CAPITULO XLIV
Das aranhas, cigarras e mosquitos.
A vida do homem é comparada com a da aranha em muitos lugares da Escriptura Santa, especialmente no Psal. 89. Anni nostri sicut Aranea meditabuntur «nossos annos se passaram, serão contados e meditados como os da Aranha.»
Escreveo S. Isidoro, que a aranha é um verme do elemento do ar, n’elle nutrido, d’onde se deriva a etymologia do seo nome, nunca descança, sempre trabalha, de si tira com que formar sua teia, sempre em perigo por se achar ella, seos bens, e suas riquezas, suspensas n’um fio, mercê do menor sopro de vento, ou do capricho de um criado ou de uma camareira, que com um espanador destrua todo o trabalho.
Quereis mais bello espelho para considerar as desgraças e miserias d’esta vida?
Não perderei tempo referindo o que se sabe acerca da naturesa d’este verme, e apenas contarei o que achei de curioso e especial nas formigas do Maranhão, e antes de entrar na materia fallarei d’uma especie do tamanho de um punho de braço, e as vezes até maior.
Encontram-se ordinariamente no tronco das arvores, proximas ás casas, nas estacas, nos cantos, caminham pouco, não tem teias, muito venenosas, vermelhas quasi da côr de borrachos quando sahem do ovo, coisa horrivel e feia!
Fogem d’ellas os Indios, e julgam mortifera a sua picada. Nutrem-se da corrupção do ar.
Existem outras de diversas especies, maiores e menores, e todas domesticadas, e nos mattos encontram-se grandes, menores, e pequenas.
Em todo o tempo produzem e especialmente no inverno.
Com a frescura da noite juntam-se: deixa o macho a sua teia para se unir com o seo fio á teia da femea, si ella está collocada em lugar mais baixo: si porem a teia da femea é superior á do macho desce ella, vem procural-o, e assim si juntam.
É muito facil de vêr-se, pois o praticam todos os dias, no fim da tarde.
O macho é pequeno, e a femea é tres vezes maior do que elle.
Fazem uma pequena bolça, redonda e chata, muito bem feita e tecida, parecendo-se com setim branco e a similhança de um breve de Agnus Dei.
N’ella deixam apenas um buraquinho, por onde com o pé introduzem os ovos.
Quando está fechada a bolça tapam o buraquinho, e carregam-na junto ao ventre e estomago, aquecendo-a por esta fórma, e quando presentem estar os filhos em estado de sahir, rasgam a bolça ao redor, como se faz com a casca da fava, sahem logo, correm pela teia da mãe, e a noite agasalham-se debaixo da mãe, como fazem os pintos com as gallinhas afim de resguardarem-se do frio da noite.
Quando tem forças, cada uma faz a sua teia, e por sua industria cuida de si.
Ha outras, que fazem pequenos pucaros de barro, do tamanho e feitio de uma ameixa de dama, tão bem feitos, quanto é possivel, por dentro e por fóra, o que tambem fazem certas especies de moscas, de que ainda fallarei.
São as boccas d’estes potes proporcionaes aos seos tamanhos, com um buraco tão pequeno, em que cabe apenas um alfinete, por onde sahem os ovos para serem aquecidos pelo Sol.
Este pucaro costuma estar junto a uma arvore, ou n’uma folha de palmeira, e a terra de que é feito, muito se parece com a de Beauvais.
Enchem o pucaro de ovos, tapam no, e quando as mães julgam ja terem os filhos sahido da casca, destapam o buraco, e então sahem as aranhasinhas e acompanham-nas.
As aranhas dos mattos procedem de outro modo: roem as amendoas das nozes das palmeiras espinhosas, pouco a pouco e deitam fora tudo por meio de tres buracos naturaes, que tem estes fructos: depois ahi dentro fazem seus ninhos e depositam seos ovos.
São differentes as teias destas aranhas quanto a sua posição por ellas escolhidas.
As domesticadas armam suas teias nas rachas e entradas dos buracos, afim de agarrarem moscas e mosquitos.
Umas estendem suas teias nas arvores, de um ramo a outro, e de um arbusto a outro para agarrarem borboletas e outros bichinhos iguaes: outras tecem as teias por cima da terra para pilharem vermes, como sejam formigas e outros iguaes.
Algumas fazem teias tão fortes, que até n’ellas cahem lagartinhas, e então descem as aranhas, matam-nas por meio de um aguilhão, que tem em si, e depois chupam-lhe os miolos e o sangue, e só quando se fartam, é que as deixam.
Vi aranhas do mar, muito parecidas com as de terra porem maiores.[NCH 73] Habitam em buracos nas praias, e alimentam-se de peixinhos.
