CAPITULO XLIX.

 
De como Carlos se fez barão. — Fim da historia de Joanninha. — Georgina abbadessa. — Juizo de Fr. Diniz sôbre a questão dos frades e dos barões. — Que não póde tornar a ser o que foi, mas muito menos póde ser o que é. O que hade ser, Deus o sabe e proverá. — Vai o A. dormir ao Cartaxo. — Sonho que ahi tem. — Volta a Lisboa. — Caminhos de ferro e de papel. — Conclusão da viagem e d’este livro.
 

Acabei de ler a carta de Carlos, intreguei-a a Fr. Diniz em silencio. Elle tornou-me:

— 'Leu?'

— 'Li.'

— 'Que mais quer saber? Sinto que lhe posso dizer tudo: não o conheço, mas...'

— 'Mas deve conhecer-me por um homem que se interessa vivamente...'

— 'Em quê? nas eleições, na agiotagem, nos bens nacionaes?'

— 'Não senhor. Fui camarada de Carlos, não o vejo ha muitos annos e...'

— 'Nem o conhecia se o visse agora: ingordou, inriqueceu, e é barão...'

— 'Barão!'

— 'É barão, e vai ser deputado qualquer dia.'

— 'Que transformação! Como se fez isso, sancto Deus! E Joanninha e Georgina?'

— 'Joanninha inlouqueceu e morreu. Georgina é abbadessa de um convento em Inglaterra.'

— 'Abbadessa?'

— 'Sim. Converteu-se á communhão catholica; era ricca, fundou um convento em — — shire e lá está servindo a Deus.'

— 'E ésta pobre senhora, a avó de Joanninha?'

— 'Ahi está como a ve, morta de alma para tudo. Não ve, não ouve, não falla, e não conhece ninguem. Joanninha veio morrer aqui n'esta fatal casa do valle, eu estava ausente, expirou nos braços d’ella e de Georgina. Desde esse instante a avó cahiu n’aquelle estado. Está morta, e não espero aqui senão a dissolução do corpo para o interrar, se eu não for primeiro, e Deus queira que não! quem hade tomar conta d’ella, ter charidade com a pobre da demente? Mas depois... oh! depois... espero no Senhor que se compadeça emfim de tanto soffrer e me leve para si.’

— 'Mas Carlos?'

— 'Carlos é barão: não lh'o disse ja?’

— 'Mas por ser barão?..'

— 'Não sabe o que é ser barão?'

— 'Oh se sei! Tam poucos temos nós?'

— 'Pois barão é o succedaneo dos...'

— 'Dos frades... Ruim substituição!'

— 'Vi um dos taes papeis liberaes em que isso vinha: e é a unica coisa que leio d'essas ha muitos annos. Mas fizeram-m’o ler.’

— 'E que lhe pareceu?'

— 'Bem escripto e com verdade. Tivemos culpa nós, é certo; mas os liberaes não tiveram menos.'

— 'Errámos ambos.'

— 'Errámos e sem remedio. A sociedade ja não é o que foi, não póde tornar a ser o que era; — mas muito menos ainda póde ser o que é. O que hade ser, não sei. Deus proverá.'

Ditto isto, o frade benzeu-se, pegou no seu breviario e poz-se a rezar. A velha dobava sempre, sempre. Eu levantei-me, contemplei-os ambos alguns segundos. Nenhum me deu mais attenção nem pareceu conscio da minha estada alli.

Sentia-me como na presença da morte e atterrei-me.

Fiz um esfôrço sôbre mim, fui deliberadamente ao meu cavallo, montei, piquei desesperado d’esporas, e não parei senão no Cartaxo.

Incontrei alli os meus companheiros; era tarde, fomos ficar fóra da villa á hospedeira casa do Sr. L. S.

Rimos e folgámos até alta noite: o resto dormimos a somno sôlto.

Mas eu sonhei com o frade, com a velha — e com uma enorme constellação de barões que luzia n’um ceu de papel, d’onde choviam, como farrapos de neve, n’uma noite pollar, notas azues, verdes, brancas, amarellas, de todas as côres e matizes possiveis. Eram milhões e milhões e milhões...

Nunca vi tanto milhão, nem ouvi fallar de tanta riqueza senão nas mil e uma noites.

Acordei no outro dia e não vi nada... so uns pobres que pediam esmola á porta.

Metti a mão na algibeira, e não achei senão notas... papeis!

Parti para Lisboa cheio de agoiros, de inguiços e de tristes presentimentos.

O vapor vinha quasi vazio, mas nem por isso andou mais depressa.

Eram boas cinco horas da tarde quando desimbarcámos no Terreiro-do-Paço.

Assim terminou a nossa viagem a Santarem: e assim termina este livro.

Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado alguma coisa do que vi. De todas quantas viagens porêm fiz, as que mais me interessaram sempre foram as viagens na minha terra.

Se assim o pensares, leitor benevolo, quem sabe? póde ser que eu tome outra vez o bordão de romeiro, e va perigrinando por esse Portugal fóra, em busca de historias para te contar.

Nos caminhos de ferro dos barões é que eu juro não andar.

Escusada é a jura porêm.

Se as estradas fossem de papel, fa-las-iam, não digo que não.

Mas de metal!

Que tenha o govêrno juizo, que as faça de pedra, que póde, e viajaremos com muito prazer e com muita utilidade e proveito na nossa

boa terra.
NOTAS