CAPITULO XLI.

 
O roubador do corpo do sancto descuberto pela arguta perspicacia do leitor benevolo. — Grande lacuna na nossa historia. — Porque se não preenche? — Página preta na historia de Tristam Shandy. — Novellas e romances, livros insignificantes. — O adro de San’Francisco e as suas acacias. — Que será feito de Joanninha? — O peito da mulher do norte. — Vamos embora: ja me infada Santarem e as suas ruinas. — A corneta do soldado e a trombeta do juizo final. — Eheu, Portugal, eheu!
 

Porcerto, leitor amigo, no franciscano velho que vai de noite roubar os ossos do sancto ao seu tum Porcerto, leitor amigo, no franciscano velho que vai de noite roubar os ossos do sancto ao seu tumulo, e os vem esconder na clausura das freiras, porcerto, digo, reconheceu ja a tua natural perspicacia ao nosso Frei Diniz, o frade por excellencia — frade por teima e acinte.

Pois esse era, não ha dúvida.

Assim se passou aquella scena e assim m’a contaram. Do que mediára entre ella e o acontecido com o frade, Carlos, Joanninha, a avó e a ingleza, d’isso é que nada pude saber.

É uma grande lacuna na nossa historia; mas antes fique assim do que enchê-la de imaginação.

Oh! eu detesto a imaginação.

Onde a chronica se calla e a tradição não falla, antes quero uma pagina inteira de pontinhos, ou toda branca — ou toda preta, como na veneravel historia do nosso particular e respeitavel amigo Tristão Shandy, do que uma so linha da invenção do chroniqueiro.

Isso é bom para novellas e romances, livros insignificantes que todos leem todavia, ainda os mesmos que o negam.

Eu tambem me parece que os leio, mas vou sempre dizendo que não...

Emfim, tornemos ao frade, e tornemos ás minhas viagens.

Cheio d’elle e da sua memoria, palpitando com a recordação das tremendas scenas que, havia tam poucos annos, se tinham passado em seu antigo mosteiro, eu me approximei emfim do real convento de San’Francisco de Santarem.

Dei pouca attenção ao bello adro e á solemne vista que d’elle se descobre — e menos ainda ás doentias acacias que ahi vejetam infezadas e rachiticas, como plantadas de má mão e em má hora — porque môças são ellas, é visivel: poseram-n’as ahi depois de extincto o convento. São triste mas verdadeiro symbolo da apagada e facticia vida que se quiz dar ao que era morto.

Vamos dentro, e vejamos pelas baixas e aguçadas arcadas do claustro, pelas altas naves do templo se descubrimos algum vestigio do último guardião d’esta casa, e d’essa fadada familia cujo destino em hora aziaga tam estreitamente se ligou com o d’elle.

Ja me interessa isto mais, confesso, ai! muito mais, do que todos esses tumulos e inscripções que por ahi estão, e que tanto characterizam este um dos mais antigos e mais historicos edificios do reino.

Mas em vão interrogo pedra a pedra, lage a lage: o echo morto da solidão responde tristemente ás minhas perguntas, responde que nada sabe, que esqueceu tudo, que aqui reina a desolação e o abandôno, e que se apagaram todas as lembranças de outro estado...

Que foi feito de ti, Joanninha, e dos teus amores? Que será feito d’esse homem que ousou amar-te amando a outra? E essa outra onde está? Resignou-se ella devéras? Sepultou comeffeito, sob o gêlo apparente que veste de triplice mas falsa armadura o peito da mulher do norte, todo aquelle fogo intenso e íntimo que solapadamente lhe devora o coração?

Não tenho esperanças de saber nada d’isso aqui.

So pude descubrir que, no dia immediato á scena nocturna das Claras, Fr. Diniz sahiu de Santarem, não se sabe em que direcção — que n’esse mesmo dia Georgina sahíra tambem pela estrada de Lisboa, levando em sua carruagem a avó e a neta, ambas meias mortas e ambas meias loucas — que não houvera mais novas de Carlos — e que a sua última carta, aquella que escrevêra de juncto d’Evora, Joanninha a levava apertada nas mãos convulsas quando partíra.

Pois tambem eu me quero partir, me quero ir embora. Ja me infada Santarem, ja me cansam éstas perpétuas ruinas, estes pardeiros interminaveis, o aspecto desgracioso d’estes intulhos, a tristeza d’estas ruas desertas. Vou-me embora.

E comtudo San’Francisco é uma bella ruina, que merecia examinada de vagar, com outra paciencia que eu ja não tenho.

Se tudo me impacienta aqui!

Da bella egreja gothica, fizeram uma arrecadação milítar; andou a mão destruidora do soldado quebrando e abolando esses monumentos preciosos, riscando com a baioneta pelo verniz mais pulido e mais respeitado d’esses jazigos antiquissimos: os lavores mais delicados esmoucou-os, degradou-os. Levantaram as lages dos sepulchros; e ao som da corneta militar acordaram os mortos de seculos, cuidando ouvir a trombeta final...

Decididamente vou-me embora, não posso estar aqui, não quero ver isto. Não é horror que me faz, é náusea, é asco, é zanga.

Maldittas sejam as mãos que te profanaram, Santarem... que te deshonraram, Portugal... que te invilleceram e degradaram, nação que tudo perdeste, até os padrões da tua historia!..

Eheu, eheu, Portugal!