CAPITULO XIV

Os filhos do Brazil darão cabo do reinado de Lucifer, e começarão a estabelecer o reinado de Jesus Christo.


O psalmista rei David, no seo psalmo 8.º — In finem pro torcularibus, psalmus David, isto é, o psalmo de David, que deve ser cantado em acção de graças ao Senhor no fim das vindimas diz, prevendo a ruina total do imperio de Lucifer sobre as almas dos infieis, e o estabelecimento do reinado de Jesus Christo — Ex ore infantium et lactentium perfecisti laudem propter inimicos tuos, ut destruas inimicum et ultorem. «Tens apurado teos louvores pela bocca dos meninos e das crianças de peito á despeito dos teos inimigos, e por isso tu destroes o adversario e o tyranno vingativo.»

Rabbi Jonathas embellezou esta passagem, e esclareceo-a por esta forma — Fundasti fortitudinem, ut destruas Auctorem inimicitiarum et ultorem «estabelecestes a força do teo imperio pela bocca e confissão da Fé dos meninos para mostrar tua grandesa, e destruir o autor das vinganças e o sanguinario vingador.»

Disse São Jeronymo — Quiescat inimicus et ultor «fechaste a bocca ao seductor inimigo da salvação, e enraivecido contra os homens pela voz dos meninos.»

Grande maravilha é o serem os meninos o symbolo da proxima fundação do reinado de Jesus Christo e a queda do poder dos demonios.

Não me demoro em fundamentar com muitos exemplos este signal da providencia de Deos, e assim limito-me a referir o que se passou no Triumpho de Jesus Christo antes de sua Paixão, quando os meninos em alta voz diziam — Hosanna filio David «seja bem vindo o Filho de Deos,» o que disse em primeiro logar o santo rei no seo cantico — In finem pro torcularibus, «no fim pelas pressões,» isto é, no fim do reinado de Satanaz, e no principio da Paixão de Jesus Christo, quando era tempo de pagarem os meninos este tributo de reconhecimento.

Em segundo lugar, de dia a dia, na continuação, no fim, e na consummação do captiveiro de Satanaz sobre as almas infieis, e no principio da Santa Igreja, fundada entre ellas, principalmente pelos meninos, o que desejo mostrar ter sido feito pelos filhos do Brasil.

Estas almas juvenis, ainda não corrompidas por antigos e maus costumes de seos paes, mostram não sei que disposição singular e particular para receber, como si fosse uma taboa rasa, qualquer pintura...

(Falta uma folha.)

... repugnancia: nós lhe facilitavamos os meios de o entender comparando com as coisas, que veem diariamente.

Assim como crescem as ostras sobre os ramos das arvores, tomando carnes e recebendo vida entre duas conchas, sem mistura, nem effusão de semente do humor marinho, e apenas pelo calor do sol, assim tambem o Filho de Deos no ventre da joven, a Santa Virgem, recebeo seo precioso sangue da materia, e o Espirito Santo, do calor, e assim tomou corpo sem alguma outra operação humana.

Gostavam muito da comparação, e me disseram que em seo paiz muitas coisas se geravam pela simples influencia do Sol, como os lagartos, que sahem dos ovos, depois que recebem a vida do calor do Sol, e por isso não tinham difficuldade em crer o que nós lhes ensinavamos, e nem que Deos se fizesse homem para morrer afim de salvar os seos, porque, diziam elles, Jeropary, apesar de ser espirito mau, entra no corpo dos monstros para nos amedrontar, espancar e atormentar.

Sobre tudo muita admiração nos causava o como facilmente se convenciam da verdade e da realidade de Jesus Christo, Filho de Deos, sob as especies de pão e vinho, ao passo que viamos tantas almas vacillantes n’este ponto, embora lhes sóbre espirito e comprehensão para outras coisas.

A este respeito não pude dizer outra coisa, senão o que disse a Escriptura Santa no proverbio 25 — Sicut qui mel multum comedit, non est ei bonun, sic qui scrutator est magestatis, opprimetur a gloria. — «É coisa tão doce como o mel, mas quem d’ella comer muito, não pode offender mais o estomago.»

Nada ha de mais suave e delicioso do que a contemplação das obras de Deos e a leitura das letras santas, mas para aquelle que vae muito alem, e tudo mede pela vara de seo espirito, impellido pela soberba de seo entendimento.

Nada ha mais seguro, que não fique opprimido pelos vivos raios da gloria de Sua Magestade, como se observa nos mochos cegos, visto quererem olhar e julgar da face do sol, e da sua luz.

Ao contrario, os que manejam com temor e humildade os mysterios de nossa fé, são esclarecidos sem prejuiso de suas vistas, e docilmente obedecem a vontade e poder do soberano, que pode o que quer, quer e faz o que diz.

Estes pobres selvagens, fallo até dos que não são ainda christãos, apenas se lhes fazia signal de sahirem da igreja, retiravam-se promptamente, ficando comtudo na porta, que se conservava fechada em quanto se recitava o canon da missa, e fazia-se a communhão.

Diziam elles, em resumo, que n’essa hora descia Tupan sobre os altares, bebendo e comendo comnosco, que não tinham merecimento para ficar ahi em frente d’elle senão quando fossem baptisados, e a maior parte d’elles se ajoelhavam, imitando os francezes.

Os Indios christãos ajoelhavam-se apenas ouviam tocar a campainha, juntavam as mãos e adoravam a Deos.

