CAPITULO XX.

 

Joanninha adormecida — O demi-jour da coquette. — Poesia do Flos-sanctorum*. — De como os rouxinoes acompanhavam sempre a menina do seu nome; e do bem que um d’elles cantava no bivac. — Retratto esquissado á pressa para satisfazer ás amaveis leitoras. — Pondera-se o triste e pessimo gôsto dos nossos governantes em tirarem as honras militares ao mais elegante e mais nacional uniforme do exército portuguez. — Em que se parece o auctor da presente obra com um pintor da edade-média. — De como os abraços, por mais apertados que sejam, e os beijos, por mais interminaveis que pareçam, sempre teem de acabar porfim.

 

Sôbre uma especie de banco rustico de verdura, tapeçado de grammas e de macella brava, Joanninha, meio recostada, meio deitada, dormia profundamente.

A luz baça do crepusculo, coada ainda pelos ramos das árvores, illuminava tibiamente as expressivas feições da donzella; e as fórmas graciosas de seu corpo se desenhavam molle e voluptuosamente no fundo vaporoso e vago das exhalações da terra, com uma incerteza e indecisão de contornos que redobrava o incanto do quadro, e permittia á imaginação exaltada percorrer toda a escalla d’harmonia das graças femininas.

Era um ideal do demi-jour da coquette parisiense: sem arte nem estudo, lh’o preparára a natureza em seu boudoir de folhagem perfumado da brisa recendente dos prados.

Como n’essas poeticas e populares legendas de um dos mais poeticos livros que se tem escripto, o Flos-sanctorum, em que a ave querida e fadada accompanha sempre a amavel sancta de sua affeição — Joanninha não estava alli sem o seu mavioso companheiro. Do mais espêsso da ramagem, que fazia sobreceo áquelle leito de verdura, sahia uma torrente de melodias, vagas e ondulantes como a selva com o vento, fortes, bravas, e admiraveis de irregularidade e invenção, como as barbaras endeixas de um poeta selvagem das montanhas... Era um rouxinol, um dos queridos rouxinoes do valle que alli ficára de vela e companhia á sua protectora, á menina do seu nome.

Com o approximar dos soldados, e o cochichar do curto dialogo que no fim do último capitulo se referiu, cessára por alguns momentos o delicioso canto da avezinha; mas quando o official, postadas as sentinellas a distancia, voltou pé ante pé e entrou cautellosamente para debaixo das árvores, ja o rouxinol tinha tornado ao seu canto, e não o suspendeu outra vez agora, antes redobrou de trillos e gorgeios, e do mais alto de sua voz agudissima veio descahindo depois em uns suspiros tam magoados, tam sentidos, que não disseras senão que preludiava á mais terna e maviosa scena d’amor que esse valle tivesse visto.

O official... — Mas certo que as amaveis leitoras querem saber com quem trattam, e exigem, pelo menos, uma esquissa rapida e a largos traços do novo actor que lhes vou appresentar em scena.

Teem razão as amaveis leitoras, é um dever de romancista a que se não póde faltar.

O official era môço, talvez não tinha trinta annos; pôsto que o tratto das armas, o rigor das estações, e o sêllo visivel dos cuidados que trazia estampado no rosto, accentuassem ja mais fortemente, em feições de homem feito, as que ainda devia arredondar a juventude.

A sua estatura era mediana, o corpo delgado, mas o peito largo e forte como precisa um coração de homem para pulsar livre; seu porte gentil e decidido de homem de guerra desenhava-se perfeitamente sob o espesso e largo sobretudo militar — especie de great-coat inglez que a imitação das modas britannicas tinha tornado familiar nos nossos bivacs. Trazia-o desabotoado e descahido para traz, porque a noite não era fria; e viu-se por baixo elegantemente cingida ao corpo a fardeta parda dos caçadores, realçada de seus characteristicos alamares pretos e avivada de incarnado...

Uniforme tam militar, tam nacional, tam caro a nossas recordações — que essas gentes, prostituidoras de quanto havia nobre, popular e respeitado n’esta terra, proscreveram do exército... por muito portuguez demais talvez! deram-lhe baixa para os beleguins da alfandega, reformaram-n’o em uniforme da bicha!

Não pude resistir a esta reflexão: as amaveis leitoras me perdoem por interromper com ella o meu retratto.

Mas quando pinto, quando vou riscando e collorindo as minhas figuras, sou como aquelles pintores da edade-média que interlaçavam, nos seus paineis, distichos de sentenças; fittas lavradas de moralidades e conceitos... talvez porque não sabiam dar aos gestos e attitudes expressão bastante para dizer por elles o que assim escreviam, e servia a penna de supplemento e illustração ao pincel... Talvez: e talvez pelo mesmo motivo caio eu no mesmo defeito...

Será; mas em mim é irremediavel, não sei pintar de outro modo.

Voltemos ao nosso retratto.

Os olhos pardos e não muito grandes, mas de uma luz e viveza ímmensa, denunciavam o talento, a mobilidade do espirito — talvez a irreflexão... mas tambem a nobre singeleza de um character franco, leal e generoso, facil na íra, facil no perdão, incapaz de se offender de leve, mas impossivel de esquecer uma injúria verdadeira.

A bôcca, pequena e desdenhosa, não indicava comtudo suberba, e muito menos vaidade, mas surria na consciencia de uma superioridade inquestionavel e não disputada.

O rosto, mais pallido que trigueiro, parecia comprido pela barba preta e longa que trazia ao uso do tempo. Tambem o cabello era preto; a testa alta e desaffogada.

