CAPITULO V.

 
Chega o A. ao pinhal da Azambuja, e não o acha. Trabalha-se por explicar este phenomeno pasmoso. Bello rasgo de stylo romantico. — Receita para fazer litteratura original com pouco trabalho. — Transição classica: Orpheu e o bosque do Ménalo. — Desce o A. d’estas grandes e sublimes considerações para as realidades materiaes da vida: é desamparado pela hospitaleira traquitana e tem de cavalgar na triste mula de arrieiro. — Admiravel choito do animal. Memorias do marquez do F. que adorava o choito.
 

Este é que é o pinhal da Azambuja?

Não póde ser.

Ésta, aquella antiga selva, temida quasi religiosamente como um bosque druidico! E eu que, em pequeno, nunca ouvia contar historia de Pedro de Mallas-artes, que logo, em imaginação, lhe não pozesse a scena aqui perto!... Eu que esperava topar a cada passo com a cova do capitão Roldão e da dama Leonarda!... Oh! que ainda me faltava perder mais ésta illusão...

Por quantas maldicções e infernos adornam o stylo d’um verdadeiro escriptor romantico, digam-me, digam-me: onde estão os arvoredos fechados, os sitios medonhos d’esta espessura. Pois isto é possivel, pois o pinhal da Azambuja é isto?... Eu que os trazia promptos e recortados para os collocar aqui todos os amaveis salteadores de Schiller, e os elegantes facinorosos do Auberge-des-Adrets, eu heide perder os meus chefes-d’obra! Que é perdê-los isto — não ter onde os pôr!.. Sim, leitor benevolo, e por ésta occasião te vou explicar como nós hoje em dia fazemos a nossa litteratura. Ja me não importa guardar segredo, depois d’esta desgraça não me importa ja nada. Saberás pois, ó leitor, como nós outros fazemos o que te fazemos ler. Tracta-se de um romance, de um drama — cuidas que vamos estudar a historia, a natureza, os monumentos, as pinturas, os sepulchros, os edificios, as memorias da epocha? Não seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o somos. Desenhar characteres e situações do vivo da natureza, collori-los das côres verdadeiras da historia... isso é trabalho difficil, longo, delicado, exige um estudo, um talento, e sôbretudo um tacto!... Não senhor: a coisa faz-se muito mais facilmente. Eu lhe explico.

Todo o drama e todo o romance precisa de:

Uma ou duas damas,

Um pae,

Dois ou tres filhos, de dezanove a trinta annos,

Um criado velho,

Um monstro, incarregado de fazer as maldades,

Varios tractantes, e algumas pessoas capazes para intermedios.

Ora bem; vai-se aos figurinos francezes de Dumas, de Eug. Sue, de Victor-Hugo, e recorta a gente, de cadaum d’elles, as figuras que precisa, gruda-as sôbre uma folha de papel da côr da moda, verde, pardo, azul — como fazem as raparigas inglezas aos seus albums e scrapbooks; fórma com ellas os grupos e situações que lhe parece; não importa que sejam mais ou menos disparatados. Depois vai-se ás chronicas, tiram-se uns poucos de nomes e de palavrões velhos; com os nomes chrismam-se os figurões, com os palavrões illuminam-se... (stylo de pintor pinta-monos). — E aqui está como nós fazemos a nossa litteratura original.

E aqui está o precioso trabalho que eu agora perdi!

Isto não póde ser! Uns poucos de pinheiros raros e infezados atravez dos quaes se estão quasi vendo as vinhas e olivedos circumstantes!.. É o desapontamento mais chapado e solemne que nunca tive na minha vida — uma verdadeira logração em boa e antiga phrase portugueza.

