta e janella, en certa rua, casa baratinha, d'arranjados.
Zilda, um piano, e caixões e mais caixões de Escrich...
Dormiram felizes essa noite e no dia seguinte mandaram cedo á villa buscar gulodices de hospedagem, manteiga, um queijo, biscoutos. Na manteiga houve vacillações.
— Não vale a pena, reguingou a mulher; sempre são tres mil réis. Antes me comprasses com esse dinheiro a peça de algodãosinho que tanta falta me faz.
— E' preciso, filha; ás vezes uma coisa de nada engambella um homem e facilita um negocio. Manteiga é graxa, e graxa engraxa.
Venceu a manteiga.
Emquanto não vinham os ingredientes metteu D. Izaura unhas á casa, varrendo, espanando e arrumando o quarto dos hospedes; matou o menos magro dos frangos e uma leitôa manquitola; temperou a massa do pastel de palmito e estava a folheal-a, quando:
— E vem elle! gritou o Moreira da janella, onde se postára, desde cedo, muito nervoso, a devassar a estrada por um velho binoculo; e sem deixar o posto de observação foi transmittindo á occupadissima esposa os pormenores divisados.
— E' moço... Bem trajado... Chapéu panamá... Parece o Chico Canhambora...
Chegou afinal o homem, apeou-se, deu cartão: Pedro Trancoso de Carvalhaes Fagundes. Bem apessoado. Ares de muito dinheiro. Mocetão e bem falante mais que quantos até ali aproaram á Espiga.
Contou logo mil cousas, com o desembaraço de quem no mundo está de pijama em casa sua — a viagem, os incidentes, um mico que vira pendurado n'um esgalho d'embau'va.
Entrados para a saleta de espera, Zico, incontinente, grudou-se d'ouvido ao buraco da fechadura, d'onde cochichava ás mulheres occupadas na arrumação da mesa o que ia pilhando á conversa. Subito, esganiçou para a irmã numa carela suggestiva:
— E' solteiro, Zilda!
A menina largou disfarçadamente os talheres. e sumiu-se. Meia hora depois reapparecia, trazendo o melhor vestido, e no rosto duas redondinhas rosas de carmim. Quem a ess'hora penetrasse no oratorio da fazenda notaria nas vermelhas rosas de papel de seda que enfeitavam o Santo Antonio a ausencia de varias petalas e aos pés da imagem uma velinha accesa. Na roça o "rouge" e o casamento saem do oratorio...
Trancoso dissertava subre variados themas agricolas.
— O canastrão? Pff! Raça tardia, muito agreste. Eu sou pelo Poland Chine. Tambem não é máu o Large Black. Mas o Poland! Que precocidade! Que raça!
Moreira, chucro na materia, só conhecedor das pelhancas famintas, sem nome nem raça, que lhe grunhiam em roda á casa, abria insensivelmente a bocca pasmada.
— Como em materia de pecuaria bovina, continuava Trancoso, tenho para mim que andam todos, de Barreto a Prado, erradissimos. Nem selecção, nem cruzamento. Quero a adopção immediata das mais finas raças, o Polled Angus, o Red Lincoln. Não temos pastos? Façamol-os. Plantemos alfafa. Fenemos. Ensilemos. O Assis confessou-me uma vez...
O Assis! Aquelle homem confessava os mais altos paredros da agricultura! Era intimo de todos elles, o Prado, o Barreto, o Cotrim... E de ministros! Eu já alleguei isso ao Bezerra..."
Nunca se honrára a fazenda com cavalheiro mais distincto, assim bem relacionado e tão viajado.
Falava da Argentina e de Chicago como quem veiu hontem de lá. Maravilhoso!
A bocca de Moreira abria, abria. e accusava o gráo maximo da abertura permitida a angulos maxillares, quando uma vozinha feminina annunciou o almoço.
Apresentações. Mereceu Zilda louvores nunca sonhados, que a puzeram de coração aos pinotes. Tambem os teve a gallinha ensopada, o tu'tu com torresmos, o pastel e até a agua do póte.
