Urupes



balsamico indianismo de Alencar esboroa-se ante o iconoclasta adrento dos Rondons que, ao invez de imaginarem indios n’un gabinete, com reminiscencias de Chateaubriand na cabeça e a Iracema aberta sobre os joelhos, mettem-se a palmilhar sertões de Winchester em punho.

Morreu Pery, incomparavel idealisação dum homem natural como o sonhava Rousseau, prototypo de tantas perfeições humanas que, no romance, em concurso com nobilissimos typos de civilisados, a todos sobreleva em belleza d'alma e corpo.

Contrapoz-lhe a cruel ethnologia do sertanista hodierno um selvagem real, feio e brutesco, anguloso e desinteressante, tão incapaz, muscularmente, de arrancar uma palmeira, como incapaz, moralmente, de amar Cecy.

Por felicidade nossa, e de D. Antonio de Mariz, não os viu Alencar, sonhou-os, qual Rousseau; do contrario lá teriamos o filho de Araré a moquear a linda menina n’um bom brazeiro de páu brazil, em vez de acompanhal-a em perpetua adoração pelas selvas, como o Ariel bemfazejo do Paquequer.

A seducção do imaginoso romancista creou avultada corrente. Toda a clan plumitiva deu de forjar seu indiosinho refegado de Pery e Atala. Em sonetos, contos e novellas hoje esquecidas, consumiram-se tabas inteiras de Aymorés sanhudos, com pennas de tucano por fora e virtudes romanas por dentro.

Vindo o publico a bocejar de farto, já sceptico pelo desmantelo crescente do ideal, cessou no mercado literario a procura de bugres homericos, inubias. tacapes, borés, piagas e virgens bronzeadas. Armas e heróes desandaram, cabisbaixos, rumo ao porão onde se guardam os moveis fóra d'uso — saudoso museu de extinctas pilhas electricas que a seu tempo galvanisaram nervos. E lá acamam poeira cochichando reminiscencias com barba de D. João de Castro, os frankisks de Herculano, os frades de Garrett e que taes...

Não morreu, todavia. Evoluiu. O indianismo está de novo a deitar copa, de nome mudado. Chrismou-se de caboclismo. O cocar de pennas de arara passou a chapeu de palha rebatido á testa ; a ocára virou rancho de sapė ; o tacape afilou, criou gatilho, deitou ouvido e é hoje espingarda troxada; o boré descahiu lamentavelmente para pio de inambu'; a tanga ascendeu a camisa aberta ao peito.

Mas o substracto psychico não mudou: orgulho indomavel, independencia, fidalguia, coragem, virilidade heroica, todo o recheio, em summa, sem faltar uma azeitona, dos Perys e Ubirajáras.

Este setembrino rebrotar duma arte morta inda se não desbagoou de todos os fructos. Terá seu "Y — Juca — Pyrama", seu "Canto do Piaga" e talvez dê opera heroica.

Completo o cyclo, virão destroçar o inverno em flor da illusão indianista os prosaicos demolidores de idolos, gente má e sem poesia. Irão os malvados esgaravatar o icone com a cureta da sciencia. E que feias se hão de entrever as caipirinhas côr de jambo de Varella ! E que chambões e sornas os perys de calça, camisa e faca á cinta!

Isso para o futuro. Hoje ainda ha perigo em bulir no vespeiro: o caboclo é o Ai Jesus nacional.

E' de ver o orgulhoso entono com que respeitaveis figurões batem no peito exclamando com altivez: sou de raça de cabocio!

Annos atraz o de que se orgulhavam era d'uma ascendencia de tanga, inçada de pennas de tucano e dramas intimos obrigados a flexaços de curare.

Dia virá em que os veremos, murchos d'orgulho, confessar o verdadeiro avô, um dos quatrocentos de Gedeão trazidos por Thomé de Souza n'um "Satellite" daquelles tempos, nosso mui nobre e fecundo "Mayflower".

