CAPITULO XX

Continuação do objecto antecedente.


Concordo que sejam estes povos inclinados pela naturesa á muitos vicios, porem é necessario lembrar-nos, que elles são captivos por infidelidade d’estes espiritos rebeldes a Lei de Deos, e instigadores da sua transgressão.

São João na sua Epistola 1.ª chama iniquidade ou desigualdade o desvio ou a digressão do direito, como muito bem explica o texto Grego[1] ——————————, assim traduzido Peccatum est exorbitatio á lege.

Esta Lei é divina ou humana: aquella dada por escripto á Moysés, e depois por Jesus Christo aos christãos, e esta acha-se gravada no intimo d’alma.

Transgredindo-se estas duas Leis commettem-se dois peccados, um contra os mandamentos de Deos, e outro contra a lei natural: por elles serão accusados e condemnados os incredulos, cada um de per si, alem do peccado commum da infidelidade.

Entre todos os vicios a que estão sugeitos estes barbaros, sobresahe a vingança, que nunca perdoam, e a praticam logo que podem, embora as boas apparencias com que tratam seos inimigos reconciliados.

Não ha a menor duvida que retirando-se os francezes do Maranhão, todas as nações, antes inimigas, que ahi residem promiscuamente, por terem a nossa alliança, devorar-se-hão umas ás outras, embora, o que é para admirar, vivam agora muito bem sob o dominio dos francezes, e até contrahindo-se casamentos entre ellas.

Gostam tanto de vinho a ponto de ser considerada a embriaguez por elles, e até mesmo pelas mulheres, como uma grande honra.

São impudicos extraordinariamente, mais as raparigas do que qualquer outros inventores de noticias falsas, mentirosos, levianos e inconstantes, vicios mui communs a todos os incredulos, e por ultimo são extremamente preguiçosos a ponto de não quererem trabalhar, embora vivam na miseria, antes do que na opulencia por meio do trabalho.

Se elles quizessem, não era necessario muito cansaço para terem em poucas horas muita carne e peixe.

O que acabo de dizer, refere-se especialmente aos Tupinambás, porque as outras nações, como sejam os Tabajares, Cabellos-compridos, Tremembés, Canibaes, Pacajares, Camarapins, e Pinarienses, e outros trabalham muito para viver, ajuntar generos, ter boa casa, e todas as commodidades.

Vou dar-vos um exemplo bem notavel da preguiça dos nossos Tupinambás.

Obtendo alguns Francezes do Forte licença para irem passear ás aldeias, foram á do chefe Vsaap.

Na entrada da primeira choupana encontraram um grande fumeiro cheio de caça, e ao lado d’elle um indio, dono da casa, deitado n’uma rede de algodão, que gemia muito como se estivesse bastante doente.

Os nossos Francezes alegres e promptos á festejarem esta mesa tão bem preparada, lhe perguntaram com brandura e carinho Dê omano Chetuasap, «está doente meo compadre?» Sim, respondeo elle. Que tendes, replicaram os Francezes, quem vos fez mal? Minha mulher, disse elle. Foi para roça desde pela manhã, e eu ainda não comi. A farinha e a carne está tão perto de vós, porque não vos levantaes, para comer, disseram os francezes? Sou preguiçoso, não sei levantar-me. Quereis, tornaram os francezes, que vos levemos a farinha e a carne, e comeremos comvosco? Quero, respondeo elle logo.

Começaram todos a aliviar o fumeiro, pozeram tudo diante d’elle, e assentando-se em roda, como é de costume, excitaram-lhe o apetite pela boa vontade que mostravam, e o trabalho, que elles tiveram de tirar a comida de cima do fumeiro, em distancia de tres pés, foi o unico pagamento de tal companhia na mesa.

Apesar de suas perversas inclinações, elles tem outras muito boas, louvaveis e virtuosas.