— Na cidade. senhor Moreira. uma agua assim pura, crystallina. absolutamente potavel, vale o melhor dos vinhos. Felizes os que podem bebel-a!
A familia entreolhou-se: nunca imaginaram possuir em casa semelhante preciosidade, e cada um insensivelmente sorveu o seu golesinho como se naquelle instante travassem conhecimento com o precioso nectar. Zico chegou a eslalar a lingua.
Quem não cabia em si de gozo era D. Izaura. Os elogios á sua culinaria puzeram a boa senhora rendida; por metade d'aquillo já se daria por bem paga da trabalheira.
— Aprende Zico. cochichava ella ao filho, o que é educação fina. Isto é que é ser gente!
Após o café, brindado com um — delicioso! — convidou Moreira o moço para um gyro a cavallo.
— Impossivel, meu caro, não monto em seguida ás refeições: dá-me cephalalgia.
Zilda corou. Zilda corava sempre que não entendia uma palavra.
— A' tarde sairemos, não tenho pressa. Prefiro agora um passeiosinho pedestre pelo pomar a bem do chylo.
Emquanto os dois homens, em pausados passos, para lá se dirigiam, Zilda e Zico correram ao diccionario.
— Não é com S, disse o rapaz.
— Veja com C, alvitrou a menina.
Com algum trabalho encontram a palavra.
— Dôr de cabeça! Ora! ora! Uma coisa tão simples...
A' tarde, no gyro a cavallo, Trancoso admirou e louvou tudo quanto os olhos enxergaram, com grande espanto do fazendeiro que pela primeira vez ouvia gabos ás coisas suas.
Os pretendentes, em geral, malsinam de tudo, com olhos abertos só para os defeitos: diante de uma barroca abrem-se em exclamações sobre o perigo das terras frouxas; acham más e poucas as aguas; se enxergam um boi não despegam a vista dos bernes. Trancoso, não. Gabava! E quando Moreira, nos trechos mystificados, apontou os padrões com dedo tremulo, o moço embasbacou:
— Caquéra! Mas isto é raro!
Em face do páu d'alho culminou-lhe o assombro.
— E' maravilhoso o que vejo! Nunca suppuz encontrar nesta zona vestigios de semelhante arvore! — disse mettendo na carteira uma folha como lembrança.
Em casa abriu-se para com a velha.
— Pois, minha senhora, a qualidade destas terras excedeu de muito á minha expectativa. Até páu d'alho! Isto é positivamente famoso.
D. Izaura baixou os olhos.
A scena passava-se na varanda.
Era noite.
Noite trilada de grillos, coaxada de sapos, com muitas estrellas no ceu e muita paz na terra.
Trancoso, refestelado n'uma preguiçosa, transfez o sopor da digestão em quebreira poetica.
— Este cri-cri dos grillos, como é encantador! Eu adoro as noites estrelladas, o bucolico viver campesino, tão sadio e feliz!...
— Mas é muito triste, aventurou Zilda.
— Acha? Gosta mais do canto estridente da cigarra em pleno sol? disse elle amelaçando a voz. E' que no seu coraçãosinho ha qualquer nuvem à sombreal-o...
Vendo Moreira assim atiçado o sentimentalismo, e desta feita passivel de consequencias matrimoniaes, houve por bem dar uma pancada na testa e berrar: "Oh, diabo não é que me ia esquecendo do..." Não disse do que nem era peciso. Saiu precipitadamente deixando-os sós..
Continuou o dialogo, mais mel e rosas.
— O senhor é um poeta! exclamou Zilda a um regorgeio dos mais sucados.
— Quem o não é, debaixo das estrellas do céu, ao lado d'uma estrella da lerra?
— Pobre de mim! suspirou a menina palpitante.
Tambem do peito de Trancoso subiu um suspiro. Seus olhos alçaram-se a um cirro que fazia no ceu as vezes da Via-Lactea, e sua bocca murmurou em soliloquio um rabo d'arraia desses que derrubam meninas:
— O amor!... A via lactea da vida!... O aroma das rosas, a gaze da aurora!... Amar, ouvir estrellas... Amai, pois só quem ama entende o que ellas dizem!
