CAPITULO XXXIX.
O final do capítulo antecedente é, bem o sei, um terrivel documento para este processo de scepticismo em que me mandaram metter certos moralistas de requiem de quem tenho a audacia de me rir, d’elles e da sua querella e do seu processo, protestando não me aggravar nem appellar, nem por nenhum modo recorrer da mirifica sentença que suas excellentissimas hypocrisias se dignarem proferir contra mim.
Feita ésta declaração solemne, procedamos.
E quanto a ti, leitor benevolo, a quem so desejo dar satisfação, a ti, se ainda te cansas com essas chymeras, dou-te de conselho que voltes a pagina obnoxia, porque essas reflexões do último capítulo são tam deslocadas no meu livro como tudo o mais n’este mundo. Dorme pois, e não despertes do bello-ideal da tua logica.
É uma descuberta minha de que estou vaidoso e presumido, ésta de ser a logica e a exacção nas coisas da vida muito mais sonho e muito mais ideal do que o mais phantastico sonho e o mais requintado ideal da poesia.
É que os philosophos são muito mais loucos do que os poetas; e de mais a mais, tontos: o que est’outros não são.
Voltemos, voltemos a pagina comeffeito, que é melhor.
Amanheceu hoje um bello dia, puro e sublime. Dorme nas cavernas do padre Eolo aquelle vento sêcco e duro, flagello dos estios portuguezes. Suspira no ar uma viração branda e suave que regenera e dá vida. Mal impregado dia para o passar a ver ruinas! No seio da sempre joven natureza, sob a remoçada espessura das árvores, sôbre a alcatifa sempre renovada das grammas verdes e variegadas boninas, queria eu que me corresse este dia em ocio bemaventurado de corpo e d’alma, sentindo pulsar lento e compassado o coração livre e sôlto de todo impenho, o verdadeiro coração de Horacio,
Solutus omni foenore!
Tomára-me eu no valle outra vez, com a irman Francisca a dobar á porta, a nossa Joanninha a deslindar-lhe a meada; e embora venha o terrivel spectro de Fr. Diniz projectar sua funesta e tragica sombra no idilio d’este quadro suave, que não póde destruir-lhe toda a amenidade bucolica, por mais que faça.
Lá voltaremos ao nosso valle, amigo leitor, e lá concluiremos, como é de razão, a historia da menina dos rouxinoes. Por agora almocemos, que é tarde, e terminemos os nossos estudos archeologicos em Marvilla de Santarem.
Cá estamos no Collegio, edíficio grandioso, vasto, magnífico, propria habitação da companhia — rei que o mandou construir para educar os infantes seus filhos.
Creio que ésta e a de Coimbra eram as duas principaes casas que para isto tinham os Jesuitas em Portugal.
Foram os templarios dos seculos modernos, os Jesuitas. A potencia formidavel e quasi régia que aquelles levantaram com a espada, tinham estes fundado com a doutrina. Riquezas, podêr, influencia, uns e outros as tiveram com applauso e acquiescencia geral; uns e outros as perderam do mesmo modo.
Extinctas e perseguidas, ambas as ordens renasceram no mysterio, e se converteram em associações secretas para conspirarem; ambas tomaram diversos nomes e variadas máscaras para o fazerem mais seguramente.
Ambas em vão!
O predominio, crescente ha seculos, do elemento democratico annulla todas essas conspirações. Sos e sem elle, os reis tinham succumbido... É a alliada natural dos reis a democracia.
O edificio do Collegio é todo philippino, ja o disse: a egreja dos mais bellos specimens d’esse stylo, que em geral sêcco, duro e sem poesia, não deixa comtudo de ser grandioso.
Aqui esteve depois muitos annos o seminario patriarchal, cujas aulas frequentava a mocidade do districto. Hoje leem-se alli outras palestras da cathedra administrativa. É a séde do govêrno civil chamado: corrumper a moral do povo, sophismar o systema representativo é o thema das licções.
Todo outro insino se tirou de Santarem. Falla-se n’um liceu e não sei em que mais ’que ficou na gazetta:’ phrase portugueza moderna que deve supprir a antiga e antiquada de — 'ficou no tinteiro' — por muitas razões, até porque hoje não fica nada no tinteiro senão o senso commum, tudo o mais de lá sai, tudo. E muitas graças a Deus quando não passa ás ballas do impressor para dar a volta do mundo.
