CAPITULO VI
Formulario dos discursos, que faziamos aos selvagens, quando nos vinham vêr, para chamal-os ao conhecimento de Deos e á obediencia de nosso Rei.
O meio pelo qual outr’ora os Athenienses chamavam os povos ao conhecimento da Philosophia, e á obediencia de uma Republica, era representado pelo simulacro do seo Palladium, que fingiam ser trazido do Ceo, e por elles collocado no lugar mais alto de sua cidade.
Tal era o idolo de Pallas, armado dos pés até a cabeça, correndo de sua bocca raios de mel, que cahiam sobre seos ouvintes e expectadores, produzindo-lhes doce somno.
Ensinaram os Druidas a mesma coisa aos Gaulezes levantando a estatua de Hercules no frontespicio de seos Templos, tendo na sua cabeça a cabeça de um leão, e nas espaduas a clava de suas victorias, sahindo de sua bocca uma especie de hera, porem de oiro, que prendia pelas orelhas homens e mulheres, moços e velhos afim de attrahil-os a si.
Com isto queriam os Athenienses e os Gaulezes dizer, que os homens são attrahidos pela doçura e pela razão á obediencia das leis divinas e humanas, na qual se conservam por meio das armas, sustentadas pelos soberanos para a conservação dos seos vassallos.
O primeiro d’estes dois fins nos pertencia desde que Sua Magestade e os nossos Padres nos remetteram para cá á fim de chamarmos ao conhecimento de Deos estas pobres almas selvagens, que, antes de começarmos a cathequisal-as, reconhecemol-as anciosas por doçura, e por isso combinamos pautar por ella nossas palavras e acções, com que sempre nos démos muito bem.
Já tinha lido no cantico primeiro, que entre os ornamentos dados por Jesus Christo á sua Igreja, a mansidão e a clemencia para com os peccadores e infieis era um dos primeiros deveres conforme estas palavras: Murenulas aureas faciemus tibi vermiculatus argento «nós te faremos collares de oiro, torcidos como pequenas lampreias, esmaltadas de fios de prata em forma de vermesinho para mais fazer realçar a bellesa do oiro.»
Dizem os Septenta — Simulachra auri faciemus tibi, cum vermiculacionibus argenti; «nós te faremos pequenas estatuas de oiro fino, esmaltadas de fio de prata do feitio de vermesinhos.»
Accrescenta Rabbi Jonathas que taes eram as taboas de Saphira, em que estavam gravados os mandamentos da lei de Deos porque a luz da gloria do Doador dava á saphyra diaphana a côr de oiro, e a escripta gravada em linha pelo dedo de Deos formava o esmalte em pequenas lampreias ou vermes da terra.
Quem não diria que ha intelligencia entre estas ceremonias divinas e as dos Athenienses e Gaulezes, visto significar-nos umas e outras, por meio de estatuas e cadeias de oiro, a força e o poder da doçura para subjugar as almas mais barbaras á obediencia das leis de Deos.
Não é sem rasão, que Jesus Christo ornou os collares de oiro de sua esposa com figuras de vermes da terra, e de pequenas lampreias, visto que elle mesmo se fez verme para chamar a si os vermes, e misturou-se com a terra para se juntar com os vermes, que ahi achasse.
Assim como as lampreias não repellem as serpentes por que podem causar medo com o veneno, que estas vomitarem, assim tambem Jesus Christo não despresa os homens, pobres serpentes, comtanto que estes se despojem do seo veneno.
Si o Mestre fez isto, o que devem fazer os obscuros discipulos de Sua Magestade?
Quem se offerece a servir a Deos na conversão dos selvagens deve modelar suas palavras e acções pela doçura, de que sempre usou Jesus Christo na terra.
Eram estes os artigos de nossas conferencias com os selvagens.
1. Procuravamos convencel-os, que eramos seos amigos, e amigos fieis, mais que seos paes, mães, e outros parentes, dizendo-lhes estas e outras palavras pera-uçu, pare koroyco «somos vossos amigos, vossos intimos.»
Com taes expressões alegraram-se muito, e cheios de confiança vinham conversar comnosco a ponto de tornarem-se importunos, não nos permittindo descanço algum, e só nos olhando e observando até os nossos menores gestos.
