Velho vento vagabundo!
No teu rosnar sonolento
Leva ao longe este lamento,
Além do escárnio do mundo.

Tu que erras dos campanários
Nas grandes torres tristonhas
E és o fantasma que sonhas
Pelos bosques solitários.

Tu que vens lá de tão longe
Com o teu bordão das jornadas
Rezando pelas estradas
Sombrias rezas de monge.

Tu que soltas pesadelos
Nos campos e nas florestas
E fazes, por noites mestas,
Arrepiar os cabelos.

Tu que contas velhas lendas
Nas harpas da tempestade,
Viajas na Imensidade,
Caminhas todas as sendas.

Tu que sabes mil segredos,
Mistérios negros, atrozes
E formas as dúbias vozes
Dos soturnos arvoredos.

Que tornas o mar sanhudo,
Implacável, formidando,
As brutas trompas soprando
Sob um céu trevoso e mudo.

Que penetras velhas portas,
Atravessando por frinchas...
E sopras, zargunchas, guinchas
Nas ermas aldeias mortas.

Que ao luar, pelos engenhos,
Nos miseráveis casebres
Espalhas frios e febres
Com teus aspectos ferrenhos.

Que soluças nos zimbórios
Os teus felinos queixumes,
Uivando nos altos cumes
Dos montes verdes e flóreos.

Que te desprendes no espaço
Perdido no estranho rumo
Por entre visões de fumo,
Das estrelas no regaço.

Que de Réquiens e surdinas
E de hieróglifos secretos
Enches os lagos quietos
Revestidos de neblinas.

Que ruges, brames, trovejas
Ó velho vândalo amargo,
No sonâmbulo letargo
De um mocho rondando igrejas.

Que falas também baixinho
Lá da origem do mistério,
Trazendo o augúrio sidéreo
E certa voz de carinho...

Que nas ruas mais escusa,
Por tardes de nuvens feias,
Como um ébrio cambaleias
Rosnando pragas confusas.

Que és o boêmio maldito,
O renegado boêmio,
Em tudo o turvo irmão gêmeo
Do sonhador Infinito.

Que és como louco das praças
Nos seus gritos delirantes
Clamando a pulmões possantes
Todo o Inferno das desgraças.

Que lembras dragões convulsos,
Bufantes, aéreos, soltos,
Noctambulando revoltos
Mordendo as caudas e os pulsos.

Ó velho vento saudoso,
Velho vento compassivo,
Ó ser vulcânico e vivo,
Taciturno e tormentoso!

Alma de ânsias e de brados,
Consolador companheiro
Sinistro deus forasteiro
D'espaços ilimitados!

Tu que andas, além, perdido,
Tateando na esfera imensa
Como um cego de nascença
Nos desertos esquecido...

Que gozas toda a paragem,
Toda a região mais diversa,
Levando sempre dispersa
A tua queixa selvagem.

Que no trágico abandono,
No tédio das grandes horas
Desoladamente choras,
Sem fadigas e sem sono.

Que lembras nos teus clamores,
Nas fúrias negras, dantescas,
Torturas medievalescas
Dos ímpios inquisidores.

Que és sempre a ronda das casas,
A gemente sentinela
Que tudo desgrenha e gela
Com o torvo rumor das asas.

Que pareces hordas e hordas
De hirsutos, intonsos bardos
Vibrando cânticos tardos
Por liras de cem mil cordas.

Ó vento languido e vago,
Ó fantasista das brumas,
Sopro equóreo das espumas,
Ó dá-me o teu grande afago!

Que a tua sombra me envolva
Que o teu vulto me console
E o meu Sentimento role
E nos astros se dissolva...

Que eu me liberte das ânsias
De ansiedades me liberte,
Pairando no espasmo inerte
Das mais longínquas distâncias.

Eu quero perder-me a fundo
No teu segredo nevoento,
Ó velho e velado vento,
Velho vento vagabundo!