CAPITULO XXII

A mesma ordem e respeito é observada entre as raparigas e as mulheres.


Encontram-se n’estes selvagens vestigios da naturesa, como as pedras preciosas se acham nas encostas das montanhas.

Seria um louco o que quizesse encontrar em seos jazigos os diamantes tão claros e brilhantes, como quanto lapidados e engastados n’um anel.

Provem esta differença de se acharem tão ricas pedras cubertas de jaça sem mostrar o seo valor de tal sorte, que muitos passam e tornam a passar por cima d’ellas sem levantal-as visto não as conhecerem.

Acontece a mesma coisa na conversação d’estes pobres selvagens: muitos ignoram e ignorarão ainda o que tenho narrado e narrarei, e embora tenham conversado com elles por muito tempo, por falta de conhecimento ou de observação da boa conducta natural d’estas pessoas fóra da graça de Deos, passaram por ellas, á similhança das pedras preciosas, sem tirar o menor proveito, e olhando-as com indifferença.

A mesma ordem de classes de idade tenho observado entre as raparigas e as mulheres, como entre os homens.

A primeira classe é commum á ambos os sexos, cujos individuos, sahindo immediatamente do ventre de suas mães, se chama Peitan, como já dissemos no art. antecedente.

A segunda classe estabelece distinção de idade, de sexo, e de dever: d’idade de moça para moça, de sexo de moça para rapaz, e de dever de mais moça para mais velha.

Comprehende esta classe os sete primeiros annos, e a rapariga d’esse tempo se chama kugnantin-myri, quer dizer rapariguinha.

Reside com sua mãe, mama mais um anno do que os rapazes, e vi meninas com seis annos d’idade ainda mamando, embora comam bem, fallem, e corram como as outras.

Em quanto os rapazes d’esta idade carregam arcos e flexas, as raparigas se empregam em ajudar suas mães, fiando algodão como podem, e fazendo uma especie de redesinha como costumam por brinquedo, e amassando o barro com que imitam as mais habeis no fabrico de potes e panellas.

Expliquemos o amor, que o pae e a mãe dedicam a seos filhos e filhas.

Pae e mãe consagram todo o seo amor aos filhos, e ás raparigas apenas accidentalmente, e n’isto acho-lhes razão natural, nossa luz commum, a qual nos torna mais affeiçoados aos filhos do que ás filhas, porque aquelles conservam o tronco e estas o despedaçam.

Abrangem a terceira classe desde 7 até 15 annos, e a moça n’esta idade se chama kugnantin, «rapariga»: n’este tempo ordinariamente perdem, por suas loucas phantasias, o que este sexo tem de mais charo, e sem o que não podem ser estimadas nem diante de Deos, nem dos homens; perdoem-me se digo, que n’esta idade não são prudentes, embora a honra e a lei de Deos as convidasse á immortalidade da candura, porque estas pobres raparigas selvagens pensam, e muito mal, aconselhadas pelo autor de todas as desgraças, que não devem ser mais puras quando chega esse tempo. Nada mais direi para não offender o leitor: basta tocar apenas o fio do meo discurso.

N’essa idade aprendem todos os deveres de uma mulher: fiam algodão, tecem redes, trabalham em embiras, semeam e plantão nas roças, fabricam farinha, fazem vinhos, preparam a comida, guardam completo silencio quando se acham em quaesquer reuniões onde ha homens, e em geral fallam pouco se não estão com outras da mesma idade.

A quarta classe está entre 15 a 25 annos, e a rapariga n’ella comprehendida chama-se kugnammucu, «moça ou mulher completa», o que nós dizemos por «moça boa para casar.»

Passaremos em silencio o abuso, que se pratica n’estes annos, devido aos enganos de sua Nação, reputados como lei por elles.

São ellas, que cuidam da casa alliviando suas mães, e tratando das coisas necessarias á vida da familia: cedo são pedidas em casamento, si seos paes não as destinam para algum francez afim de terem muitos generos, e no caso contrario são concedidas, e então se chamam kugnammucu-poare,[NCH 39] «mulher casada, ou no vigor da idade.»

D’ahi em diante acompanha seo marido carregando na cabeça e ás costas todos os utencilios necessarios ao preparo da comida, as vezes a propria comida, ou os viveres necessarios á jornada, como fazem os burros de carga com a bagagem e alimentação dos seos senhores.

É occasião de dizer, que ambiciosos como os grandes da Europa, que desejam ostentar sua grandesa apresentando grande numero de burros, estes selvagens tambem desejam ter muitas mulheres para acompanhal-os, e levar suas bagagens, mormente havendo entre elles o costume de serem estimados e apreciados pelo grande numero de mulheres á seo cargo.