Santarem é das terras de Portugal a melhor situada e qualificada para um grande estabelecimento de instrucção e de educação pública. Porque não hade estar aqui o Collegio-militar ou a Casa-pia, ou outra grande eschola, seja qual for? Porque hade ser ésta centralização d’insino em Lisboa? Em que se funda um privilegio dado á capital em prejuizo e á custa das provincias?
Sahimos do Collegio, fomos direitos a San’Domingos, um dos mais antigos estabelecimentos monasticos do reino e que eu tanto desejava visitar. Não sei descrever o que senti quando a inferrujada chave deu a volta na porta da egreja e o velho templo se patenteiou aos nossos olhos. Acabára de servir, não imaginam de quê... de palheiro!
A derradeira camada de palha que apodrecêra, adheria ainda ao lagedo humido, e exhalava um forte vapor mephitico que nos suffocava. Mal podémos ver os tumulos dos Docems e tantos outros interessantes monumentos que abundam na parte superior do templo. A inferior, ou corpo da egreja como dizem, é de um miseravel e moderno anachronismo.
Respirando a custo aquelle ar infecto, todo o tempo que lhe pudesse resistir, quiz approveitá-lo em examinar a principal e mais interessante reliquia da profanada egreja — a capella e jazigo do grande bruxo e grande santo, San’Frei-Gil. Algures lhe chamei ja o nosso Doutor Fausto: e é comeffeito. Não lhe falta senão o seu Goethe.
Vixere fortes ante Agamemnona multi.
Houve fortes homens antes de Agamemnão, e fortes bruxos antes e depois do Doutor Fausto. Mas sem Homero ou Goethe é que se não chega á reputação e fama que alcansaram aquelles senhores. Nós precisâmos de quem nos cante as admiraveis luctas — ora comicas, ora tremendas — do nosso Frei Gil de Santarem com o diabo. O que eu fiz na ’Dona Branca’ é pouco e mal esboçado á pressa. O grande mago lusitano não apparece alli senão episodicamente; e é necessario que appareça como protagonista de uma grande acção, pintado em corpo inteiro, na primeira luz, em toda a luz do quadro.
Então o seu ardente e anciado desejo de saber, os seus vastos estudos, os reconditos mysterios da natureza que descobriu até penetrar no mundo invisivel — a sêde de oiro, de prazer e de podêr que o perseguia e o fez cahir nas garras do espirito maligno — o fastio e saciedade que o desincantaram depois — o seu arrependimento emfim, e a regeneração de sua alma pela penitencia, pela oração e pelo desprêzo da van sciencia humana — então essas variadas phases de uma existencia tam extraordinaria, tam poetica, devem mostrar-se como ainda não foram vistas, porque ainda não olhou para ellas ninguem com os olhos de grande moralista e de grande poeta que são precisos para as observar e intender.
Lembra-me que sempre entrevi isto desde pequeno, quando me faziam ler a historia de San’Domingos, tam rabujenta e semsabor ás vezes, apezar do incantado stylo do nosso melhor prosador; e que eu deixava os outros capitulos para ler e reler somente as aventuras do sancto feiticeiro que tanto me interessavam.
Com todas éstas reminiscencias que me reviviam n’alma, com os admiraveis versos do Fausto a acudir-me á memoria, e com uma infinidade de associações que essas ideas me traziam, caminhei direito á capella do sancto, cheio de alvorôço, e como tocado, para assim dizer, de sua magica vara de condão.
A capella — oh desappontamento! a cappella de San’Frei Gil é um mesquinho rifacimento moderno, do lado esquerdo da egreja, sem nenhum vestigio de antiguidade, nenhum ornato characteristico, pesada, grosseira — velha sem ser antiga — um verdadeiro non-descriptum de mau gôsto e semsaboria. Quem tal dissera?
O tumulo do sancto está elevado do altar n’uma especie de mau throno. Subi acima da degradada e profanada credencia para o examinar deperto.
É de pedra o jazigo; mas ultimamente ve-se que tinham pintado a pedra; não tem lavor algum. — E estava vazio, a loisa levantada e quebrada!..
Quem me roubou o meu sancto?
Quem foi o anathema que se atreveu a tal sacrilegio?..