CAPITULO X
Da chegada de uma barca portugueza á Maranhão.
Quando menos pensavamos, achando-se a Ilha sem indios e sem francezes, por terem aquelles ido viajar pelo Amazonas, e estes pela segunda vez ao Miary, de que brevemente trataremos, por espaço de um mez fomos incommodados com mil noticias, ora de selvagens residentes perto do mar, ora de francezes moradores nos fortes, que diziam ter ouvido tiros de peça para o lado da costa da pequena Ilha de Santa Anna, e da de Tabucuru,[NCH 24] e ter visto tres navios velejando ao redor da Ilha, eis que se apresentou uma barca, commandada por um capitão portuguez, chamado Martin Soares.
Vinha da Ilha de Santa Anna, onde tinha desembarcado, tomado posse d’ella para o Rei Catholico, plantado uma grande Cruz, e levantado um marco com uma inscripção, de que logo fallaremos.
Andou este navio por todo o porto de Caurs, saltando sua tripulação sempre que lhe approuve para vêr e escolher lugares proprios á plantação de canas e ao fabrico do assucar, especialmente no lugar chamado Ianuarapin, onde foi erguida uma Cruz com o fim de crear-se uma bella habitação de portuguezes, e construir-se muitos engenhos de assucar.
Approximaram-se depois da enseiada de Caurs, uma das entradas da Ilha, onde depois da sua vinda, se edificaram dois bellos fortes afim de impedir o desembarque.
Elles davam alguns tiros de peça para chamar os selvagens da Ilha: nenhum lá foi, menos o Principal de Itaparis, suspeito por traidor: perguntaram-lhe muita coisa, e ignora-se o que respondeo: deram-lhe machados e fouces, e depois veio para a Ilha.
Os portuguezes traziam comsigo os indios Canibaes,[NCH 25] moradores em Mocuru, e parentes de outros do mesmo nome refugiados em Maranhão, os quaes elles mandaram á terra para tomar conhecimento, e informações, si na Ilha haviam muitos francezes, si estavam fortificados, e si tinham canhões.
Felizmente dirigiram-se aos Tupinambás, que lhes disseram não haver na Ilha um só francez, um só forte, um só navio, barca, nem canhão, e com tal segurança principiaram a comer, e os Tupinambás mandaram immediatamente ao forte de S. Luiz contar tudo isto.
Expedio-se logo uma barca, bem esquipada, com o fim de prender os portuguezes; porem aconteceo, que um traidor Canibal, inimigo rancoroso dos francezes, e a quem já se tinha muitas vezes perdoado castigos, em que havia incorrido, sabendo da noticia da vinda dos outros, foi procural-os furtivamente, e em segredo lhes disse — «que fazeis aqui, fugi depressa para o mar, regressae ao vosso navio, porque os francezes tem na Ilha um bello forte, canôas, navios, e canhões.»
Mal ouviram isto, levantaram-se ás pressas, e disseram aos seos hospedes Tupinambás, que os divertiam — Ah! maus, enganaes vossos camaradas — e assim dizendo á passos apressados foram com o traidor para a sua canôa, e em breve chegaram a barca, ancorada n’uma enseiada um pouco adiante.
Vendo isto os portuguezes, desconfiaram logo que os francezes estavam na Ilha, e que não deixariam de os perseguir, e apenas tinham levantado ancoras, descobriram a barca dos francezes, e estes a d’elles, apressaram-se a tomar a dianteira dos portuguezes, navegando á bolina, muito bem, quebrando os rolos d’agoa, pelos bancos d’area, pouco pensando em encalhar comtanto que conseguissem apresional-a do que lhes resultaria muita commodidade, visto conhecer-se a intenção dos portuguezes, descoberta pela bôa vontade dos...
... todas as Nações, e nós vemos por experiencia em varios lugares da França, d’onde veio o proverbio — chorar de alegria.
Chegados ao Forte depois de descançarem como poderam, conservaram-se serios e reservados sem entregarem-se á vivacidade e impulso da curiosidade, e sendo a imperfeição unica dos francezes o fazer tudo ás pressas, buscando todos os meios de conseguir seos fins, foram elles ter com o Maioral, aos quaes assim fallaram:
«Conforme as noticias que déstes a dois dos nossos, escravos entre os Tupinambás, para nos transmittirem fielmente a respeito da tua vinda e da dos Padres n’estes lugares afim de defender-nos dos Peros, e ensinar-nos a conhecer o verdadeiro Deos, dar-nos machados e outras ferramentas para facilitar a nossa vida, fallamos n’isto em muitas reuniões, e recordando-nos de que os francezes sempre nos fôram fieis, vivendo em paz comnosco, e acompanhando-nos á guerra, onde alguns morreram, todos os meos similhantes mostraram-se contentes e resolveram, de combinação com o nosso chefe, obedecer-te e em tudo fazer-te a vontade: eis porque me mandaram expressamente afim de pedir-te alguns francezes para acompanhar-nos e guardar-nos até voltarmos do lugar, por ti indicado.»
