CAPITULO III.
Vou desappontar decerto o leitor benevolo; vou perder, pela minha fatal sinceridade, quanto em seu conceito tinha adquirido nos dois primeiros capitulos d’esta interessante viagem.
Pois que esperava elle de mim agora, de mim que ousei declarar-me escriptor n’estas eras de romantismo, seculo das fortes sensações, das descripções a traços largos e incisivos que se intalham n’alma e entram com sangue no coração?
No fim do capitulo precedente parámos á porta de uma estalagem: que estalagem deve ser ésta, hoje no anno de 1843, ás barbas de Victor Hugo, com o Doutor Fausto a trotar na cabeça da gente, com os Mysterios de Paris nas mãos de todo o mundo?
Ha paladar que supporte hoje a classica posada do Cervantes com o seu mesonero gordo e grave, as pulhas dos seus arrieiros, e o mantear de algum pobre lorpa de algum Sancho! Sancho, o invisivel rei do seculo, aquelle por quem hoje os reis reinam e os fazedores de leis decretam e afferem o justo! Sancho manteado por vis muleteiros! Não é da epocha.
<poem> Eu coroarei de trevo a minha espada, De cenoiras, luzerna e betarrava, Para cantar Harmódios e Aristógilons, Que do tyranno jugo vos livraram Da sciencia velha, inutil carunchosa,
Que elevava da terra, erguia, alçava O que no homem ha de Ser divino, E para os grandes feitos e virtudes Lhe despegava o espirito da carne...</poem>
Não: plantae batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra, macadamisae estradas, fazei caminhos de ferro, construí passarolas de Icaro, para andar a qual mais depressa, éstas horas contadas de uma vida toda material, massuda e grossa como tendes feito ésta que Deus nos deu tam differente do que a hoje vivemos. Andae, ganha-pães, andae; reduzi tudo a cifras, todas as considerações d’este mundo a equações de interêsse corporal, comprae, vendei, agiotae. — No fim de tudo isto, o que lucrou a especie humana? Que ha mais umas poucas de duzias de homens riccos. E eu pergunto aos economistas-politicos, aos moralistas, se ja calcularam o número de individuos que é forçoso condemnar á miseria, ao trabalho desproporcionado, á desmoralização, á infamia, á ignorancia crapulosa, á desgraça invencivel, á penuria absoluta, para produzir um ricco? — Que lh’o digam no Parlamento inglez, onde, depois de tantas commissões de inquérito, ja deve de andar orçado o número de almas que é preciso vender ao diabo, o número de corpos que se tem de intregar antes do tempo ao cemiterio para fazer um tecelão ricco e fidalgo como Sir Robert Peel, um mineiro, um banqueiro, um grangeeiro — seja o que for: cada homem ricco, abastado, custa centos de infelizes, de miseraveis.
Logo a nação mais feliz não é a mais ricca. Logo o princípio utilitario é a mamona da injustiça e da reprovação. Logo...
There
are more things in heaven and earth, Horatio,
Than are dreamt of in your philosophy.
A sciencia d’este seculo é uma grandessissima tola.
E como tal, presumpçosa e cheia do orgulho dos nescios.
Vamos á descripção Vamos á descripção da estalagem. Não póde ser classica; assoviam-me todos esses rapazes de pera, bigode e charuto, que fazem litteratura cava e funda desde a porta do Marrare até ao café de Moscow...
Mas aqui é que me apparece uma incoherencia inexplicavel. A sociedade é materialista; e a litteratura, que é a expressão da sociedade, é toda excessivamente e absurdamente e despropositadamente espiritualista! Sancho rei de facto, Quixote rei de direito!
Pois é assim; e explica-se. — É a litteratura que é uma hypocrita: tem religião nos versos, charidade nos romances, fé nos artigos de jornal — como os que dão esmolas para pôr no Diario, que amparam orphans na Gazeta, e sustentam viuvas nos cartazes dos theatros.
E fallam no Evangelho! Deve ser por escarneo. Se o leem, hãode ver lá que nem a esquerda deve saber o que faz a direita...
Vamos á descripção da estalagem; e acabemos com tanta digressão.
Não póde ser classica, está visto, a tal descripção. — Seja romantica. — Tambem não póde ser. Porque não? É pôr-lhe lá um Chourineur a amolar um facão de palmo e meio para espatifar rez e homem, quanto incontrar, — uma Fleur-de-Marie para dizer e fazer pieguices com uma rozeirinha pequenina, bonitinha, que morreu, coitadinha! — e um principe allemão incoberto, forte no sôcco britannico, immenso em libras sterlinas, profundo em gyria de cegos e ladrões... e ahi fica a Azambuja com uma estalagem que não tem que invejar á mais pintada e da moda n’este seculo elegante, delicado, verdadeiro, natural!
É como eu devia fazer a descripção: bem o sei. Mas ha um impedimento fatal, invencivel — egual ao d’aquella famosa salva que se não deu... é que nada d’isso lá havia.
E eu não quero calumniar a boa gente da Azambuja. Que me não leam os taes, porque eu heide viver e morrer na fé de Boileau:
Rien n’est beau que le vrai.
Ja se diz ha muito anno que honra e proveito não cabem n’um sacco; eu digo que belleza e mentira tambem lá não cabem: e é a mais portugueza traducção que creio que se possa fazer d’aquelle ímmortal e evangelico hemystichio. A maior parte das bellezas da litteratura actual fazem-me lembrar aquellas formosuras que tentavam os sanctos eremitas na Thebaida. O pobre de Sancto Antão ou de S. Pacomio (Pacomio é melhor aqui) ficavam imbasbacados ao princípio; mas dava-lhe o coração uma pancada, olhavam-lhe para os pés... — Cruzes maldicto! Os pés não podia elle incobrir. E ao primeiro abrenuntio do sancto, dissipava-se a belleza em muito fummo de inxofre, e ficava o diabo negro feio e cabrum como quem é, e sempre foi o pae da mentira.
Nada, nada, verdade e mais verdade. Na estalagem da Azambuja o que havia era uma pobre velha a quem eu chamei bruxa, porque emfim que havia de eu chamar á velha suja e maltrapida que estava á porta d’aquella asquerosa casa?
Havia lá ésta velha, com a sua môça mais môça mas não menos nojenta de ver que ella, e um velho meio paralytico meio demente que alli estava para um canto com todo o geito e traça de quem vem folgar agora na taberna porque ja bebeu o que havia de beber n’ella. Matava-nos a sêde; mas a agua alli é beber quartans. O vinho era atroz. Limonada? Não ha limões nem assucar. — Mandou-se um proprio á tenda no fim da villa. Vieram tres limões que me pareceram de uns que pendiam, quando eu vinha a férias, á porta do famoso botequim de Leiria. O assucar podia servir na última scena de M. de Pourceaugnac muito melhor que n’uma limonada. Mas misturou-se tudo com a agua das sezões, bebémos, pozemo-nos em marcha, e até agora não nos fez mal, com ser a mais abominavel, antipathica e suja beberagem que se póde imaginar.
Caminhámos na mesma ordem até chegar ao famoso pinhal da Azambuja.