Era zurrapa de contrabando; não obstante, ao paladar inexperto da menina, soube a Lacryma-Christi. Ella sentiu subir á cabeça um vapor. Quiz retribuir. Deu busca aos ramilheles rhetoricos da memoria em cata da flôr mais bella. Só achou um bogari murchinho.
— Lindo pensamento para um cartão postal! disse.
Pararam no bogari; o café com bolinhos de frigideira veiu interromper o idylio nascente.
Que noite aquella! Dir-se-ia que o anjo da felicidade distendera suas constelladas azas por sobre a casa triste. Zilda via realizar-se lado o Escrich deglutido. D. Izaura gozava-se da possibilidade de casal-a rica. Moreira sonhava quitações de dividas com sobras fartas a tilintar-lhe no bolso. E Zico, transfeito imaginariamente em commerciante, fiou, a noite inteira, em sonhos, á gente da Tudinha, que afinal captiva de tanta gentileza, lhe concedia a menina.
Só Trancoso dormiu o somno das pedras. sem sonhos nem pesadelos. Que bom é ser rico!
No dia immediato visitou o resto da fazenda, cafesaes e pastos, examinou criação e bemfeitorias; e como o gentil mancebo continuasse no enlevo, Moreira, deliberado na vespera a pedir 40 contos pela Espiga, julgou de bom aviso elevar o preço. Após a scena do páu d'alho suspendeu-o, mentalmente, para 45: findo o exame do gado pulou para 50; de volta do cafesal firmou-o em 60. E assim. quando abordada a magna questão, o velho disse, corajosamente, na voz firme de um "alça jacta":
— Sessenta e cinco, — e esperou de pé atraz a ventania.
Trancoso, porém, achou razoavel o preço.
— Pois não é caro, disse, está um preço mais moderado do que eu suppuz.
O velho mordeu os beiços e tentou emendar a mão.
— Sessenta e cinco, sim, mas... o gado fóra...
— E' justo, respondeu Trancoso.
— ... e fóra tambem os porcos...
— Perfeitamente.
— ... e a mobilia.
— E' natural.
O fazendeiro engasgou: não tinha mais o que excluir; confessou-se lá de si para comsigo que era uma cavalgadura. Porque não pedira logo oitenta?
A mulher, informada do caso, chamou-lhe "pax-vobis".
— Mas creatura, por 40 já era um negocião.
— Por 80 seria o dobro melhor. Não se defenda. Eu nunca vi Moreira que não fosse palerma e sarambé. E' do sangue. Você não tem culpa.
Amuaram um bocado, mas a ancia de architectar castellos com a imprevista dinheirama varreu logo a nuvem.
Zico aproveitou a aura para insistir nos tres contos do estabelecimento, e obteve-os.
D. Izaura desistiu da tal casinha. Lembrava agora uma outra, maior, em rua de procissão, a casa do Eusebio Leite.
— Mas essa é de 12 contos, advertiu o marido.
— Mas é outra cousa do que não é aquelle casebre. Muito bem repartida. Só não gosto da alcova pegada á copa; muito escura...
— Abre-se uma claraboia.
— Tambem o quintal precisa de reforma; em vez do cercado de gallinhas...
Até noite alta, emquanto não vinha o somno, foram remendando a casa, pintando-a, transformando-a na mais deliciosa vivenda da cidade. Estava o casal nos ultimos retoques. dorme-não dorme, quando Zico bateu á porta.
— Tres contos não bastam, meu pae; são precisos cinco. Ha armação de que não me lembrei, e os direitos. e o aluguel da casa, e mais coisinhas...
O pae concedeu generosamente seis entre dois bocejos.
E Zilda? Essa vogava em alto mar d'um romance de fadas.
Deixemol-a vogar.
Chegou finalmente o dia de ir-se o amavel pretendente. Trancoso despediu-se. Sentia muito não poder prolongar a deliciosa estadia. mas interesses de monta chamavam-n'o. A vida do capitalista não é folgada como parece... Quanto ao negocio, considerava-o quasi feito; daria a palavra definitiva dentro de semana.