Quando grávidas, após o casamento, são chamadas puruabore, «mulher prenhe», e apezar d’este estado não deixam de trabalhar até á hora do parto, como si nada tivessem. Apresentam grande volume, porque ordinariamente parem meninos grandes e corpolentos.

Talvez se pense que n’este estado cuidam ellas em cobrir sua nudez, porem não soffrem a menor alteração o seo modo de viver.

Chegado o tempo do parto, si assim se póde chamar, não procura para esse fim a cama, si as dores não são fortes: em qualquer dos casos senta-se, é rodeada por suas visinhas convidadas para assistil-as, pouco antes do apparecimento das dores, por meio d’estas palavras chemenbuirare-kuritim «eu vou já partir, ou estou quase a parir»: corre veloz o boato de casa em casa, que tal e tal mulher vae parir, dizendo com o nome proprio da parturiente estas palavras ymen-buirare, que significa «tal mulher pario, ou está para parir.»

Acha-se ahi o marido com as visinhas, e si ha demora no parto, elle aperta-lhe o ventre para fazer sahir o menino, o que acontecido, deita-se para observar o resguardo em lugar de sua mulher,[NCH 40] a qual continua a fazer o serviço do costume, e então é vesitado em sua cama por todas as mulheres da aldeia, que lhe dirigem palavras cheias de consolação pelo trabalho e dôr, que teve de fazer o menino, sendo tratado como gravemente doente e muito cançado, á maneira do que se pratica em identicas circumstancias com as mulheres de paizes civilisados.

Comprehende a quinta classe desde 25 até 40 annos, quando o homem e a mulher attingem ao seo maior vigor.

Dam-lhe geral e commummente o nome de kugnan, «uma mulher, ou uma mulher em todo o seo vigor».

N’essa idade conservam ainda as indias alguns traços de sua mocidade, e principiam a declinar sensivelmente, sendo feias e porcas, trazendo as mamas pendentes á similhança dos cães de caça, o que causa horror: quando jovens, são bonitas e asseiadas, e tem os peitos em pé.

Não quero demorar-me muito n’esta materia, e concluo dizendo, que a recompensa dada n’este mundo á puresa é a incorruptibilidade e inteiresa acompanhada de bom cheiro, mui bem representada nas letras santas pela flôr do lyrio puro, inteiro e cheiroso — sicut lilium inter spinas, sic amia mea inter filias.

A sexta e ultima classe está entre os 40 annos e o resto da vida, e então a mulher se chama Uainuy: n’este tempo ainda parem.

Gosam do privilegio da mãe de familia: presidem ao fabrico dos cauins, e de todas as outras bebidas fermentadas.

Occupam lugar distincto na casa-grande quando ahi vão as mulheres conversar, e quando ainda se achava em pleno vigor o poder de comerem os escravos, eram ellas as incumbidas de assar bem o corpo d’elles, de guardar a gordura, que não queriam, para fazer o mingau, de cozinhar as tripas, e outros intestinos em grandes panellas de barro, de n’ellas misturar farinha e couves, e dividil-as depois por escudellas de pau, que mandavam distribuir pelas raparigas.

Dam principio ás lagrymas e lamentos pelos defunctos, ou pela boa chegada de suas amigas.

Ensinam ás moças o que aprenderam.

Usam de más palavras, e são mais descaradas do que as raparigas e as moças, e nem me atrevo a dizer o que ellas são, o que vi e observei, sendo tambem verdade que vi e conheci muitas boas, honestas e caridosas.

Existiam no Forte de São Luiz duas boas mulheres Tabajares, que não se cansavam de trazer-me presentesinhos, e quando me os offereciam, sempre choravam e desculpavam-se de não poderem dar melhores.

Não espero muito d’estas velhas: e o superior nada tem a fazer senão esperar que a morte o livre d’ellas: quando morrem não são muito choradas e nem lamentadas, porque os selvagens gostam muito de ter mulheres moças.

Os selvagens creem supersticiosamente terem as mulheres, depois de mortas, muita difficuldade de deparar com o lugar onde, alem das montanhas, dançam seos ante-passados, e que muitas ficam pelos caminhos, se é que lá chegam.

Não guardam asseio algum quando atingem a idade da decrepitude, e entre os velhos e velhas nota-se a differença de serem os velhos veneraveis e apresentarem gravidade e autoridade, e as velhas encolhidas e enrugadas como pergaminho exposto ao fogo: com tudo isto são respeitadas por seos maridos e filhos, especialmente pelas moças e meninas.