Porque a verdade nu'a manda dizer que entre as raças de variado matiz formadoras de nossa nacionalidade, e meltidas entre o estrangeiro voraz que tudo invade e o aborigene de taboinha no beiço, uma existe a vegetar de cocaras, incapaz de evolução, impenetravel ao progresso.

Feia e sorna, nada a põe de pé.

Quando Pedro I lança aos echos o seu grito historico, o o paiz desperta estrouvinhado á crise duma mudança de dono, o caboclo ergue-se, espia, e acocóra-se de novo.

Pelo 13 de Maio, mal esvoaça o florido decreto da Princeza, e o negro exhausto larga n'um uff! o cabo da enxada, o caboclo olha, coça a cabeça, 'magina, e deixa que do velho mundo venha quem nelle pegue de novo.

A 15 de Novembro substitue-se um throno vitalicio pela cadeira quadrienal. O paiz estremece ante o inopinado da mudança. Mas o caboclo não dá pela coisa.

Vem Floriano, estouram as granadas de Custodio, Gumercindo bate ás portas de Roma. Incitatus resurle e derranca o paiz durante quatro annos. Mas o caboclo continua de cócaras, a modorrar.

Nada o esperia. Nenhuma ferrotoada o põe de pé. Social como individualmente a sua attitude é essa. Para todos os actos da vida, Geca, antes de agir, acocóra-se.

Geca Tatu' é um piraquára do Parahybu, maravilhoso epitome de carne onde se resumem todas as caracteristicas da raça. Eil-o que vem falar ao fazendeiro. Seu primeiro movimento, após prender aos labios o palhão de milho, sacar rolete de fumo e disparar a cusparada d'esguicho, é sentar-se geitosamente sobre os calcanhares. Só então destrava lingua e intelligencia.

— Não vê que...

De pé, ou assentado, as ideias entramam, a lingua emperra e não ha dizer coisa com coisa.

De noite, na choça de palha, acocóra-se em frente ao fogo para "aquental-o", imitado da mulher e da prole. Para comer, negociar uma barganha, ingerir um café, assar um cabo de foice, fazel-o n'outra posição será desastre seguro. Nos mercados, para onde leva a quitanda domingueira, é de cócaras, como um fakir do Bhramaputra, que vigia os cachinhos de brejau'va ou o feixe de tres palmitos.

Pobre Geca Tatu'! Como és bonito no romance e feio na realidade!

Geca mercador, Geca lavrador, Geca philosopho...

Quando comparece ás feiras, todo o mundo logo adivinha o que elle traz: sempre coisas que a natureza derrama pelo matto e ao homem custa apenas o trabalho de espichar o braço e colher — cocos de tuncum e jissára, guabirobas, bacuparis, maracujás, jatahys, pinhões, orchideas; ou artefactos de taquara póca — peneiras, cestinhas, samburás, tipitis, pios de caçador: on utensilios de madeira molle — gamellas, pilõesinhos, colheres de páu. Nada mais.

Seu grande cuidado é espremer todas as consequencias da lei do menor esforço, e nisto vae longe. Começa a applicação da lei na moradia. Sua casa de sapé e lama faz rir aos bichos que moram em toca e gargalhar ao João de barro. Pura biboca de boschimano.

Mobilia nenhuma, A cama é uma espipada esteira de pery posta sobre o chão batido.

A's vezes dá-se ao luxo d'um banquinho de tres pernas — para os hospedes. Tres pernas dão equilibrio: inutil, portanto, metter a quarta, o que obrigaria ainda a nivelar o pavimento. Para que assentos, se a natureza os dotou de solidos, rachados calcanhares?

Nenhum talher. Não é a munheca um talher completo, colher, garfo e faca a um tempo?

No mais, umas cuias, gamellinhas, um pote esbeiçado, a pichorra e a panella de feijão.

Nada de armarios ou bahu's. A roupa guarda-a o corpo. Só tem dois parelhos; um que traz em uso e outro na barrela.