E comtudo aqui é que devia ser, aqui é que é, geographica e topographicamente fallando, o bem conhecido e confrontado sitio do pinhal da Azambuja... Passaria por aqui algum Orpheu que, pelos magicos podêres da sua lyra, levasse atraz de si as árvores d’este antigo e classico Menalo dos salteadores lusitanos? Eu não sou muito difficil em admittir prodigios quando não sei explicar os phenomenos por outro modo. O pinhal da Azambuja mudou-se. Qual, de entre tantos Orpheus que a gente por ahi ve e ouve, foi o que obrou a maravilha, isso é mais difficil de dizer. Elles são tantos, e cantam todos tão bem! Quem sabe? Juntar-se-hiam, fariam uma companhia por acções, e negociariam um emprestimo harmonico com que facilmente se obraria então o milagre. É como hoje se faz tudo; é como se passou o thesoiro para o banco, o banco para as companhias de confiança... porque se não faria o mesmo com o pinhal da Azambuja?

Mas aonde está elle então? faz favor de me dizer...

Sim senhor, digo: está consolidado. E se não sabe o que isto quer dizer, leia os orçamentos, veja a lista dos tributos, passe pelos olhos os votos de confiança; e se depois d’isto, não souber aonde e como se consolidou o pinhal d’Azambuja, abandone a geographia que visivelmente não é a sua especialidade, e deite-se a finança, que tem bossa; — fazemo-lo eleger ahi por Arcozello ou pela cidade eterna — é o mesmo — vai para a commissão de fazenda — depois lord do thesoiro, ministro: é escalla, não offendia nem a rabujenta constituição de 38, quanto mais a carta.

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O peior é que no meio d’estes campos onde Troia fôra, no meio d’estas areias onde se acoitavam d’antes os pallidos medos do pinhal da Azambuja, a minha querida e bemfazeja traquitana abandonou-me; fiquei como o bom Xavier de Maistre quando, a meia jornada do seu quarto, lhe perdeu a cadeira o equilibrio, e elle cahiu — ou ia caindo, ja me não lembro bem — estatellado no chão. Ao chão estive eu para me atirar, como criança amuada, quando vi voltar para a Azambuja o nosso commodo vehiculo, e deante de mim a infezada mulinha asneira que — ai triste! — tinha de ser o meu transporte d’alli até Santarem. Emfim o que hade ser, hade ser, e tem muita fôrça. Consolado com este tam verdadeiro quanto elegante proverbio, levantei o ânimo á altura da situação e resolvi fazer próva de homem forte e supportador de trabalhos. Bifurquei-me resignadamente sôbre o cilicio do esfarrapado albardão, tomei na esquerda as impermeaveis redeas de coiro cru, e lancei o animalejo ao seu mais largo trote, que era um confortavel e amenissimo choito, digno de fazer as delicias do meu respeitavel e excentrico amigo, o marquez do F. Tinha a bossa, a paixão, a mania, a furia de choitar aquelle notavel fidalgo — o último fidalgo homem de lettras que deu ésta terra. Mas adorava o choito o nobre marquez. Conheci-o em París nos ultimos tempos da sua vida, ja octogenario ou perto d’isso: deixava a sua carruagem ingleza toda mollas e confortos para ir passear n’um certo cabriolet de praça que elle tinha marcado pelo sêcco e duro movimento vertical com que sacudia a gente. Obrigou-me um dia a experimenta-lo: era admiravel. Communicava-se da velha horsa normanda aos varaes, e dos varaes á concha do carro, tam inteiro e tam sem diminuição, o choito do execravel Babiéca! Nunca vi coisa assim. O marquez achava-lhe propriedades toni-purgativos, eu classifiquei-o de violentissimo drastico.

Foi um dos homens mais extraordinarios e o portuguez mais notavel que tenho conhecido, aquelle fidalgo.

Era feio como o peccado, elegante como um bugio, e as mulheres adoravam-n’o. Filho segundo, vivia de seus ordenados nas missões por que sempre andou, tractava-se grandiosamente, e legou valores consideraveis por sua morte. Imprimia uma obra sua, mandava tirar um unico exemplar, guardava-o e desmanchava as fòrmas.... — Não acabo se coméço a contar historias do marquez do F. Piquemos para o Cartaxo, que são horas.