Vivem pacificamente com os outros, dividem com elles o resultado de sua pescaria, caçada e lavoura, e não comem ás escondidas.

Um dia na aldeia de Januaran só tinham farinha para comer. Appareceu um rapaz trazendo uma perdiz morta ha pouco; sua mãe depennou-a ao fogo, cozinhou-a, deitou-a n’um pilão, reduzio-a á pó, e juntando-lhe folhas de mandioca, cujo gosto é similhante ao da chicoria selvagem, fez ferver tudo, e depois de bem picado ou cortado em pedacinhos, d’esta mistura fez pequenos bolos, do tamanho de uma balla, e mandou distribuil-os pela aldeia, um para cada choupana.

Vi ainda uma coisa mais admiravel, embora comesinha, e sem consequencia.

Appareceram em minha casa muitos selvagens esfaimados, vindos da pescaria, onde somente apanharam um carangueijo, que assaram sobre carvões, e pedindo-me farinha, o comeram todos, fazendo roda, cada um o seo pedacinho: eram doze ou treze.

Bem podeis imaginar o que tocaria a cada um, sendo o carangueijo do tamanho de um ovo de galinha.

É muito grande a liberalidade entre elles, e desconhecida a avaresa.

Si algum delles tiver desejos de possuir uma coisa, que pertença a outro, elle o diz francamente, e é preciso que o objecto seja muito estimado para não ser dado logo, embora o que a pedio fique na obrigação de dar ao outro tambem o que elle desejar.

Tornam-se mais liberaes para com os estrangeiros do que para com seos patricios.

Ficam reduzidos á pobresa comtanto que bem hospedem os estrangeiros, que vão visital-os, julgando-se bem recompensados com a fama de liberaes, espalhada pelos que não são de sua terra, e julgam chegar ella até aos paizes estrangeiros, onde serão tidos por grandes e ricos.

Com taes ideias muitas vezes vão fazer visitas a cem, duzentas e tresentas legoas afim de serem apreciados por suas liberalidades.

Nunca roubam uns aos outros; o que possuem está á vista, pendurado nas vigas e barrotes de suas casas.

É bem verdade, que dentro da Ilha actualmente, em Tapuytapera, e Cumã, elles tem cofres, que lhes deram os Francezes, onde guardam o que tem de melhor, e, ou excitados por isto, ou pelo exemplo dos Francezes, muitos d’elles ja aprenderam a arte de furtar.

Elles chamam furtar — Mondá, ao ladrão Mondaron, e este nome é entre elles grande injuria a ponto de mudarem de côr quando o pronunciam: chamar uma mulher ladra, é duas vezes prostituta, com o nome de Menondere para differençar de prostituta simples — Patakuere, é aquelle primeiro epitheto o mais afrontoso, que se lhe pode dizer.

Tomareis uma boa vingança chamando-os ladrões, quando elles vos atirarem ao rosto um bem claro, e expressivo Giriragoy, que quer dizer mentiste, sem exceptuar pessoa alguma, e por isto bem podeis avaliar quanto este vicio é detestado por elles, pois não podem tolerar a injuria.

Guardam reciproca equidade, não se enganam nem se illudem: si um offende a outro, segue-se logo a pena de Talião: são mui tolerantes, respeitam-se reciprocamente, especialmente os velhos.

São muito soffredores em suas miserias e fome chegando até a comer terra,[NCH 37] ao que acostumam seos filhos, o que vi muitas vezes.

Vi muitos meninos tendo nas mãos uma bolla de terra, que ha em sua aldeia como terra siggilada, a qual apreciam e comem como fazem as crianças, em França com as maçans, as pêras, e outros fructos que se lhes dá.

Não se esmeram no preparo da comida, como nós, por que ou a cozinham ao fogo, ou a fazem ferver n’uma panella sem sal, ou assam-n’a no fumeiro.

 

Notas de rodapé

editar
  1. Por falta de typos proprios deixamos em claro este espaço. — Do traductor.