Vou dar-vos alguns exemplos.
Um dia de paschoa, depois do serviço, ao qual assistiram muitos selvagens, tanto de Tapuitapera como da Ilha, quiz recolher-me para meditar no sermão, que devia prégar depois do jantar, e para isto mandei fechar as portas de nossa casa para que ninguem entrasse durante esse pouco tempo até a hora da prédica, porem os selvagens impacientes, para entrarem, rodeiaram a casa duas ou tres vezes buscando uma abertura, e afinal quebraram algumas estacas e por ahi passaram.
Mostrei-lhes má cara significando o meo descontentamento pelo que haviam feito, e lhes perguntei porque eram tão importunos?
Responderam-me «porque tinhamos vontade de te vêr, e fallar comtigo livremente, na ausencia dos francezes, e para esse fim viemos de proposito». Á vista d’isto não tive outro remedio senão atural-os.
Quando eu orava sosinho na nossa Capella, com as portas fechadas, rompiam o panno de Guiné, com que forramos a Igrejinha para vêr o que fazia eu ajoelhado defronte do Altar, e diziam uns para os outros ygneém Tupan «falla com Deos», e d’ahi não sahiam em quanto eu rezava.
Para livrar-me d’estas importunações mandei construir uma cerca ao redor da nossa casa e Capella de S. Francisco, muito forte, e entremeiada com ramos de palmeira espinhosa, assim conhecida por ter espinhos maiores do que o comprimento de um dedo, e embora tudo isto achavam meios de entrar e de me procurarem.
Ao escrever isto recorda-me o dito de Antalcide, escripto por Plutarcho no tratado dos Apophtegmas Laconicos, «quem quizer ganhar a amisade dos homens, deve ter na lingua um regato de mel, e nas mãos muitos fructos» isto é — palavras doces e serviços conforme ás palavras.
Mais não podiamos fazer para com estes selvagens do que captarmos sua amisade por palavras doceis, e fazer-lhes conhecer a Deos e os sacramentos da Igreja, unicos fructos da Paixão de Jesus Christo.
Ælian, no livro 14 de suas Historias diversas, disse, que «Epaminondas se admiraria muito se sahisse do seo palacio para misturar-se com o povo, e não adquirisse um novo amigo para juntal-o aos seos amigos.»
Não nos seria necessario ir a 200 e nem a 300 legoas afim de conquistar novos amigos para Jesus Christo, porque viriam por si mesmos offerecer-se para isso.
Gelius no livro 1º cap. 3º conta, que Pericles, um dos grandes do Areopago de Athenas, terminava a amisade dos homens junto aos altares dos Deoses, porem nunca fallou da amisade divina entre Deos e os homens, estabelecida e enraisada sobre os altares, porque pagão, como era, não podia comprehender a força e o vigor de tal amor, similhante ao do proprio centro, onde cada creatura tem o destino de viver e descançar.
O poderoso rei Darius recebeu em presente de um seu amigo uma bella romã, que partio ao meio, e admirando a bellesa e o numero dos seos grãosinhos disse aos que com elle estavam — por minha vontade eu teria tantos Zopiros, (nome do seo mais intimo amigo) quanto ha de grãos n’esta romã.
Não foi pequena graça, e nem pequeno privilegio, que Deos fez á Ordem Seraphica de São Francisco dando-lhe a faca da palavra para abrir o pomo ainda inteiro e fechado das terras de Maranhão afim de apresentar a Jesus Christo milhões de almas, não só para com Elle se conciliarem, mas tambem para um dia lhe serem fieis esposas.
Deos inspirou a Salomão, no liv. 4º dos Reis, cap. 29, fazer os capiteis das columnas com arame, semeiado de romãs, indicando assim a missão do Evangelho para com as nações infieis, servindo para agarrar os peixes fugitivos por meio de uma eloquencia docil, e as romãs para ligal-os e unil-os pelo amor de Jesus Christo ao resto dos fieis, não havendo nada mais forte para obter o accordo que o proprio amor.
