CAPITULO XII

De algumas outras ceremonias diabolicas praticadas pelos feiticeiros do Brazil.


Sentiria muito este Principe se deixasse intacta alguma coisa no serviço de Deos, sem procurar imital-a falsamente, e sem buscar introduzil-a no culto supersticioso de sua soberba.

Outr’ora Deos no Antigo Testamento instituio as agoas da Purificação, feitas e compostas de diversas materias e differentes ceremonias, conforme o fim e objecto, a que se destinavam, tanto para purificar os homens, os vasos, e os utensilios do Templo, como os vestidos, as casas e todos os moveis.

Por imitação instituio este demonio as agoas de lustração, das quaes se serviam os pagãos para diversos fins, bem como os judeos, lavando e aspergindo com ellas os homens antes dos sacrificios, os utencilios dos templos dos idolos, as casas, os vestidos e moveis dos infieis.

Vejamos se esqueceo-se esta desgraçada serpente d’illudir nossos selvagens com taes superstições.

Quando outros exemplos não podessemos produzir alem do já referido no Tratado do Temporal, das nigromancias feitas pelo feiticeiro, vindo dos campos do Mearim, bastava só esse para demonstrar claramente as loucuras e abusos, que semeára este antigo enganador entre os povos, em relação ao nosso fim.

Como soube, da propria bocca dos feiticeiros, de muitas particularidades, que faziam para illudir estas gentes, não quero privar o leitor de as conhecer.

È costume dos Pagys-uaçus celebrarem, em certa epoca do anno, lustrações publicas,[NCH 103] isto é, purificações supersticiosas por aspersão d’agoa sobre os selvagens, e bem que tudo dependa de sua imaginação, fazendo á capricho taes oblações, comtudo de ordinario enchem d’agoa grandes potes de barro, proferindo em segredo algumas palavras sobre elles, deitando tambem fumaças de Petum, e misturando tambem um pouco de pó da casa, em que se acham, punham-se a dançar, e depois o feiticeiro toma um ramo de palha, mete dentro do pote, e com elle asperge a companhia.

Feito isto, toma cada um a porção d’agua que quer nas cuias, ou tigellas de madeira, e com ella lavam a si e a seos filhos.

Pacamão, grande feiticeiro de Commã,[NCH 104] contou-me um dia, que faria sahir agoa da terra, com que lavava estas gentes, com grande admiração de todos os barbaros, que viam sahir tão fresquinha essa agua do meio de sua casa, e a tomavam como si fosse milagrosamente enviada pelos espiritos, mas o astucioso tinha enchido d’agoa um grande vaso e mettendo-o em terra d’elle fazia sahir agoa por meio de tubos ou canaes, ou tabocas, que em abundancia se encontram nas mattas do Brasil, e d’esta forma illudia os seos.

Aos gentios tinha o diabo communicado muitas ideias erroneas á respeito das agoas, das fontes, e dos regatos. N’umas habitavam Nymphas, e n’outras deosas: estas faziam uma coisa, e aquellas — outras; umas eram perigosas e enganadoras, outras agradaveis e sinceras; umas sagradas, e outras profanas.

Quando os selvagens vêem certa especie de lagartos, parecidos com os venenosos de diversas cores, correr para agoa, pensam supersticiosamente, que essa fonte é prejudicial ás mulheres, e que d’ella bebe Jeropary.

Sabendo desta superstição para livrar-me do encommodo que me davam as mulheres vindo lavar-se na fonte do nosso logar de Sam Francisco, fiz correr o boato, que lá haviam sardões, e depois d’isto nenhuma mais se animou a ir ahi excepto as escravas do Forte, que não tinham licença de lavar-se na fonte, e d’est’arte tive o prazer de mandar amural-a e fechar á chave, afim de conservar a agoa sempre limpa.

Chega esta superstição a ponto de acreditarem, que estes lagartos atiram-se ás mulheres, adormecem-nas, e gozam-nas, ficando grávidas, e parindo lagartos em vez de crianças.

