O Rio de Janeiro está no cabo da zona tórrida, da banda do sul, em vinte e três graus de baixo do trópico de Capricórnio, pelo que participa mais do frio, que todas as outras terras que na costa do Brasil são habitadas.

A baía é grande, cheia de muitos ilhotes; tem em sua comarca pau-brasil e muitos engenhos de açúcar, e terras para criações e mantimentos, e mostras de minas e metais em que os homens confiam. A barra é tão estreita que uma meia espera alcança a outra banda; tem seis fortes: dois na entrada, e quatro que cercam a cidade. Tem mais hoje outras quatro fortalezas, que são quatro mosteiros de religiosos de não menos importância: São Bento, Nossa Senhora do Carmo, São Francisco e o nosso Colégio, em que se lê uma classe de ler e escrever, outra de Latim, e a terceira de casos de consciência, quando há ouvintes, além de se exercitarem os mais ministérios, que na Companhia se costumam, de pregar, confessar e doutrinar os escravos e índios. Foi esta terra a mais trabalhosa de conquistar e aquietar que houve em todo o Estado, como se verá na presente relação, que foi tirado, no principal, do livro do Padre José pouco antes alegado, do capítulo vinte e dois por diante.

Nicolau de Villegainon

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Reinando em Portugal El-Rei dom Sebastião, e governando o Reino, sua avó, a Rainha dona Catarina, por não ter El-Rei idade, pelos anos de mil quinhentos e cinqüenta e seis, veio de França uma capitão, com grossa armada, e ganhando a vontade dos naturais com dádivas e bom tratamento, foi deles ajudado a fundar uma fortaleza, com sua cisterna e duas casas, de que uma servia de pólvora, tudo feito na piçarra ao picão, em uma ilha pequena dentro da baía, com boa artilharia e presídio de soldados. Chamava-se este Capitão Nicolau Villegainon.

E os naturais, moradores daquelas costa eram os tamoios, gentio, feroz e guerreiro que povoava desde o Cabo Frio até abaixo do Rio de Janeiro.

Tiveram estes comércio e boa correspondência com os portugueses que moravam na Capitania de São Vicente, que está quarenta léguas abaixo do Rio, porém sendo deles injustamente salteados e cativos algumas vezes, facilmente fizeram amizade com os franceses, que, ajudando aos tamoios com armas e ardis, e valendo-se da multidão deles, à sombra da nova fortaleza começaram a molestar e perseguir a Capitania de São Vicente com dois gêneros de guerra: uma de armas contra a vida corporal, outra de heresias contra a vida da alma, e de maior perigo. E desta diremos primeiro.

João de Bolés, Calvinista

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Posto que este capitão era católico, e comendador de Malta, contudo muitos dos seus eram hereges calvinistas; e entre eles João de Bolés, ao qual o seu general castigar por esta causa, o herege com outros três fugiu para São Vicente.

Era ele bom humanista latino e grego, e tocava de hebraico, muito visto na Sagrada escritura, mas entendia conforme a perversa interpretação dos hereges. Começou logo, meio em segredo e meio em público, a falar com pessoas ignorantes, desfazendo na santidade e uso dos sacramentos e das imagens, e na autoridade das Bulas, indulgências e do Sumo Pontífice; e como falava bem espanhol, e entremetia suas graças, com o gosto de conversação ia também lavrando o veneno de sua péssima doutrina, de modo que já tinha ganho com o vulgo ignorante, e teve nome de grande sábio. Quis Deus que se achasse naquela comarca o Padre Luiz da Grã, na sua casa de São Paulo, o qual sabendo o que passava, acudiu logo às vilas de Santos e São Vicente, e começou assim com pregações e disputas públicas, como em práticas particulares, avisar a todos se guardassem do herege, com que o povo tornou em si e o inimigo se recolheu. O qual vindo um dia a visitar o padre à outra vila, achou-o que estava para subir ao púlpito; e o padre em o vendo, subitamente mudou a pregação, acomodando-a ao novo ouvinte, como se toda a semana estudara para aquele fim. Depois praticou familiarmente com ele, e achou que se lhe mostrava em tudo católico, porém sabendo por outra parte que a peçonha ia lavrando e tomando mais forças, fez com a justiça eclesiástica o mandasse preso à cidade da Bahia, como mandou, e desta maneira se apagou este fogo da Capitania de São Vicente.

Canoas de Guerra

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A guerra temporal continuavam os tamoios em suas canoas de guerra. Das quais é bem digamos aqui uma palavra.

Canoa de guerra é uma embarcação muito ligeira toda de um pau, cavado por dentro, de cinco até sete palmas de boca, e de um comprimento de sessenta até oitenta palmos; as ordinárias levam até quarenta remeiros; remam em pé com remos de pá e cada um leva seu arco, e seu massarão de flechas, com que pelejam quando é tempo, e se amparam com os remos, além de outros índios que vão na proa e popa, e alguns pelo meio, com suas espingardas; e assim são muito temidos dos inimigos, porque acometem qualquer lancha e navio que não andam muito longe de terra.

Com estas canoas, como digo, salteavam os inimigos da Capitania de São Vicente, levando homens, mulheres, escravos e crianças que estavam pelas fazendas descuidados do perigo; a uns matavam, a outros levavam para os matarem nas aldeias em suas cruéis e bárbaras festas.

Castigo de Deus

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Sucedeu que uma vez tomaram dois índios, pai e filho. E os levaram vivos para os comerem, em terreiro. Rogou-lhe o pai os não matassem, dando por razão que eram dos padres que falavam as coisas de Deus, e os havia de consumir. Zombaram disso os pérfidos bárbaros, e os mataram e comeram; mas não tardou muito o castigo do céu, porque entrou a mortandade com eles, começando pelo seu capitão, de modo que, brevemente, se consumiu toda esta aldeia e se despovoou aquela parte do sertão.

Serviu esta guerra dos bárbaros para muitas pessoas se chegarem mais a Deus, e freqüentarem mais os sacramentos, em especial mulheres casadas, que andavam com muito fervor continuando a doutrina, confessando-se e comungando cada oito dias. E assim quis Deus Nosso Senhor, mostrar em algumas delas os afetos de sua graça, dando-lhes forças para darem as vidas pela guarda da castidade.

Duas mulheres morrem pela castidade

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Uma destas era viúva, a qual depois de se confessar, um domingo, indo-se para a fazenda, disse a suas amigas: os tamoios me hão de tomar, mas eu me não hei-de deixar viva.., porque não usem comigo como com outras. Daí a dois ou três dias dão os contrários em sua casa, e embarcando a muitos cativos em suas canoas, esta mulher lhes resistiu tão valorosamente que, por mais que fizeram, nunca a puderam meter viva nas canoas, e assim a deixaram ali morta com muitas feridas.

Outra moça casada, e assinalada em virtude entre todas, mui contínua nas pregações e freqüência dos sacramentos, depois de comungar um domingo, disse a suas parentas, indo-se para sua fazenda: os tamoios me levarão em suas canoas, e passarei brandando por tal parte, e ninguém me acudirá; e assim foi que vieram e levaram-na com outras pessoas, como tinha dito, sem nenhum remédio.

O tamoio que a levava a entregou a seu pai, e ela, posto que sabia que, se consentisse, teria vida, contudo resistiu varonilmente a esta maldade. E ainda que importunada por muito tempo pelo bárbaro, e aconselhada de outras, todavia ajudada com a Divina Graça, esteve sempre constante em seu santo propósito e firme resolução; e assim a mataram, querendo ela antes perder a vida que a castidade, e pôr em risco a salvação.