Dizem que chupam o sangue e o humor das cobras, iguaes as que mandei cortar em pedaços, e asseveram os selvagens, que se morderem a cabeça d’algum individuo, ficará louco. No Maranhão, como em parte alguma, tem muitas cigarras,[NCH 74] que fazem em tempo proprio um barulho infernal, como eu não acreditaria si não ouvisse: ha de diversas variedades, tamanhos e cantos.
São umas grossas, tem seis pollegadas de comprimento, e voz forte e alta a ponto de ferir-vos vivamente os ouvidos. Não cantam no inverno, e sim no estio, e quando se aproximam as chuvas gritam tanto a ponto de estalarem pelos lados, como me contaram os selvagens, sendo isto causado pelo bater das azas quando si esforçam e se incham para dar mais harmonia á voz.
Estudei os usos e costumes destes animaes em alguns, que conservei entre folhas na nossa casa.
Reconheci ser seo canto devido a tres coisas.
1.ª Engolem o ar, enchem o ventre, entumecem-se bem para estenderem bem os lados, e ficarem sonoras. Ha grande accordo entre a extensão dos lados, e as azas, por meio das quaes forma-se o som, que claramente se vê tomarem ellas folego quando erguem as azas, e quando abaixam, estendem e dilatam os flancos.
2.ª As azas são mui finas e diaphanas, e por tanto proprias para formar o som por serem muito seccas.
3.ª As azas de cima sendo fortes e massiças, tocando e batendo as azas do meio contra os lados e com auxilio do ar, forma o som.
Vou fazer-vos comprehender isto por meio de comparações vulgares.
N’uma cithara ha tres coisas para produzir harmonia — as costas onde fica o ar, que entra pela rosa do meio, as cordas tesas, limpas, seccas e bem collocadas, e a mão do tocador: assim tem estes animaesinhos as costas e as ilhargas cheias de ar, que entrou pela bocca, as segundas azas são as cordas, e as grossas a mão do tocador.
Cantam no estio desde o nascer do sol até meia noite ou duas horas depois, e se callam por causa do orvalho, que começa a cahir com frio, e assim ficam até que appareça o sol e com seos raios extinga as gottas de orvalho, que cahiram nas folhas, e então vem ellas aquecer suas azas.
Em quanto guardam silencio, é minha opinião, que ellas se nutrem com o mesmo orvalho, e não digo isto sem causa pois quasi sempre ficam no mesmo logar, e quando sentem algum movimento voam para outra folha.
Algumas d’ellas, especialmente as todas verdes, não tem voz, arrastam-se pela terra como os gafanhotos, juntam-se como as moscas, põem em setembro ovinhos negros nos buracos dos ramos das arvores, nos quaes se formam os vermes, ao depois cigarras: vão pouco a pouco se fortificando afim de passarem a estação invernosa, e substituirem seos paes e mães que n’esse tempo morrem arrebentados á força de gritar como ja disse.
Não tem sangue, ou tem muito menos que as moscas, porem são organisadas de uma substancia porosa, secca, e ligeira.
Matam-nas as gallinhas, porem não as comem, e quando por acaso o fazem, enfraquecem e emmagrecem.
Ha n’este paiz diversas especies de mosquitos, porem apenas tratarei dos que o merecerem pelos seos principios naturaes, e são os chamados Maringoins pelos selvagens: ha de diversos tamanhos e grossura, e todos tem a mesma forma.
Originam-se de um humor acre, gostam dos sabores picantes e acidos, e por isso encontram-se muito no mar e suas praias no tempo do inverno, formados pelo humor e vapores do mar.
Incommodam muito os homens picando-lhes a pelle com seo bico ponteagudo como uma agulha, e sugando assim o humor salgado, que corre entre a pelle e a carne.
Gostam da luz porem aborrecem a chama e a fumaça, e por isso quando anoitece, as que andam por fóra, poisam nas folhas das arvores, e os que estão dentro de casa nos tectos, bem a seu pesar, por causa das fogueiras, que acendem os selvagens ao redor de si, para se livrarem d’elles.
Nos lugares mais proximos a agoa, maior abundancia d’elles existe, visto serem creados por agoas, como ja disse.
São caçados pelos morcegos, que, buscando-os nos lugares onde se fixam, involvem-nos com suas azas e depois os comem.
São por elles muitissimo perseguidos os nossos francezes, quando vão á pesca do peixe-boi, e para evital-os armam suas redes no ramo das arvores, o mais alto que podem, por ahi soprarem mais o ar e o vento: si se partissem as cordas dariam bello salto, e não deixam de emballançar-se para afugental-os.