Onças

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Na comarca do Rio de Janeiro, desta banda do Norte sobre o Cabo Frio, há uma praga de onças de diversas castas, mui cruéis, umas pela cinta grossas e ruivas ou pintadas, outras negras pelo meio, e delgadas que são tigres verdadeiros; também dizem que há leopardos, todos mui bravos e ferozes. Passando por esta paragem o Padre José um dia, com alguma gente, depois de feita a choupana e agasalhados todos, se saiu de noite fora da casinha, e se deteve por grande espaço de tempo; tornando a entrar, tomou um cacho de bananas, e partindo-o o lançava fora, e dizia pela língua da terra: “tomais vós outras”. Sem se ver com quem falava.

Perguntando-lhe o irmão, seu companheiro, a quem dava as bananas, disse que àquelas suas companheiras. E quando foi pela manhã viu o rastro de duas onças, que estiveram com ele assentadas no lugar em que o padre estivera em oração, e depois de acabada o acompanharam até à porta da choupana. Outra vez, estando o padre naquela pescaria de que por vezes falamos, apareceram da banda de além, de um braço de água, duas onças, e se puseram a olhar para a gente que estava salgando o peixe. Disse então o irmão que folgara de as ir lá ver; o padre lhe respondeu que acabando o que estava fazendo, as iria ver.

Neste comenos se iam dali as onças, mas o padre lhes bradou, pela língua brasílica, que tornassem dali a pouco para as irem ver. Elas obedecendo, tornaram ao tempo em que os índios tinham acabado o serviço. E as foram ver de perto, em duas canoas, estando elas quedas, e o padre lhes lançou o quinhão de peixe que lhes levava. E assim se foram contentes.

Bugios

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Acabada a pescaria, se foi o Padre José com seu companheiro e gente, para a aldeia de São Barnabé; e os índios no caminho mataram um bugio grande de barba, com uma flechada; e logo ao grito que deu, acudiram outros muitos, e os índios começaram a matar neles para comerem. O padre lhes mandou que não matassem mais, mas que se fossem desenfadando com eles de palavra. E aos bugios disse na língua da terra: “vós outros acompanhai vossos defuntos”. O que eles fizeram, gritando e pranteando a seu modo, falando e fazendo momos aos índios, uns pelo chão e outros saltando de árvore em árvore, por espaço de duas léguas até chegarem perto da aldeia. Então lhes tornou a dizer o padre que não fossem mais por diante, porque os não matassem os índios da aldeia, a que logo obedeceram, não passando mais dali.

De duas víboras

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Indo o padre por um caminho, a pé e descalço, como costumava a caminhar, encontrou com uma víbora, e o companheiro se afastou depressa. Chamou-a o padre, e disse à víbora que esperasse, e esperou; e chegando a ela lhe pôs o pé em cima, dizendo: “morde-me aí esse pé, e vinga as injúrias que tenho feito a teu Criador”. Levantou ela o colo e meneou a cabeça para uma e outra parte, mas não no mordeu. Deixou-a então o padre e disse-lhe: “vai-te embora, não faças mal a ninguém”.

Semelhante caso aconteceu ao padre com outra víbora, como relata em uma certidão Luiza Fernandes, dona viúva, moradora na cidade da Bahia, por este modo.

Estando ela em sua fazenda, se acharam um dia uns índios da aldeia de Santo Antônio e m sua casa, e armando entre si práticas sobre as coisas do Padre José, entre outras coisas contou esta um deles, por nome Cristóvão; vindo, diz ele, com outros muitos, em companhia do Padre José, achamos no caminho uma víbora muito peçonhenta; fugimos dela todos, mas o padre nos disse que não fugíssemos; tornamos.

E o padre chamou a víbora e vei a seu chamado; assentou-se e tomou-a com sua mão, e a pôs no regaço, afagando-a; tomou disto motivo para falar aos índios de Deus e lhes encarecer como todas as coisas, até aquele animal tão feroz, obedeciam a quem obedecia e guardava os mandamentos de Deus. E passado algum tempo nesta prática, deitou uma bênção à cobra, e mandou fosse quietamente, como fez; e os índios continuaram seu caminho com o padre, maravilhados do que viram e louvando a Deus nas maravilhas de seu servo.

Do milagroso caso da maré

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Darei fim a este capítulo com uma maravilha maior, e mais digna de se dar por ela muitas graças a Deus Nosso Senhor, que todas as passadas, que à obediência dos brutos animais, porque obedecerem uns homens a outros, convencidos da razão ou maior autoridade, coisa ordinária é; respeitarem os animais bravos ao homem, convencidos de benefícios, algumas vezes se viu. Porém ter acatamento e guardar decoro ao homem, o mar e curso da maré, é milagre singular, pois nunca soube este elemento obedecer mais que a seu Criador, ou a algum homem por seu especial mandado.

O caso foi este: estando o padre naquela pescaria, desapareceu um dia, sem darem fé dele, por espaço de três ou quatro horas. Foi-o a buscar o companheiro por diversas partes, até que foi dar com ele assentado na praia, em lugar em que chega a maré de baixa-mar, ou de maré vazia, no qual lugar, segundo mostrava p rastro, tinha o padre passeado.

Começou de encher a maré, foi crescendo por espaço de seis braças, pouco mais ou menos, e sendo a praia igual, contudo a água não tocou aquele espaço em que o padre passeara, e onde estava assentado, antes fez um modo de parede, assim da banda do mar como das ilhargas.

Receiava o companheiro de entrar por aquele boqueirão, cercado com muros de água; bradava de fora, e vendo que o padre não acudia, fazia estrondo com paus para o espertar. E quando viu que nem isto bastava, se animou e entrou pelo boqueirão dentro, pegou do padre e o espertou, dizendo: “padre, vamo-nos que é tarde”.

Levantou-se o padre, e começou a caminhar e o irmão detrás, mas, sentindo que a água lhe vinha tocando os calcanhares, se pôs diante do padre, que lhe disse: “não sabeis que os ventos e mares obedecem a Deus?” E tanto que saiu fora, a água encheu o boqueirão vazio, e ficou toda igual.