Respondeo-se-lhe com palavras de amisade, e que se lhes daria os francezes.
Sahindo d’ahi foram procurar-me em minha casa, onde tambem me exposeram a sua missão, de que fallarei quando for occasião.
Pediram-me o meu pequeno interprete para ir com elles assegurar ao Thion, seo chefe, e a todos os seos companheiros, que eu os receberia como filhos de Deos, e que podiam vir afoitamente confiados na protecção dos Padres.
Acompanhados por muitos francezes e pelo meo interprete, a quem dei algumas imagens como mimos, a Thion, elles embarcaram para o Mearim em busca de suas casas.
Foram recebidos com muitos applausos, choros, lagrymas, e danças de dia e de noite.
Prepararam vinhos em abundancia, presentearam os francezes com muitos porcos do matto e outras caças, e offereceram-lhes muitas raparigas das mais bonitas, o que regeitaram dizendo que Deos não queria, e que os Padres prohibiam, e se quizessem agradar os Padres, quando fossem para a Ilha, deviam levar Cruzes para expellir o Giropary[NCH 26] do meio d’elles: assim o disseram, assim o fizeram, plantando muitas Cruzes, em varios lugares na frente de suas casas, como ainda hoje se vê, e que ficaram como prova de habitação antiga, d’onde foram chamados para ir á outra terra, já illuminada pelo conhecimento de Deos, e enriquecida com os Sacrosantos Sacramentos da Igreja, como aconteceo outr’ora com a nação do povo de Israel, que sahio do Egypto em busca da terra da Promissão.
Dispostas estas coisas, cada um cuidou em arrumar-se e fazer sua colheita, destruir as roças, e preparar bom farnél, pois deviam em pouco tempo deixar e abandonar este lugar: indagavam muito de varias coisas tendentes á sua salvação, e eram satisfeitas as suas perguntas.
Aproveitaram-se os Francezes da occasião e facilidade, que lhes offerecia para conquistar a nação proxima de indios inimigos, da aldeia de Thion, e causava pena ouvil-os dizer, que haviam comido a muitos, porque eram mais fortes, tinham maior numero de aldeiamentos e de homens, e o Principal d’elles, chamado Farinha-grossa, valente na guerra, alegre, e muito propenso ao Christianismo, como fallaremos n’outro lugar, dizia com garbo, «si eu quizesse comer os inimigos, não ficaria um só, porem conservei-os para satisfazer minha vontade, uns após outros, entreter meo apetite, e exercitar diariamente minha gente na guerra: e de que serviria matal-os todos de uma só vez quando não havia quem os comesse? Alem d’isto não tendo minha gente com quem bater-se, se desuniriam, e separar-se-iam como aconteceo á Thion.» Assim disse, porque antes estas duas nações formavam uma só, morando juntas, em lugares longinquos e distantes dos inimigos, contra os quaes podiam exercitar-se na guerra, e apezar de tudo atacaram-se reciprocamente.
Tal proceder confirma a bella maxima do Estado — quem deseja conservar o interior em paz, deve empregar os sediciosos fóra d’ahi, especialmente contra os inimigos da fé, e fallando em sentido moral — quem quer salvár o coração de todo o vicio e imperfeição deve resguardal-o das impressões exteriores.
Como condições de paz estabeleceo-se o esquecimento reciproco de todas as injurias, mortes e banquetes com os corpos dos inimigos: que devia revestir-se de paciencia quem mais perdesse: que não devia havêr exprobrações de parte á parte, e quando recolhidos a Ilha, morariam separados uns dos outros, e todos seriam fieis aos Francezes.
Chegada a occasião foram enviadas muitas canoas e barcos, nas quaes vieram para a Ilha.
Foram bem recebidos, o seo chefe Thion saudado com cinco tiros de peça, e duas descargas de mosquetaria, passando por meio de soldados francezes, dispostos conforme as ceremonias da guerra, assim entrou no Forte, onde o Sr. Pesieux e eu o acolhemos, e o condusimos á sua casa para descançar.
Em lugar proprio contarei o que elle nos disse.