CAPITULO XIV.

 

Emendado emfim de suas distracções e divagações, prosegue o A. direitamente com a historia promettida. — De como Fr. Diniz deu a manga a beijar á avó e á neta, e do mais que entre elles se passou. — Ralha o frade com a velha, e começa a descobrir-se onde a historia vai ter.

 

Este capitulo não tem divagações, nem reflexões, nem considerações de nenhuma especie, vai direito e sem se distrahir, pela sua historia adeante.

Fr. Diniz chegava aopé das duas mulheres e disse:

— 'Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo!'

Joanna adeantou-se alguns passos a beijar-lhe a manga. Elle accrescentou:

— 'A benção de Deus te cubra, filha, e a de nosso padre San'Francisco!’

— 'Benedicite, padre guardião:' disse a velha inclinando-se meia levantada da cadeira.

— 'Em nome do Senhor! amen'. — respondeu o frade aproximando-se, e chegando o braço a alcance de lh’o ella beijar:

— 'Ora aqui estou, minha irman; que me quer? E como vai isto por cá? Vamo-nos confortando, tendo paciencia, e soffrendo com os olhos no Senhor?' — 'Ja os não tenho senão para elle, padre.'

— 'Ah, ah! irman Francisca, sempre esse pensamento, sempre essa queixa! Tenho-a reprehendido tanta vez e não se emenda.'

— 'Eu não me queixei, meu padre. Deus sabe que me não queixo... ao menos por mim.'

— 'Pois por quem?'

— 'Oh padre!'

— 'Irman Francisca, tenho medo de a intender. Eu não conheço as affeições da carne nem lido com os fracos pensamentos do mundo. Sou frade, minha irman, sou um que ja não é do número dos vivos, que vestiu ésta mortalha para não ser d'elles, que a vestiu n’um tempo em que a mofa e o desprêzo são o unico patrimonio do frade, em que o escarneo, a derisão, o insulto — o peior e o mais cruel de todos os martyrios — são a nossa unica esperança. Eu quiz ser frade, fiz-me frade, sabendo e vendo tudo isto, fiz-me frade no meio de tudo isto, já velho e experimentado no mundo, farto de o conhecer, e certo do que me espera — a mim e á profissão que abraçei. Que quer de um homem que assim se resolveu a cortar por quanto prende a humanidade a ésta miseravel vida da terra, para não viver senão das esperanças da outra? Eu vesti este hábito para isso. O seu, irman, o seu para que o vestiu? É um divertimento, é um capricho, é uma comedia com Deus? Rasgue-o depressa, vista-se das galas do mundo, não apperte com a paciencia divina, trajando por fóra o sacco da penitencia e trazendo o coração pordentro desappertado de todo o cilicio e mortificação.’

A velha com as mãos postas, a face alevantada e os apagados olhos para o ceo, offerecia a Deus todo o amargor d’aquella austeridade que não cuidava merecer nem lhe parecia intender. Joanninha, que insensivelmente se fôra approximando da avó, e a tinha como amparada portraz com um de seus braços, firmava a outra mão nas costas da cadeira e cravava fita no frade a vista penetrante e cheia de luz. A expressão do seu rosto era indefinivel: irisava-lh’o, distincta mas promiscuamente, um mixto inextricavel de enthusiasmo e desanimação, de fé e de incredulidade, de sympathia e de aversão.

Disseras que n’aquelles olhos verdes e n’aquelle rosto mal córado estava o typo e o symbolo das vascillações do seculo.

— 'Padre!' tornou a velha com sincera humildade na voz e no gesto: — 'se o mereci, castigae-me. Deus, que me vê e me ouve, bem sabe que o digo em toda a verdade do meu coração, e hade perdoar-me porque eu sou fraca e mulher.'

— 'Pois aos fracos não é que Elle disse: Toma a tua cruz e segue-me. Quem a obrigou a fazer os votos que fez?'

— 'É verdade, padre, é verdade: bem sei o que prometti, que me votei a Deus d'alma e corpo, que me não pertenço, que nem das minhas affeições posso dispor, mas...’