Eis a razão porque julguei ser absolutamente necessario fazer conhecer a estes selvagens, que nós os amavamos terna e infinitamente, que lhes offereciamos nossas pessoas e bens, dizendo-lhes ore-mae pémareamo «tudo o que temos é vosso.»
Por isto quando tinhamos muitos peixes, o que acontecia ordinariamente, lhes davamos todos, especialmente aos Tabajares, recem-chegados á Ilha, ainda necessitados de tudo, por não terem feito roças, especialmente os nossos visinhos.
2.º Nós lhes expunhamos os fructos e os emolumentos, que deviam esperar de nossa amisade, isto é, reforma em sua vida, conhecimento do verdadeiro Deos, defesa do nosso rei contra seos inimigos, o qual não deixaria de enviar-lhes homens e armas conforme necessitassem. Pe moé Koroiut, pere Koramrecé: Tupan mombe-ouane koroiut peam: yande mogna gare, rhé, opap katu, ahé maé mognan. Yangaturan: yandé renonde vuac ueriko: ahé gneem rupi yané rekormé. Pepusurom peamo tareumbare soiy yauaeté oreru vichaue: Pepusurum okat araia oboure uaia pepusurô anuam; quer isto dizer — «Nós vos ensinamos a viver mais para a vossa felicidade: queremos ensinar-vos o verdadeiro Deos, creador do universo, infinitamente bom, e que nos prometteo o Ceo si n’esta vida fizermos o que elle diz. Viemos defender-vos de vossos inimigos. Nosso rei, que é forte e poderoso, vos dará sempre soccorro de armas e de homens.»
Prestavam muita attenção ao que diziamos, e nos respondiam que os francezes sempre os haviam auxiliado; que tinham vindo agora por ordem do rei para tiral-os das cadeias de Jeropary, que não duvidavam aprender grandes coisas á respeito de Deos, especialmente quando ja soubessemos sua lingua, porque os interpretes, diziam elles, não fallam como vós á Deos. Não nos podem dizer outra coisa, porem se fallasseis comnosco vós nos dirieis o que Deos vos disser. Nossos filhos serão mais felizes do que nós, porque comvosco aprenderão a lingua francesa, como nos promettestes, e assim terão mais conhecimento de Deos do que nós, que ja somos velhos.
Nós o que temos feito é correr e andar errantes pelos bosques adiante dos Peros[NCH 97] tendo por alimento apenas raizes de arvores. Nossos filhos estarão seguros contra seos inimigos, os francezes se unirão á nossas filhas, e nossos filhos ás filhas dos francezes, e assim seremos parentes: ficareis comnosco, em nossas aldeias, e sereis nossos padres Tupan os amará, e Jeropary nada poderá contra elles. Haverá abundancia de viveres e nunca se sentirá falta de mercadorias francezas.
Oh! quanto serão felizes! porem nós não veremos estas coisas.
O imperador Vespasiano e tambem Domiciano, quando entravam n’um paiz novo para ahi estabelecer Colonias Romanas, tinham por costume mandar fundir em bronze a Fé e os seos fructos, que publicamente promettiam a todos, representando uma dama, que estendia a mão direita, symbolo da Fé, trazendo na esquerda a cornucopia da abundancia, cheia de toda a especie de fructos, e tinham este mesmo carimbo o dinheiro, que ahi faziam correr assegurando por esta fórma a sua fidelidade para com estes povos, de que resultaria muitos bens e commodidades á sua nação.
Tomae, se quizerdes, por esta dama a Santa Igreja entrando pela primeira vez n’estas terras barbaras, estendendo sua mão direita para prometter aos seos habitantes a fé de Jesus Christo, seo esposo, e a fidelidade de seos sectarios, que não se poupam a trabalhos, e arriscam até a propria vida para ajudal-a na salvação d’ellas.
Os fructos, que ella lhes offerecia, eram os sacramentos, o conhecimento de Deos e das coisas divinas.
Tomae tambem, si quizerdes, por esta mesma Dama, a França plantando pela primeira vez seos lyrios n’estas regiões e paizes do Brazil, dando com a mão direita a segurança de defender e conservar estes selvagens obedientes á sua corôa, e com a esquerda os fructos provenientes do commercio entre ella e o Brazil.