Quando callado e serio, aquella physionomia podia-se dizer dura; a mais piquena animação, o mais leve sorriso a fazia alegre e prazenteira, porque a mobilidade e a gravidade eram os dous pollos d’esse character pouco vulgar e difficilmente bem intendido.

D’aquelle busto classico e verdadeiramente moldado pelos typos da arte antiga, podia o statuario fazer um philosopho, um poeta, um homem d’estado ou um homem do mundo, segundo as leves inflexões d’expressão que lhe désse.

N’este momento agora, e ao entrar na pequena espessura d’aquellas árvores, animava-o uma viva e inquieta expressão de interêsse — quebrado comtudo, sustido, e, para assim dizer, soffreado de um temor occulto, de um pensamento reservado e doloroso que lhe ia e vinha resumbrando na face, como a antiga e desbotada côr de um estôfo que se tingiu de novo — que é outro agora mas que não deixou de ser inteiramente o que era...

Alegra-se assim um triste dia de novembro com o raio de sol transiente e inesperado que lhe rompeu a cerração n’um canto do ceo...

Tal era, e tal estava deante de Joanninha adormecida, o que não direi mancebo porque o não parecia — o homem singular a quem o nome, a historia e as circumstancias da donzella pareciam ter feito tamanha impressão.

— 'Joanninha!' murmurou elle apenas a viu á luz ainda bastante do crepusculo. ’Joanninha!’ disse outra vez, contendo a violencia da exclamação: ’É ella sem dúvida. Mas que differente!... quem tal diria! Que graça, que gentileza! Será possível que a criança que ha dois annos?..’

Dizendo isto, por um movimento quasi involuntario lhe tomou a mão adormecida e a levou aos labios.

Joanninha estremeceu e acordou. — 'Carlos, Carlos!' — balbuciou ella com os olhos ainda meio-fechados, Carlos, meu primo... meu irmão! era falso, dize: era falso? Foi um sonho, não foi, meu Carlos?..’ E progressivamente abria os olhos mais e mais até se lhe espantarem e os cravar n’elle arregalados de pasmo e de alegria. — 'Foi, foi’ continuou ella 'foi sonho, foi um sonho mau que eu tive. Tu não morreste... Falla á tua irman, á tua Joanna; dize-lhe que estás vivo, que não es a sombra d’elle... Não es, não, que eu sinto a tua mão quente na minha que queima, sinto-a estremecer como a minha... Carlos, meu Carlos! dize, falla-me: tu estás vivo e são? E es... es o meu Carlos? Tu proprio, não é ja o sonho, es tu?...’

— 'Pois tu sonhavas? tu, Joanna, tu sonhavas commigo?'

— 'Sonhava como sonho sempre que durmo... e o mais do tempo que estou acordada... sonhava com aquillo em que so penso... em ti.'

— 'Joanna!... prima... minha irman!'

E cahiu nos braços d’ella; e abraçaram-se n’um longo, longo abraço — com um longo, interminavel beijo..! longo, longo e interminavel como um primeiro beijo d’amantes...

O abraço desfez-se; e o beijo terminou em fim, porque os reflexos do ceo na terra são limitados e imperfeitos como as incompletas existencias que a habitam.

Senão... invejariam os anjos a vida da terra.

Joanninha, tornada a si d’aquelle quasi paroximo, abria e fechava os olhos para se affirmar se estava bem acordada, tocava com as mãos o rosto, o peito, os braços do primo, palpava-se depois a si mesma como quem duvidava de sua propria existencia, e dizia em palavras cortadas e sem nexo:

— 'É Carlos... Carlos: foi falso. É meu primo... Minha avó tambem sonhou o mesmo sonho, mas foi falso. Fr. Diniz não é o que disse, nem ninguem: eu e a avó é que o sonhámos. Mas elle aqui está, vivo... vivo! e nosso, nosso todo outra vez!... Mas como vieste tu aqui, Carlos? Como estava eu aqui comtigo?... E sos, sosinhos aqui a ésta hora! Não deve ser isto... Valha-me Deus! E que dirão? E Jesus! — Lá isso não me importa; deixá-los dizer: mas não deve ser. Vamos, Carlos, vamos ter com ella, vamos para a avó!... Que n'isto não ha mal nenhum... Meu primo!.. um primo com quem eu fui criada!.. Mas quem não souber, póde dizer... Vamos, Carlos. — Oh! minha avó morre de alegria, coitada!.. É verdade: vou adeante preveni-la, prepará-la... heide-lhe ir assim dizendo pouco a pouco... Segue-me tu, Carlos, e vamos. — Mas, oh meu Deus! não é preciso: paraquê? Ella é cega, coitadinha, não sabes?’

— 'Cega, que dizes? minha avó está cega?'

— 'Pois não sabías? Ai! é verdade, não sabías. Tantas coisas que tu não sabes, meu Carlos! Mas eu te contarei tudo, tudo. Olha: cegou quando... Mas não fallemos agora n'essas tristezas que ja la vão. Em ella te sentindo aopé de si, é o mesmo que tornar-lhe a vista. Tem-m’o ella ditto muitas vezes, e eu bem sei que é assim. Mas ouve: um dia havemos de fallar — nós dois sos — á vontade: tenho tanto que te dizer... nem tu sabes... Agora vamos, Carlos.’

E fallando assim, tomou-o pela mão e sahiu para o valle aberto, froixamente acclarado ja de myríadas de estrellas scintillantes no ceo azul.