Partiu Trancoso, levando um pacote de OVOS — gostára muito da raça de gallinhas criada ali; e um saquito de carás — petisco de que era mui guloso.
Levou ainda uma bonita lembrança, e rosilho do Moreira, o melhor cavallo da fazenda. Tanto gabára o animal durante os passeios que se viu o fazendeiro na obrigação de recusar uma barganha proposta, e dar-lh'o de presente.
— Vejam vocês, disse Moreira resumindo a opinião geral: moço riquissimo, direitão, instruido como um doutor e, no entanto, amavel, gentil, incapaz de torcer o nariz como os pulhas que cá têm vindo. O que é ser gente!
A' velha agradára sobretudo a semcerimonia. Levar ovos e carás! Que mimo!
Todos concordaram, louvando-o cada um a seu modo. E assim, mesmo ausente, o gentil ricaço preoccupou a casa durante a semana inteira.
Mas a semana transcorreu sem que viesse a resposta ambicionada. E mais outra. E outra ainda. Escreveu-lhe Moreira, já apprehensivo. Nada. Lembrou-se d'um amigo, morador na mesma cidade, e endereçou-lhe carta pedindo que obtivesse do capitalista a solução definitiva. Quanto ao preço abutia alguma cousa. Dava a fazenda por 55, por 50 e até por 40, com criação e mobilia.
O amigo respondeu sem demora. Ao rasgar do enveloppe os quatro corações da Espiga pulsaram violentamente: aquelle papel encerrava o destino de todos quatro.
Dizia a caria: "Caro Moreira. Ou muito me engano ou estás illudido. Não ha por aqui nenhum Trancoso Carvalhaes capitalista. Ha o Trancosinho, filho da Nha Veva, vulgo Sacatrapo. E' um espertalhão que vive de barganhas e sabe illudir aos que o não conhecem. Ultimamente tem corrido o Estado de Minas, de fazenda em fazenda, sob varios pretextos. Finge-se ás vezes de comprador, passa uma semana em casa do fazendeiro, a caceteal-o om passeios pelas roças, e exames de divisas; come e bebe do bom, namora as criadas, ou a filha, ou o que encontra, — é um vassoura de marca! — e no melhor da festa raspa-se. Tem feito isto um cento de vezes, mudando sempre de zona. Gosta de variar de tempero, o patife. Como aqui Trancoso só ha este, deixo de apresentar ao pulha a tua proposta. Ora o Sacatrapo a comprar fazenda!"
Moreira cahiu numa cadeira, aparvalhado, com a carla sobre os joelhos. Depois o sangue lhe avermelhou as faces o os olhos ohisparam.
— Cachorro!
As quatro esperanças da casa ruiram com fragor, entre lagrimas da menina, raiva da velha e colera dos homens. Zico propoz-se a partir incontinente na piugada do biltre afim de quebrar-lhe a cara.
— Deixa, menino. O mundo dá voltas. Um dia cruzo-me com o ladrão e justo contas.
Pobres castellos! Nada ha ahi mais triste que estes repentinos desmoronamentos de illusões. Os formosos palacios d'Hespanha erigidos durante um méz á custa da mirifica dinheirama, fizeram-se taperas sombrias. D. Izaura chorou os bolinhos, a manteiga, os frangos. Quanto a Zilda, o desastre operou como pé de vento atravez da paineira florida. Cahiu de cama, febricitante. Encovaram-se-lhe as faces. Todas as passagens tragicas dos romances lidos desfilaram-lhe na memoria; reviu-se a victima de todas ellas. E dias a fio pensou no suicidio. Por fim, habituou-se á idéa e continuou a viver. Teve azo de verificar que isto de morrer d'amores, só no Escrich...
Acaba-se aqui a historia — para a platéa; para as galerias segue inda por meio palmo. As platéas costumam impar umas tantas finuras de bom gosto e tom muito de rir; entram no thcatro depois de começada a peça, e saem mal as ameaça o Epilogo. Já as galerias querem a coisa pelo comprido, a geito de aproveitar o dinheirinho até ao derradeiro real. Nos romances e contos pedem esmiuçamento completo do enredo, e se o autor, levado por formulas de escola, lhes arruma para cima. no melhor da festa, com a caudinha reticenciada a que chamam nota impressionista, franzem o nariz. Querem saber, e fazem muito bem, se Fulano morreu, se a menina casou e foi feliz, se o homem afinal vendeu a fazenda, a quem, e por quanto.