Os mantimentos apaióla nos cantos da casa. Inventou um cipó preso á cumieira, com um gancho na extremidade e um disco de lata no alto: ali pendura o toicinho a salvo de gatos e ratos.

Da parede pende a espingarda pica-páu, o polvarinho de chifre, o S. Benedicto defumado, o rabo de tatu' e as palmas bentas de queimar durante as fortes trovoadas.

Servem de gavetas os buracos da parede.

Seus remotos avós não gozaram de maiores commodidades. Seus netos não metterão quarta perna ao banco. Para que? Vive-se bem sem ella.

Se pelotas de barro cahem, abrindo setteiras na parede, Geca não se move a repol-as. Ficam as janellinhas abertas para o resto da vida, a entremostrar nesgas de céu.

Se a palha do tecto, apodrecida, gréta em fistulas, por onde pinga a agua da chuva, Geca, em vez de remendar a tortura, limita-se, cada vez que chove, a aparar numa gamellinha a agua gottejante.

Remendos... para que? se uma casa dura dez annos e faltam "apenas" oito para abandonar aquella?

Esta philosophia economisa reparos.

Na mansão de Geca a perede dos fundos bojou para fóra um ventre empanzinado, ameaçando ruir; os barrotes, cortados pela humidade, oscillam na podriqueira do baldrame. Afim de neutralisar o desaprumo, e prevenir suas consequencias, grudou nella uma Nossa Senhora enquadrada em moldurinha amarella — santo de mascate.

— Porque não remenda essa parede, homem de Deus?

— Ella não tem coragem de cahir. Não vê a "escora"?

Não obstante, por via das duvidas, quando ronca a trovoada elle abandona a casa e vai agachar-se no ôco d'um velho embirussu' do quintal, para se saborear de longe a efficacia da escora santa.

Um tôco de páu dispensaria o milagre, mas entre espetar o santo e tomar da foice, subir ao morro, cortar a canjerana, atoral-a, baldeal-a e especar a parede, o sacerdote da Grande Lei não vacilla. E' coherente.

Um terreirinho descalvado rodeia a casa. O matto beira com elle. Nem arvores fructiferas, nem horta, nem flôres — nada revelador de permanencia.

Ha mil razões para isso: porque não é sua a terra; porque se o "tocarem" não ficará nada que a outrem aproveite; porque para fructas ha o matto: porque a "criação" estraga, porque...

— Mas, creatura, com um vedosinho por alli... A madeira está á mão, o cipó é tanto...

Geca, interpellado, olha para o morro coberto de moirões, olha para o terreiro nu', coça a cabeça e cuspilha.

— Não paga a pena.

Todo o inconsciente philosophar da raça grulha nessa palavra atravessada de fatalismo e modorra. Nada paga a pena. Nem culturas, nem commodidades. De todo o geito se vive.

Da terra só quer a mandioca, o milho e a canna. A primeira por ser um pão já amassado pela natureza; basta arrancar uma raiz e deital-a ás brazas. Não impõe colheita, não exige celleiro. O plantio se faz com meio palmo de rama fincada em qualquer terra. Não pede cuidados. Não a ataca a formiga. E' sem-vergonhia.

Bem ponderado, a causa principal da lombeira da roça reside nas benemerencias sem conta da "manihot utilissima". Talvez que sem ella o caboclo se puzesse de pé, e andasse. Emquanto dispuzer de um pão cujo preparo se resume no plantar, colher e lançar sobre brazas, Geca não mudará de vida.

O vigor das raças humanas está na razão directa da hostilidade ambiente. Se o hollandez extrahiu a Hollanda, essa joia do esforço, de um brejo salgado, a poder de estacas e diques, é que nada ali o favorecia.

Se a grande Inglaterra saiu das ilhas empodradas e nevoentas da Caledonia é que não medrava nos pedrouços a mandioca; medrasse, e talvez lá os vissemos hoje, aos inglezes, tolhiços, de pé no chão, amarellentos, mariscando de peneira no Tamisa.

