CAPITULO VIII
Qual a crença natural dos selvagens a respeito de Deos, dos espiritos e da alma.
O Psalmista Rei David, no Psalmo 101, que é uma supplica por elle composta para os pobres e infelizes, cheios de anciedade e oppressão, particularmente os infieis, diz — Placuerunt servis tuis lapides ejus, et terra ejus miserebuntur. «As pedras de Syão agradarão a teos servos; e por esta causa serão misericordiosas para com a terra.»
S. Jeronymo transforma estas palavras d’esta forma — Quia placitos fecerunt servi tui lapides ejus, et pulverem ejus miserabilem. «Teos servos fizeram suas pedras agradaveis á tua Magestade, até chegar ao pó sem consideração.»
Apliquemos estas palavras ao nosso objecto, pondo de parte todos os outros mysterios, e digamos que Placuerunt servis tuis lapides ejus.
Em nossa primeira missão achamos estes pobres selvagens e barbaros como pedras proprias para construir e edificar a Santa Igreja em paizes desertos, e com o nosso ministerio demos a misericordia divina á algum punhado de terra e areia.
Baptisamos muitos meninos, moribundos e adultos, que são na verdade tres grãos de areia, á similhança da extenção e profundidade das areias do mar, isto é, em comparação da quantidade e multidão das nações immensas pelo seo numero, na visinhança do Maranhão.
Digamos depois, com São Jeronymo, quia placitos fecerunt servi tui lapides ejus, et pulverem ejus miserabilem, que temos feito vêr a toda a Christandade, e aos seos monarchas, espirituaes ou temporaes, em desencargo de nossa consciencia, que á Deos agrada o despertar estes barbaros do profundo somno de uma crença má, ou si quizerdes, que á Deos agrada fazer arder e queimar a pequena faisca do fogo da luz natural, que sob as causas de mil superstições é sempre guardada entre estas nações desde o naufragio universal do diluvio.
Esta faisca, occulta sob as cinsas, entre estes selvagens, é a crença natural, que sempre tiveram de Deos, dos espiritos e da immortalidade da alma.
Quanto á crença de Deos, é impossivel, naturalmente fallando, que haja no Mundo uma Nação tão rude, estupida e brutal que não reconheça universalmente uma Magestade Soberana, porque, como diz Lactancio Firmiano, em suas Instituições divinas, livro 1.º, cap. 2.º — Nemo est enim tam rudis, tam feris moribus, qui non oculos suos in cœlis tollens etc. Não ha homem tão rude, nem tão brutal, que levantando os olhos para o Ceo, ainda que não possa comprehender que haja Deos, qual seja a sua providencia, embora não conheça da grandesa e extenção dos Ceos, do perpetuo movimento d’elles, da disposição, firmesa, utilidade e bellesa d’estas abobadas azuladas, que não reconheça haver um Soberano que tudo isto dirige e com harmonia.
Boecio, livr. 4º, da Consolação dos sabios. Prosa 6.ª Omnium generatio rerum etc. «que a geração continua dos mistos, a diversidade, e ordem das formas, que vestem a materia primitiva, convence natural e necessariamente, que ha um primeiro director no movimento uniforme de tantas coisas de formas contrarias no sentido de aperfeiçoar este mundo universal.»
Seneca, na Epistola 92 á seo amigo Lucilio — Quis dubitare potest mi Lucilli, quin Deorum immortalium munus sit quod vivimus? «Quem é meu amigo Lucilio, que duvida não ser sua vida um dom e beneficio dos Deoses immortaes?»
Aristoteles, Livro II dos animaes, depois que contou muito bem a perfeição d’elles concluio debemus inspicere formas et delectari in Artifice qui fecit eas: «devemos contemplar as formas das creaturas, não para olhal-as só e simplesmente, e sim para d’ellas passar ao que as fez afim de nos regosijarmos.»
É facto averiguado sempre terem tido estes selvagens conhecimento de Deos, porem não da Essencia, Unidade, e Trindade, materia inteiramente dependente de fé, embora Deos tenha deixado na naturesa alguns vestigios, pelos quaes possam os homens formar algumas conjecturas.
Aristoteles, livro 4º, do Ceo e da terra, depois de ter pensado muito nas perfeições d’este mundo, disse Nihil est perfectum nisi Trinitas. «Somente a Trindade é perfeita.»
Estes selvagens sempre chamaram a Deos — Tupan, nome que dão ao trovão, a maneira do que se pratica entre os homens, isto é, terem as obras primas o nome do autor: Note-se porem que este nome no singular não se applica aos relampagos e trovões, que rebentam e illuminam todas as partes, por cima da cabeça dos selvagens, aterrando-os, porque sabem e reconhecem, que elles são formados pela poderosa mão d’Aquelle, que habita nos Ceos.
Por intermedio do interprete informei-me dos velhos do paiz si elles acreditavam, que este Tupan, autor do trovão, era homem como elle?
Responderam-me que não, porque si fosse um homem como nós, seria um grande senhor, e como poderia elle correr tão depressa, do Oriente para o Occidente, quando troveja ao mesmo tempo sobre nós, e nas quatro partes do mundo, tanto na França, como sobre nós? Demais, si fosse homem, era necessario, que outro homem o fizesse, porque todo o homem procede de outro homem. Ainda mais: Jeropary é o creado de Deos, e nós não o vemos, ao passo que todo o homem se vê, e por isso não pensamos, que Tupan seja um homem.