Ao mysterio do Sacratissimo Corpo e Precioso Sangue do Filho de Deos elles chamam Tupan, quer dizer, o proprio Deos, segundo suas crenças, Aséreu yanondé Tupan rare, quer dizer, «antes de morrer receberás o corpo de Deos».

Ainda que eu reconhecesse n’elles facilidade de crer segredo tão profundo, não me animaria a communicar-lhes senão em artigo de morte, e antes queria deixar esta tarefa para os que viessem depois de mim, porque dando n’um certo dia a communhão a uma India, a quem examinei tanto quanto pude antes de lhe dar o Precioso Corpo de Jesus Christo na Paschoa, apenas recebeo a Hostia Consagrada perturbou-se muito e não a poude engolir a ponto de querer tiral-a com a mão o que lhe prohibi disendo só poder ser tocada por sacerdotes, que não tivesse receio, e nem se assustasse tendo de receber seo Deos, que era de sua vontade, que ella recebesse a hostia e a engolisse com toda a confiança, o que fez mediante um pouco de vinho que lhe dei a beber no calix: tão grande secura da lingoa e bocca proveio da grande timidez d’ella em receber tão santo manjar, o que me resolveo de então em diante a deixal-os bem fundamentarem-se no conhecimento d’este artigo antes de administrar-lhes o Santo Sacramento, e ainda que muitos me pedissem o Tupan, eu lhes respondia que esperassem pela vinda dos nossos padres.

Não ha grande difficuldade em fazel-os confessar suas faltas, até mesmo as proprias mulheres, e de coisas que são difficeis a este sexo declarar aos sacerdotes, representantes da pessoa de Deos.

Mui livremente vos dizem sim e não, o tempo, o lugar, a qualidade das pessoas, o numero de seos peccados, sem algum vexame tolo e mau como por ahi se observa.

Não tem a menor hesitação em crer na efficacia do baptismo, que é o lavamento dos peccados, a filiação de Deos, e a acquisição do Ceo, tendo como certo que os baptisados vão para o paraiso gozar da companhia de Deos, com tanto que não caiam outra vez em peccado mortal.

Acreditaram sempre, que havia inferno, onde estava Jeropary, e para onde iam os maus.

Sabiam ao mesmo tempo por tradicção, que Deos era muito feliz lá em cima, vivendo com os espiritos bons, e que seos paes que tinham tido boa vida, iam para um lugar de delicias, onde nada lhes faltava embora terrestre.

A vista d’isto facil nos foi fazel-os entender o que deviam crer do paraiso, do inferno e de um terceiro lugar, onde se purificam as almas antes de irem para o Ceo, de um quarto onde os meninos, que não chegaram a receber o baptismo, morrendo antes do uso da razão, eram recebidos para não padecerem por nunca poderem vêr a Deos, visto ser o baptismo a chave do Ceo.

Não se acreditaria, senão vendo-se, quanto são os selvagens curiosos por saberem das coisas de Deos. Todos, quando com elles conversavamos, nos faziam mil perguntas á este respeito, iguaes á estas:

Como Deos fez o Mundo?

Si o fez com suas proprias mãos, ou si ajudado pelos bons espiritos poude fazer o Ceo, as estrellas, o sol, a lua, o fogo, o ar, a agoa, a terra, os primeiros homens, os primeiros passaros, peixes e animaes, reptis, arvores e hervas?

O que existia antes de feito o mundo, e o que fazia Deos vivendo sosinho?

De que forma está no Ceo?

Como faz rebumbar o trovão, e cahir a chuva?

Si falla aos homens, si viemos do Ceo, si nascemos de mulheres, si vimos anjos e diabos?

Quem nos ensinou tudo quanto ensinavamos, si não morriamos, e depois da nossa morte como si faziam outros padres?

Si em França haviam muitos padres, si andam vestidos como nós, si havia um padre que fosse rei, porque regeitavamos mulheres e mercadorias?

Si a Mãe de Deos era uma rapariga como outra qualquer, si bebia e comia como nós, porque tinha morrido, si não vinha do Ceo passeiar as vezes na terra e fallar comnosco?

Si os Apostolos eram padres como nós, quantos tinham existido, porque os outros Caraibas francezes não eram tambem padres como nós, si fomos nós mesmos que nos fizemos Padres, ou si foi outra pessoa?

A todas estas e a muitas outras perguntas respondiamos com a verdade, e elles por gestos e palavras demonstravam seo contentamento.

Assim corria de maneira agradavel o tempo entre taes perguntas e entretinimento.

É por isso que pretendo aqui deixar as diversas e mais singulares conversações, que tive com os Muruuichaues, isto é, com os principaes de Maranhão, Tapuitapéra, Commã, Caietés, Pará e Miary.

Não quero demorar-me mais fallando em taes perguntas e respostas, visto que as vereis mais adiante, e espero que minhas respostas vos contentarão muito, e vos assevero que serão fielmente transcriptas até na propria linguagem com que foram proferidas.

Espero desculpa não só por isso como tambem pelo mais que ja deixei escripto, mormente não se achando tantos ornatos n’esta historia como exigia a curiosidade d’este seculo.

É minha opinião, que a bellesa de uma historia consiste na verdade do facto e na simplicidade do estylo.

Si eu não descrever palavra por palavra essas conferencias, ou si não usar de muitas palavras, basta que não offenda em coisa alguma a substancia do facto, sendo essa abundancia de discurso necessaria e requerida para vos fazer entender bem claramente suas intenções, e as nossas expressões.