Ha bens que vêm para males. A mandioca illustra que farte o avesso do proverbio.

Outro auxiliar precioso da calaçaria é a canna. Dá a rapadura, e para a Geca, o simplificador da vida dá a garapa. Como não possue moenda, torce um rolete a pulso sobre a cuia de café, depois de bem massetados os nós; assucára assim a beberagem, fugindo aos tramites conductores do caldo de canna á rapadura.

Todavia, "est modus in rebus", e assim como ao lado do rastolho cresce o viçoso pé de milho, contrasta com a christianissima simplicidade de Geca a opulencia de um seu visinho e compadre que "está muito bem".

A terra onde móra é sua. Possue ainda uma egua, um monjolo e uma espingarda de dois canos. Pesa nos destinos politicos do paiz com o seu voto e o polvilho azedo de que é fabricante, tendo amealhado com elles voto e polvilho, para mais de quinhentos mil réis no fundo da area.

Vive num corropio de barganhas nas quaes exercita uma astucia nativa muito irmã da de Bertholdo, o pae. A esperteza ultima foi a barganha de um cavallo cego por uma egua de passo picado; verdade é que a egua mancava das mãos, mas inda assim valia dez mil réis mais que o rossinante zanaga.

Esta e outras celebrisaram-lhe os engrimanços potreiros n'um raio de mil braças, grangeando-lhe a incondicional e babosa admiração de Geca, para quem, fino como o compadre. "home"... nem mesmo o vigario de Itaóca.

Aos domingos vae á villa bifurcado na magreza ventruda da "Serena", e leva appenas á garupa um filho, e, atraz, o potrinho no trote, mais a mulher de criança enrolada no chale. Fecha o cortejo o indefectivel Brinquinho, a resfolgar com um palmo de lingua de fóra.

O acto mais importante da sua vida é sem duvida votar no governo. Tira nesse dia da arca a roupa preta do casamento, sarjão furadinho de traça e todo vincado de dobras, entala os pés n'um alentado sapatão de bezerro, ata ao pescoço um collarinho de bico e, se engravata, ringindo e mancando, vae pegar diploma ás mãos do chefe Coisada, que lhe retem para maior garantia da fidelidade partidaria.

Vota. Não sabe em quem, mas vota. Esfrega a penna no livro eleitoral, arabescando e cinco bons minutos o aranhol de gatafunho tremidos a que chama a sua graça.

Se ha tumultos, chuchurreia de pé firme com heroismo, as porretadas opposicionista e ao cabo segue para a casa do chefe, de galo civico na testa e collarinho sungado para traz, afim de lhe depor novamente nas mãos o "dipeloma". O morubixaba, grato e sorridente, galardoa-lhe o heroismo flagrantemente documentado pelo latejar da calo com um aperto de não, e a promessa, para logo, d'uma inspectoria de bairro.

Representa este o typo classico do sitiante, já com um pé fóra da classe. Excepção, discreto que é, não vem ao caso. Trata-se aqui de regra e a regra é Geca Tatu'.

Geca por dentro rivalisa com Geca por fóra. O mobiliario cerebral, á parte o succulenta do recheio de superstições, vale o do casebre. banquinho de tres pés, as cuias, o gancho de toucinho, as gamellas reeditam-se dentro seu caco sob a fórma de idéas: são as noções praticas da vida, que recebeu do pae e que intactas, transmittirá aos filhos.

O sentimento de patria lhe é desconhecido. Não tem sequer a noção do paiz. Sabe que o mundo é grande, que ha sempre terras para adiante, que muito longe está a côrte com graudos e mais distante ainda a Bahia, donde chegam bahianos pernosticos, e cocos. Perguntem ao Geca quem é o presidente da Rpublica.

— O homem que manda em nós todos?

— Sim.