Mas, repliquei eu, o que pensaes que elle seja?
Não sabemos, responderam, porem pensamos, que existe em toda a parte, e que fez tudo quanto existe. Nossos feiticeiros ainda não fallaram com elle, pois apenas fallam com os companheiros de Jeropary.
Eis a crença de Deos, sempre pela naturesa impressa nos espiritos dos selvagens, que com tudo não o reconheciam por meio de preces e de supplicios.
Acreditavam naturalmente nos espiritos bons e maus.
Chamam os bons espiritos ou anjos Apoiaueué, e os maos ou diabos Uaiupia.
Vou contar-vos o que pude colher de suas conversas por diversas vezes.
Pensam que os anjos lhes trazem chuva em tempo proprio, que não fazem mal ás suas roças, que não os castigam e nem os atormentam, que sobem ao Ceo para contar á Deos o que se passa aqui na terra, que não causam medo nem á noite e nem nos bosques, que acompanham e protegem os francezes.
Pensam, que os diabos estão sob o dominio de Jeropary, que era creado de Deos, e que por suas maldades Deos o despresou, não querendo mais vêl-o e nem aos seos, pelo que aborrecia os homens e nada valia: que os diabos impedem as vindas das chuvas em tempo proprio, que os trazem em guerra com seos inimigos, que os maltrata, e lhes faz medo, habitando ordinariamente em aldeias abandonadas, especialmente em logares onde tem sido sepultados os corpos de seos parentes.
Ouvi tambem dizer a alguns indios, que indo elles apanhar cajus em algumas aldeias abandonadas, sahio-lhe ao encontro Jeropary gritando com voz medonha, e chegou até o ponto de espancar muito alguns dos seos.
Dizem tambem, que Jeropary e os seos tem certos animaes, que nunca se vê, que só andam a noite, soltando gritos horriveis, que abala todo o interior (o que ouvi infinitas vezes) com os quaes convivem, e por isso os chamam Soo-Jeropary «animal de Jeropary», e creem que estes animaes servem aos diabos ora de homens ora de mulheres, e por isso nós o chamamos Succubes e Incubes, e os selvagens Kugnan Jeropary «a mulher do diabo» Aua Jeropary «o homem do diabo.»
Ha tambem certos passaros noturnos, que não cantam, mas que tem um piado queixoso, enfadonho, e triste, que vivem sempre escondidos, não sahindo dos bosques, chamados pelos indios Uyra Jeropary «passaros do diabo,»[NCH 99] e dizem que os diabos com elles convivem, que quando põem é um ovo em cada lugar, e assim por diante, que são cobertos pelo diabo, e que só comem terra.
Não exgotando minha curiosidade procurei indagar bem a verdade d’isto: muitas vezes estes animaes nocturnos vinham rodear nossa casa de Sam Francisco e soltar seos gritos medonhos, quando as noites eram sombrias e negras.
Apromptei-me para com outros francezes investir estes passaros onde se achassem conforme pudessemos prevêr, porem nada pudemos conseguir por não vel-os, embora os ouvissemos gritar em distancia de mais de um quarto de legoa.
Disseram-me alguns francezes, que eram uma especie de gatos bravos, o que não pode ser a vista do som, do sussurro e do volume do grito, que elle solta.
Outros disseram ser o vagido de vaccas bravas, o que negam os selvagens dizendo ser vozes de uma especie de animaes parecidos com maçaricos, e maiores do que uma raposa.
Quiz eu mesmo verificar o que eram estes passaros de Jeropary, e para isto fui caminhando de mansinho até onde meos ouvidos me levaram a pensar, que lá estavam, pelo piado melancolico d’elles. Calculado o lugar ahi fui no dia seguinte á tarde muito cedo occultar-me nos mattos, e d’esta vez não me enganei porque apenas anoiteceu aproximou-se este triste passaro de mim e distante apenas dois passos saltando sobre a areia, e soltou seo canto medonho, o que não pude aturar. Sahi logo do meo logar e fui onde elle estava e nada achei: sua configuração e tamanho era de uma coruja de França e as pennas pardas.
Tudo o que referi não está longe do senso commum, porque lemos na Historia, e em diversos autores a união dos diabos com animaes feios e immundos, e foi elle que desde o principio do mundo tomou a forma de uma serpente cabelluda para enganar nossos primeiros paes.
Creem na immortalidade da alma: quando no corpo chamam-na An, e quando deixa este para ir ao lugar, que lhe é destinado, Anguere.
Creem que só as mulheres virtuosas tem alma immortal, segundo o que pude comprehender de varios discursos d’elles e de muitas perguntas que lhes fiz, pensando que estas mulheres virtuosas devem ser postas ao lado dos homens, visto terem todos almas immortaes depois da morte.
Em quanto ás outras mulheres duvidam que ellas tenham alma.
Pensam, e muito naturalmente, que as almas dos maus vão ter com Jeropary, que são ellas que os atormentam de concomitancia com o proprio diabo, e que vão residir nas antigas aldeias, onde são enterrados os corpos, que habitaram.
Pensam, que as almas dos bons, vão para um lugar de repouso, onde dançam constantemente sem nada lhes faltar.
Eis tudo quanto pude saber relativamente a estes tres pontos de sua crença natural de Deos, dos Espiritos e das Almas, por meio de cuidadosas indagações entre discursos communs, que ouvi por dois annos de muitissimos selvagens.