Eis porque, quando mandei espalhar tal boato, vinham as escravas do Forte em bandos, armadas de cacetes, de facas, e de outros instrumentos iguaes para se defenderem, diziam ellas, d’estes lagartos, o que motivaram muito riso a nós outros, os francezes.

Alem das agoas de lustrações, e diabolicas abluções praticadas por estes feiticeiros tem uma maneira particular de communicar seo espirito aos outros, isto é, por meio da herva Petun introdusida n’um caniço, de que elles pucham a fumaça, lançando-a sobre os circunstantes ou soprando-a mesmo na canna, exhortando-os a receber seo espirito e sua virtude.

Parece que este cautelloso dragão quer com tal ceremonia falsa imitar Jesus Christo quando deo seo espirito aos Apostolos, e o seo poder aos seos successores para transmitil-o aos iniciados nas ordens sagradas. Assim se lê em São João — Insufflavit et dixit eis, accipite Spiritum Sanctum: «soprou sobre elles, e lhes disse — Recebei o Espirito Santo.»

D’onde estes feiticeiros tirariam esta ceremonia satanica, si o diabo não lh’as tivesse mostrado? Achando-se sempre fechados n’esta grande e vasta região do Brasil, sem communicação alguma com o velho mundo, não podiam aprendel-a de outra nação.

Estes bafejos lhes são muito particulares, como ceremonia necessaria para curar os infermos, porque vós os vedes puchar pela bocca, como podem, o mal, dizem elles, do paciente, fazendo-o passar para a bocca e garganta d’elle, inchando muito as bochechas, e deixando d’ellas sahir de um só jacto o vento ahi contido, causando estampido igual ao de um tiro de pistola, e escarrando com grande força dizendo ser o mal, que haviam chupado, e fazendo acreditar ao doente.

Á este respeito o Sr. de Pezieux e eu passamos um dia alegre na aldeia de Vsaap.

Um pobre moço selvagem estava atacado pela colica do paiz.

Veio um d’estes feiticeiros exercer sua attração de espirito sobre o seo ventre, fazendo muitos tregeitos, e retrahindo-se por diversas vezes vendo-nos prestar-lhe muita attenção, e apesar de tudo isto o doente continuava a gritar. Veio o feiticeiro depois procurar-nos e mostrando-nos dois outros pregos nos disse — «eis o que lhe tirei do ventre, cujos intestinos estão cheios d’isto, é preciso tiral-os um por um. Si eu não os tirasse todos, lhe cravariam as tripas e a garganta.»

Imbuio a este moço, sempre gritando, que lhe tinha tirado do ventre esses pregos.

Si essas casas fossem cobertas de ardosias, penso que meteria na cabeça d’esse rapaz ter elle comido as ripas e os pregos; mas não sendo communs entre elles pregos de ferro, não sei como poude illudir os assistentes com tal loucura.

Poderia referir muitos outros exemplos, porem bastam-me estes ao meo fim.

Ora si é coisa digna de admiração vêr o Espirito Infernal em tudo quanto acabamos de dizer até aqui, muito maior deve ser o nosso espanto pelo que vou dizer, isto é, pela existencia da confissão auricular entre os selvagens.

Nada digo que não ouvisse da bocca de Pacamão, de outros selvagens e dos franceses.

O grande Pagy, na sua provincia de Commã, ia visitar, quando lhe aprasia, as aldeias do seo dominio, ordenando que todos fossem confessar-se com elle, especialmente as mulheres e as raparigas, e quando encontrava alguma que se recusava a dizer tudo, elle a ameaçava com o seo espirito, que as havia de atormentar, e tinha muita finura para reconhecer si occultavam ou não alguma coisa. Dava-lhes depois não sei que especie de absolvição, e contava tal feito d’esta e d’aquella, e apesar de tudo isto sempre exerceo seo officio de confessar até nossa chegada.

Pensae, eu vos peço, quem lhe ensinaria esta maneira de confissão auricular, de ameaçar seos similhantes, no caso de occultarem alguma coisa com o seo espirito, que os castigaria, e que os absolveria, se tudo confessassem?