— 'Mas o quê? Irman Francisca, a Deus não se ingana. Os seus votos não foram feitos n'um mosteiro, nem proferidos n’um altar no meio das solemnidades da egreja. Mas ja lh’o tenho ditto, no fôro da consciencia, na presença de Deus, ligam-n’a tanto ou mais do que se o fossem. Abjure-os se quizer; nenhuma lei, nenhuma fôrça humana a constrange. Diga-m’o por uma vez, desingane-me, e eu não torno aqui.’

— 'Oh, por compaixão, padre! pelas chagas de Christo! Mas uma pergunta so, uma so, e eu prometto não pensar, não fallar mais em... Onde está elle?'

— 'Joanna, retire-se.'

Joanninha appertou a avó com ambos os braços; e sem dizer uma palavra, sem fazer um so gesto, lentamente e silenciosamente se retirou para dentro de casa.

— 'E ésta, padre?' disse a velha sem esperar a resposta á primeira pergunta que com tanta ancia fizera — 'e ésta, tambem d'ella me heide separar, tambem heide renunciar a ella?’

— 'Esta é uma innocente, e emquanto o for'...

— 'Em quanto o for! A minha Joanna é um anjo.'

— 'Blasphemia, blasphemia! E o Senhor a não castigue por ella. Joanna é boa e temente a Deus: esperemos que Elle a conserve da sua mão. O outro...'

— 'Que é feito d'elle padre? Oh! diga-m’o, e eu prometto...’

— 'Não prometta senão o que póde cumprir. Seu neto está com esses desgraçados que vieram das ilhas, é dos que desimbarcaram no Porto...'

— 'Oh filho da minha alma! que não tórno a abraçar-te...'

— 'Não decerto; vencedores ou vencidos, toda a communhão, toda a possibilidade de união acabou entre nós e estes homens. Nós temos obrigação de os destruir, elles o seu unico desejo é exterminar-nos.'

— 'Meu Deus meu Deus! pois a isto somos chegados! Pois ja não ha misericordia no ceo nem na terra!'

— 'A misericordia de Deus cansou-se; a da terra não sei onde está nem onde esteve nunca. Os fracos dão sacrilegamente esse nome á sua relaxação.'

— 'Pois é relaxação desejar a paz, querer a união, supplicar a indulgencia? Não nos manda Deus perdoar as nossas dividas, amar os nossos inimigos?'

— 'Os nossos sim, os d’Elle não.'

— 'Tende compaixão de mim, Senhor!'

— 'Se as suas afflicções são as da carne e do sangue, se são pensamentos da terra como desgraçadamente vejo que são, mulher fraca e de pouco ânimo, console-se, que para mim é claro e seguro que estes homens hãode vencer.'

— 'Quaes homens?'

— 'Esses inimigos do altar e da verdade, esses homens desvairados pelas speciosas doutrinas do seculo. Esperam muito, promettem muito, estão em todo o vigor das suas illusões. E nós, nós carregâmos com o desingano de muitos seculos, com os peccados de trinta gerações que passaram, e com a inaudita corrupção da presente... nós havemos de succumbir. Os templos hãode ser destruidos, os seus ministros proscriptos, o nome de Deus blasphemado á vontade n'esta terra malditta.’

— 'Pois tam perdidos, tam abandonados da mão de Deus são elles todos... todos?'

— 'Todos. E que cuida, irman? que são melhores os nossos, esses que se dizem nossos? que ha mais fé na sua crença, mais verdade em sua religião? Oh sancto Deus!'

— 'Faz-me tremer, padre!'

— 'E para tremer é. A impiedade e a cubiça entraram em todos os corações. Duvidar é o unico princípio, inriquecer o unico objecto de toda essa gente. Liberaes e realistas, nenhum tem fé: os liberaes ainda teem esperança; não lhe hade durar muito. Deixem-n'os vencer e verão.’

— 'E hãode vencer elles?'

— 'Decerto.'