— Pois de certo que ha de ser o imperador.

Em materia de civismo não sobe ponto, antes desce.

— Havendo uma guerra você vae defender o paiz?

— Guerra? T'esconjuro! Meu pae vive afundado no matto p'r'a mais de cinco anos por causa da guerra grande. Eu, para escapar do "reculutamento" sou até capaz cortar um dedo, como o meu tio Lourenço.

Guerra, defeza nacional, acção administrativa, tudo quanto cheira a governo resume-se para o caboclo numa palavra apavorante "reculutamento". Quando, em começos da Presidencia Ineffavel, andou na balha um recenseamento esquecido a Offenbach, o caboclo tremeu, e entrou a casar em chusma. Aqui "havéra de ser reculutamento" e os casados na voz corrente, escapavam á redada.

A sua medicina corre parelhas com o civismo e a mobilia, em qualidade. Quantitativamente, assombra. Da noite cerebral pyrilarpejam-lhe apozemas, cerotos, arrobes e electuarios escapos á sagacidade comica de Ma Twain. Compendia-os um Chernoviz não escripto, monumento de galhofa onde não ha rir, lugubre como é o epilogo. A rede na qual dois homens levam á cova as victimas de semelhante pharmacopéa é o espectaculo mais triste da roça.

Applica as meisinhas o "curador", um Eusebio Macario de pé no chão e cerebro trancado como moita de taquarussu'. O vehiculo usual das drogas é sempre a pinga, meio honesto de render homenagem á deusa Cachaça, divindade que entre elles inda não encontrou hereticos.

Doenças haja que remedios não faltam.

Para bronchite, é um porrete cuspir o doente na bocca de un peixe vivo e soltal-o: o mal se vae com elle agua abaixo.

Para "quebranto de ossos" já não é tão simples a medicação. Tomam-se tres contas de rosario, tres brotos de alecrim, tres limas de bico, tres iscas de palma benta, tres galhinhos de arruda, tres ovos de pata preta (com a casca, sem ella desanda) e um saquinho de picuman: mette-se tudo numa gamella d'agua, e banha-se o doente, fazendo-o tragar preliminarmente tres goles da zurrapa. E' infallivel.

O especifico da brotoeja consiste em cosimento de beiço de pote para lavagens (razão de só encontrarem potes esbeiçados). Ainda ha aqui um pormenor de monta: é preciso que antes de usar o banho a mãe do doente molhe na agua a ponta da sua trança. As brotoejas saram como por encanto.

Para dor no peito que "responde na cacunda", calaplasma de jasmin de cachorro é um porrete.

Além desta allopathia, para a qual contribue tudo quanto de mais repugnante e inocuo existe na natureza, ha a medicação sympathica, baseada na influição mysteriosa de objectos, palavras e actos sobre o corpo humano.

O ritual bysantino, dentro de cujas maranhas os filhos de Geca vêm ao mundo, e do qual não ha fugir sob pena de gravissimas consequencias futuras, daria um in-folio d'alto folego ao Roméro bastante operoso que se propuzesse a consolidal-o.

Num parto difficil nada tão efficaz como engulir tres caroços de feijão mouro, de passo que a parturiente veste pelo avesso a camisa do marido e põe na cabeça o seu chapéu tambem pelo avesso. Falhando esta sympathia, ha um derradeiro recurso: collar no ventre encru'ado a imagem de S. Benedicto.

Nesses momentos angustiosos outra mulher não penetre no quarto sem defumar-se com fogo, nem traga na mão caça ou peixe: criança morreria pagan.

A omissão de qualquer destes preceitos fará chover mil desgraças na cabeça do chorincas recemnascido.

A posse de certos objecios confere dotes sobrenaturaes. A invulnerabilidade ás faca l ou cargas de chumbo é obtida graças á flôr de samambaia.

