Para o Irmão José compor a vida de Nossa Senhora, em verso, teve esta ocasião. Tanto que se viu metido naquele cativeiro, ainda que voluntário, antevendo os perigos que o haviam de cercar, tomou por veladora à Virgem mãe de Deus, de quem era muito devoto, e prometeu de lhe compor sua vida, para que o livrasse no corpo e alma de todo o perigo de pecado, que quanto aos perigos da vida corporal bem pouco os temia, quem pedia a Deus lhe fizesse a mercê que acabasse ali a vida de tormentos por seu amor.

Cumpriu seus votos discorrendo por todos os passos da Senhora desde sua puríssima conceição, até à gloriosa coroação no céu, tudo em verso elegíaco, tocando as figuras e as profecias de cada mistério com muita graça e devoção. E tais eram todas as obras que compunha.

O modo de compor era este: depois de cumprir com Deus em muitas horas de oração de dia e de noite, e também com a obrigação de ensinar a doutrina a seus amigos, e lavrar com a palavra divina aquelas duras pedras, ia-se à praia passear, e ali, sem livro nenhum de que se pudesse ajudar, nem tinta nem papel, andava compondo a obra, valendo-se somente de sua rara habilidade e memória extraordinária, e sobretudo do favor da Senhora, por cuja honra tomara aquela devota empresa.

E desta maneira compôs a obra toda, e a encomendou ou fechou no cofre da memória, para daí a alguns meses, depois de sair de cativo, a desenrolar e escrever, como escreveu, na nossa casa de São Vicente. Tem esta obra dois mil oitocentos sessenta e seis dísticos, que fazem cinco mil setecentos e trinta e dois versos.

Confirmam três graves testemunhos, esta história. O primeiro de mais momento, é o do mesmo autor que, depois de escrever a obra, fez a epístola dedicatória à mesma Senhora, dizendo que ali lhe oferecia a obra que lhe prometera escrever, estando cercado das armas dos inimigos Tamoios, e tratando com eles o negócio de paz desarmada. Confessa também que com seu maternal amor, fora sempre amparado de maneira que não perigou a pureza de sua alma nem do corpo. E acrescenta que muitas vezes pediu a Deus lhe concedesse acabar a vida com tormentos por seu amor, mas que não foi ouvido, porque a glória do martírio guarda Deus para seus grandes santos e especiais amigos.

Este é o sentido dos seus versos que se seguem:

En tibi quae vovi, Mater sanctissima, quondam
Carmina, cum saevo cingerer hoste latus.
Dum mea Tamuyas proesentia mitigat hostes
Tractoque tranquillum pacis inermis opus.
Hic tua materno me gratia fovit amore,
Te corpus tutum mensque tegente fuit.
Saepius optavi, Domino inspirante, dolores
Duraque cum saevo funere vincla pati.
At sun passa tamen meritam mea vota repulsam,
Scilicet Heroas gloria tanta decet.

Conselho contra a guerra dos maus pensamentos

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O segundo testemunho é de um padre que se queixava ao Padre José que era perseguido de importunos e feios pensamentos, e pedia-lhe o encomendasse a Deus que o livrasse de tão tentação. O padre lhe respondeu, dizendo; “não é boa esta petição; não peçais a Deus que vos tire a guerra, porque disso tem ele cuidado, e sabe o que há-de fazer por vós, e em que ocasiões nos há-de meter. Mas pedi-lhe que vos ajude, porque esta petição lhe é mui agradável, e ainda nesta vida dá o prêmio”.

E acrescentou mais, falando de si: “como aconteceu, ao que no meio de assaz forçosa e contínua ocasião, com ajuda do Filho e da Mãe, não somente não caiu, mas antes foi certificado de ambos, que nunca mais semelhantes ocasiões lhe seriam causa de caída”. E bem se vê que fala deste tempo de seu cativeiro. E daí a três dias chamou ao mesmo padre e lhe disse: “não tereis mais tais imaginações, mas não afrouxeis nunca na cautela necessária”. O que este padre depois sempre experimentou em si, da maneira que lhe dissera o Padre José.

O terceiro testemunho é este: dali a muitos anos contou o Padre José a um religioso nosso este seu cativeiro, e como os tamoios determinavam de o matar e comer suas festas, e lhe diziam:

“Aparelha-te, José e farta-te de ver o sol, porque tal dia te havemos de matar”. Ao que ele respondia:

“Não me haveis de matar, porque não é ainda chagada minha hora”. Acudiu aqui o religioso, a quem o padre contava:

“Com que certeza dizia V. R. isso, a esses gentios?”.

Respondeu:

“Com a certeza da Mãe de Deus, que não queria que eu morresse, sem primeiro lhe escrever a sua vida, que eu tinha já toda composta, passeando pela praia”. Outras muitas obras compôs em diversos tempos, porque tinha para isso muita graça e facilidade, em todas as quatro línguas que sabia, latina, portuguesa e brasílica. Mudava cantigas profanas ao divino, e fazia outras novas, à honra de Deus e dos santos, que se cantavam nas Igrejas e pelas ruas e praças, todas mui devotas com que a gente se edificava, e movia ao temor e amor de Deus.

Nuvem carregada de água sobre o teatro por três horas

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Entre outras muitas, fez uma obra que se representou em diversas partes, com grande aplauso; e a primeira vez que se apresentou, que foi em São Vicente, mostrou Deus com uma evidente maravilha, quanto lhe contentava.

E foi desta maneira: desejando o Padre Provincial Manuel da Nóbrega, evitar alguns abusos, que com atos poucos decentes se faziam nas Igrejas, encomendou ao Irmão José, que fizesse uma obra devota, para se representar na véspera da Circuncisão. E como, entre o português, tinha alguns passos na língua da terra, ajuntou a ouvi-la toda a Capitania. Senão quando sobre-vém uma grande tempestade, e sobre o teatro se põe uma nuvem negra e temerosa, que despedia de si algumas gotas bem grossas, com que a gente começou a se inquietar e despejar os lugares em estavam. O que vendo o Irmão José assomou a uma janela, e disse: “aquietem-se todos e ninguém se vá, porque não há-de chover até se não acabar a obra”. Tornaram-se a sentar pelo respeito que lhe tinham; fez-se a obra, e a nuvem sempre em cima, muito quieta por espaço de três horas que a obra durou, com muita devoção e lágrimas do auditório. E acabada ela e a gente recolhida em suas casas, começa também a nuvem a dizer seu dito, com tal tormenta de vento e água que a todos pôs espanto, e deu nova matéria de louvar a Deus, e de terem a seu servo em maior reputação.