— 'Ninguem mais diz isso.'

— 'Digo-o eu.'

— 'Tantos mil soldados que o govêrno tem por si!'

— 'E tantos milhões de peccados contra. Não póde ser, não póde ser: a misericordia divina está exhausta, e o dia desejado dos impios vem a chegar. A sua missão é facil e prompta; não sabem, não podem senão destruir. Edificar não é para elles, não teem com quê, não creem em nada. O symbolo christão não é so uma verdade religiosa é um princípio eterno e universal. Fe, esperança e charidade. Sem crer, sem esperar...'

— 'E sem amar!'

— 'Mulher, mulher! o amor é a última virtude...'

— 'Mas por ella, por ella se chega ás outras.'

— 'Não, mulher fraca, não. E de uma vez para sempre, irman Francisca, desinganemo'-nos. Entre mim, entre o Deus que eu sirvo, não ha transacção com os seus inimigos. Indulgencia n’esse ponto não sei o que é. Vejo a sorte que me espera n’este mundo, e não tremo deante d’ella. Quem teme, siga outro caminho; eu nunca.’

— 'Padre eu não temo nem receio por mim. Sou fraca e mulher, e em toda a tribulação e desgraça heide glorificar o meu Deus e dar testimunho da minha fé. Mas... mas o meu neto é o meu sangue, a minha vida, é o filho querido da minha unica e tam amada filha, elle não conheceu outra mãe senão a mim, quero-lhe por elle e por ella. Abandoná-lo não posso, tirar d'elle o pensamento não sei. A vontade de Deus...’

— 'A vontade de Deus é que o justo se aparte do impio, é que os cordeiros da benção vão para um lado, e os cabritos da maldicção para outro. Esse rapaz... oh! minha irman, eu não sou de pedra, não, não sou, e tambem o coração se me parte de o dizer... mas esse rapaz é malditto, e entre nós e elle está o abysmo todo do inferno.'

— 'Misericordia, meu Deus!'

Pallido, infiado, mais descorado e mais amarello do que era sempre aquelle rosto, Fr. Diniz pronunciou, tremendo mas com fôrça, as suas últimas e terriveis palavras. Os olhos, habitualmente sumidos e cavos, recuaram-lhe ainda mais para dentro das orbitas descarnadas; o bordão tremia-lhe na esquerda; e a direita suspensa no ar parecia intimar ao culpado a terrivel imprecação que lhe sahia dos labios.

— 'Malditto! malditto sejas tu!' proseguiu o frade, ’filho ingrato, coração derrancado e perverso!’

— 'Meu Deus, não o escuteis!' bradou a velha cahindo de joelhos no chão e prostrando-se na terra dura ’Meu Deus, não confirmeis aquellas palavras tremendas. Não o ouçais, Senhor, e valha o sangue precioso de vosso filho, as dores bemdittas de sua mãe, oh meu Deus! para arredar da cabeça do meu pobre filho as crueis palavras d’este homem sem piedade, sem amor!..’

A velha queria dizer mais; as angústias que se tinham estado juntando n’aquella alma, que porfim não podia mais e transbordava, queriam sahir todas, queriam derramar-se alli em lagrymas e soluços na presença do seu Deus que ella via sempre no throno das misericordias, que não podia acabar comsigo que o visse o inflexivel, o terrivel Deus das vinganças que lhe annunciava o frade. Mas a carne não pôde com o espirito, as fôrças do corpo cederam: tomou-a um mortal deliquio, immudeceu, e... suspendeu-se-lhe a vida.

Fr. Diniz contemplou-a alguns momentos n’esse estado e pareceu commover-se; mas aquelles nervos eram fios de ferro temperado que não vibravam a nenhuma suave percussão: deu dous passos para a porta da casa, bateu com o bordão e disse com voz firme e segura:

— 'Joanna, acuda a sua avó que não está boa.'

D’ahi tomou por onde viera, e, sem voltar uma vez a cabeça, caminhou ápressado; breve se escondeu para lá das oliveiras da estrada.