Esta planta, conta Geca, só florece uma vez por anno, e só produz em cada samanbaial uma flôr. Isso á meia noite, no dia de S.Bartholomeu. E' preciso ser muito mofin para colhel-a, porque tambem o diabo lhe anda á cata. Quem consegue pegar uma outrea logo um estoiro, e tonteia ao cheiro de enxofre, mas livra-se de faca e chumbo para o resto da vida.

Todos os volumes de Larousse não bastariam para catalogar-lhes as crendices e como não ha linhas divisorias entre estas e a reg gião, confundem-se ambas em maranhada teia, não havendo distinguir onde uma pára e outra começa.

A ideia de Deus e dos santos torna-se caboclocentrica. São elles ou grau'dos lá de cima, coroneis celestes, debruçados no azul para espreitar-lhes a vidinha e intervir nella, ajudando um e castigando outro, como os mettediços deuses de Homero. Uma torcedura de pé, um estrépe, o feijão entornado, o pote que rachou, o bicho que arruinou, tudo diabruras da corte celeste para castigo de más intenções ou actos. Dahi o fatalismo. Se tudo movem cordeis lá de cima, para que luctar, reagir? Deus quiz. A maior catastrophe é recebida com esta exclamação, muito parenta do Allah Kébir do beduino.

E na arte? Nada.

A arte rustica do camponio europeu é rica a ponto de constituir preciosa fonte de suggestões aos artistas de escól. Em nenhum paiz o povo vivo sem recorrer a ella para um ingenuo embellezamento da vida. Já não se fala do camponez italiano ou teutonico, filho de alfobres mimosos, propicios a todas as florações estheticas. Mas o russo, o hirsuto mujik a meio atolado em barbarie crassa. Os vestuarios nacionaes da Ukrania, nos quaes a côr viva e o sarapantado da ornamentação indicam a ingenuidade do primitivo, as isbas da Lithuania, sua ceramica, os bordados, os moveis, os utensilios de cosinha, tudo revela no mais rude dos camponios o sentimento nativo da arte.

No Samoyeda, no pelle-vermelha, no abexim, no papu'a, um arabesco ingenuo costuma ornar-lhes as armas, como lhes ornam a vida canções repassadas de rythmos suggestivos. Que nada é isso sabido como já o homem pre-historico, companheiro do urso das cavernas, entalhava perfis de mamutes em chifres de renna.

Egresso á regra, Geca não denuncia traço remoto d'um sentimento nascido com e troglodyta.

Esmerilhemos o seu casebre: que é que denota ali a existencia do mais vago senso esthetico? Uma chumbada no cabo do relho e uns ziguezagues a canivete ou fogo pelo roliço do guatambu': é tudo.

A's vezes surge n'uma familia um genio musical cuja fama esvoaça pelas redondezas. Eil-o na viola: concentra-se, tosse, cuspilha o pigarro, fere as cordas e "tempera". E fica nisso, no tempero.

Dirão: e a modinha?

A modinha. como as demais manifestações de arte popular existentes no paiz, é obra exclusiva do mulato, em cujas veias o sangue recente do europeu, rico de atavismos estheticos, borbulha de mistura com o sangue selvagem, alegre e são do negro.

O caboclo é soturno.

Não canta senão rezas lugubres.

Não dança senão o catêrêtê aladainhado.

Não esculpe o cabo da faca como o kabyla.

Não compõe sua canção como o fellah do Egypto.

Triste como o curiango, nem sequer assobia.

No meio da natureza brasilica, tão rica de formas e côres, onde os ipés floridos derramam feitiços no ambiente, e a infolhescencia dos cedros, ás primeiras chuvas de Setembro, abre a dança dos tangarás, onde ha abelhas de sol, esmeraldas vivas, cigarras, sabiás, luz, côr, perfume, vida dionisiaca em escachôo permanente, o caboclo é o sombrio urupê de páu podre, a modorrar silencioso no recesso das grotas.

Só elle não fala, não canla, não ri, não ama.

Só elle, no meio de tanta vida, não vive.







Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.