Sã, humana e respeitabilissima curiosidade!
— Vendeu a fazenda o pobre Moreira?
Peza-me confessal-o: não! E não a vendeu por artes do mais inconcebivel de quantos qui-pró-quós tem armado neste mundo o diabo — sim, porque afóra o tinhoso, quem é capaz de intrincar os fios da meada com laços e nós cegos justamente quando vae a feliz remate o croché?
O acaso deu a Trancoso uma sorte de cincuenta contos na loteria. Não se riam. Porque motivo não havia Trancoso de ser o escolhido, se a sorte é cega e elle trazia no bolso um bilhete? Ganhou os 50 contos, dinheiro para um pé-atraz d'aquella marca significativo de grande riqueza.
De posse da maquia, após semanas de tonteira, deliberou afazendar-se. Queria tapar a bocca ao mundo realisando coisa jamais passada pela sua cabeça: comprar fazenda.
Correu em revista quantas visitára nos annos de malandragem, propendendo afinal para a Espiga. Ia nisso, sobretudo, a lembrança da menina, dos bolinhos da velha, e a ideia de metter na administração ao sogro, de geito a folgar-se uma vida vadia de regalos, embalada pelo amor da Zilda e os requintes culinarios da sogra.
Escreveu, pois, ao Moreira annunciando a sua volta afim de fecharem negocio.
Ai! Quando tal carta penetrou na Espiga houve rugidos de colera entremeiados de bufos de vingança.
— E' agora! disse o velho. O ladrão gostou da pandega e quer repetir a dose, mas desta feita curo-lhe a balda, ora se! — concluiu esfregando as mãos no antegozo da vingança.
No murcho coração da pallida Zilda, entretanto, bateu um relampago de esperança; a noite de su'alma alvorejou ao luar de um "Quem sabe?" Não se atreveu, todavia, a arrostar a colera do pae e do irmão, concertados ambos n'um tremendo ajuste de contas. Confiou no milagre. Accendeu outra velinha ao Santo Antonio...
O grande dia chegou. Troncoso rompeu pela fazenda caracolando o Rosilho. Desceu Moreira a esperal-o em baixo, de mãos ás costas. Antes de soffrear as redeas já o amavel patife abria-se em exclamações.
— Ora viva, caro Moreira! Chegou emfim o grande dia. Desta vez compro-lhe a fazenda.
Moreira tremia. Esperou que o biltre apeasse e mal Trancoso, lançando as redeas, dirigiu-se-lhe de braços abertos, todo risos, o veiho saca de sob o jaleco um rabo de tatu' e rompe-lhe por cima com impeto de queixada.
— Queres fazenda, grandessissimo tranca! toma, toma fazenda, ladrão! — e "lepte". "lepte", finca-lhe rijas rabadas colericas.
O pobre rapaz, tonteado pelo imprevisto da aggressão, corre ao cavallo e monta ás cegas, de passo que Zico The sacode no lombo nova série de lambadas de aggravadissimo quasicunhado.
D. Izaura atiça-lhe cães:
— Péga, Brinquinho! Ferra, Joli!
O mal azarado comprador de fazendas, acuado como raposa em terreiro, dá de esporas e foge a toda, sob um chuveiro de insultos e pedras. Ao cruzar a porteira inda teve ouvidos para distinguir dentre a grita os desafôros esganiçados da velha:
— Comedor de bolinhos! Papa-manteiga! toma, que em outra não has de cahir, ladrão de ovo e cará!
E Zilda?
Atraz da vidraça, com os olhos pisados do muito chorar, a triste menina viu desapparecer para sempre, envolto em nuvens de pó, o cavalleiro gentil dos seus dourados sonhos.
Moreira, o caipora, perdia, assim, naquelle dia, o unico negocio bom que durante a vida lhe deparára a Fortuna: o duplo descarte da filha e da Espiga...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.