CAPITULO XXXI.

 
Quommodo sedet sola civitas. — Santarem. — Portugal em verso e Portugal em prosa. — Exquisito lavor de umas portas e janellas de architectura mosarabe. — Busto de D. Affonso Henriques. — As salgadeiras de Affrica. — Porta do Sol. — Muralhas de Santarem. — Voltemos á historia de Fr. Diniz e da menina dos olhos verdes.
 

Eram mais de dez horas da manhan quando sahimos a começar a longa viasacra de reliquias, templos e monumentos que são hoje toda Santarem.

A vida palpitante e actual acabou aqui inteiramente: hoje é um livro que so recorda o que foi. Entre a historia maravilhosa do passado que todas éstas pedras memoram, e as prophecias tremendas do futuro que parecem gravadas n’ellas em characteres mysteriosos, não ha mais nada: o presente não é, ou é como se não fosse: tam pequeno, tam mesquinho, tam insignificante, tam desproporcionado parece a tudo isto.

Dá vontade de intoar com o poeta inspirado de Jerusalem: ’Quommodo sedet sola civitas!’ Portugal é, foi sempre uma nação de milagre, de poesia. Desfizeram o prestigio; veremos como elle vive em prosa. Morrer, não morre a terra, nem a familia, nem as raças: mas as nações deixam de existir. — Pois embora, ja que assim o querem. A mim não me fica escrupulo.

Passámos a egreja da Alcaçova, que achámos ja fechada; e tomando sempre sôbre a esquerda, fomos pelo que hoje parece uma azinhaga de entre quintas, mas que visivelmente foi n’outras eras a rua mais fashionavel d’esta villa cortezan. Aqui estão quasi aopé da egreja umas portas e janellas do mais fino lavor e gôsto mosarabe que me lembra de ter visto.

E a proposito, porque se não hade adoptar na nossa peninsula ésta designação de mosarabe para characterizar e classificar o genero architectonico especial nosso, em que o severo pensamento christão da architectura da meia edade se sente relaxar pelo contacto e exemplo dos habitos sensuaes moirescos, e de sua luxuosa e redundante elegancia?

De que palacio incantado foram éstas portas tam primorosamente lavradas? Que bellezas se debruçaram d’essas arrendadas janellas para ver passar o cavalleiro escolhido do seu coração? São tam lindas, tam elegantes ainda éstas pedras desconjunctadas, e mal sustidas de um muro insosso e grosseiro que as facea, que naturalmente despertam a mais adormecida imaginação a quanto sonho de fadas e trovadores a poesia fez nascer dos mysterios da edade-média.

Pouco mais adeante está, em um mau nicho escalavrado e feio, um pretendido busto de D. Affonso Henriques, a que attribuem grande antiguidade. Não me fez esse effeito a mim.

Chegámos á porta do Sol; sentamo’-nos alli a gosar da majestosa vista. É majestosa mas triste. A ribanceira que d’alli corta abaixo, até ao rio, é arida e quasi calva: cobrem-n’a apenas, como a mal povoada nuca de um velho, alguns tufos de verdura cinzenta e grisalha de um arbusto rasteiro, meio frutex meio herbaceo que aqui chamam ’Salgadeira’ e que a tradicção diz ter vindo de Affrica para segurar a terra n’estes taludes e precipicios. O aspecto e hábito da planta é realmente affricano e oriental, não tem nada de europeu. Mas ésta derradeira e occidental parte da nossa Hespanha é, geologicamente fallando, ja tam affrica, tam pouco europa, que não sería necessaria a transplantação talvez; e porventura ficou ésta memoria entre o povo do uso que os moiros faziam da planta para esse fim.

Ésta porta do sol dizem que é onde se faziam as execuções em tempos antigos. Foi bem escolhido o sítio; não o ha mais triste e melancholico. Aopé está um torreão quadrado da muralha que ahi fórma canto para seguir depois na direcção de sul a norte. D’este lado as fortificações e lanços de muro estão todas pouco estragadas; e do mirante a que subimos, póde-se formar perfeita idea do que era uma antiga cidade murada.

Sería aqui, dizia eu commigo, que o nosso Fr. Diniz de quem ja tenho saudades — o velho guardião de San’Francisco veio chorar o seu ultimo threno sôbre as ruinas da antiga monarchia? Sería aqui n’este logar de desolação e melancholia que correram as suas derradeiras lagrymas! Elle que ja não chorava, acharia aqui quem desse aos seus olhos as fontes de agua que o coração lhe pedia para se desaffogar dos pezares que o rallavam na aridez e seccura de sua desconsolada velhice?

Passavam-me éstas ideas pelo pensamento quando o historiador que tantos capitulos nos retteve no vale, contando-nos os successos de Joanninha e da sua familia, nos disse:

’Sentemo-nos aqui na sombra que faz ésta muralha e acabemos a historia da menina dos rouxinoes. De tarde vamos á Ribeira saudar a memoria do Alfageme. Ámanhan de manhan está detalhado que iremos ver a Graça, o Sancto milagre, San’ Domingos e San’ Francisco. Concluamos hoje ésta historia.’

’Seja’ respondemos nós.

Entraremos portanto em novo capitulo, leitor amigo; e agora não tenhas medo das minhas digressões fataes, nem das interrupções a que sou sujeito. Irá direita e corrente a historia da nossa Joanninha até que a terminemos... em bem ou em mal? D’antes um romance, um drama em que não morria ninguem era havido por semsabor; hoje ha um certo horror ao tragico, ao funesto que perfeitamente quadra ao seculo das commodidades materiaes em que vivemos.

Pois, amigo e benevolo leitor, eu nem em principios nem em fins tenho eschola a que esteja sujeito, e heide contar o caso como elle foi.

Escuta.