Vida e Feitos D' El-Rey Dom João Segundo/CLVI
Chegou a frota com os negros a terra de Manicongo e ho dito rey com toda sua corte que he bem grande, ouve grande prazer e contentamento com a vista dos seus fidalgos que ja davam por mortos ou cativos sem esperança de os mais ver. E vendo-os em trajos tam honrrados tornados com tanta paz e saude, era em todos o prazer e alegria tanta como se todos ressuscitaram da morte à vida. E com a nova de sua tornada que foy pera todos de grande espanto e se espalhou por muitas partes, vinha tanta gente aa corte que se nam podia estimar porque os negros que vieram eram homens nobres e muito conhecidos. E el-rey de Congo com a embayxada e presente se avia por tam bem aventurado que se nam conhecia, e mandava chamar os grandes senhores seus vassallos pera lhe dar parte de tanta gloria, fazendo aaquelles seus fidalgos que muy a meude em pubrico com altas vozes dissessem as vertudes, bondades e grandezas d' el-rey de Portugal e dos seus reynos, e da honrra e humanidade com que os tratara, e as muitas e muy grandes merces com que os despedira, e assi o presente que lhe mandara. E a todos rogava muito que por amor delle se alegrasem com tanta honrra sua, e que por honrra d' el-rey de Portugal fezessem muitas festas e prazeres. E as palavras e amoestações pera a fee de Nosso Senhor Jesu Christo recebeo com tanta eficacia que parecia que Deos as espritara nele; que com o muito desejo que jaa tinha de sua salvaçam nam dava lugar que o embaixador e frota de Portugal se partisse, polo muito contentamento que levava em falar com os christãos. E depois de com muyta graça e fervor mostrar desejo de querer ser christão, despedio o capitão e navios. E nelles mandou a el-rey por seu embayxador Caçuta que primeiro a estes reinos viera, homem mui principal e a elle muy aceyto que depois de ser christão ouve nome Dom Joam da Silva, homem de bom natural e muy bom christão, amigo de Deos; e trouxe a el-rey hum presente de muitos dentes d alifantes e cousas de marfim lavradas e muitos panos de palma bem tecidos e com finas cores. E o principal de sua embaixada era beijar-lhe as mãos polo cuydado que tevera de lhe honrrar em sua vida o corpo e lhe precurar a salvaçam pera sua alma. E que elle em sua vontade avia el-rey por tam bem aventurado e de tanto coraçam e saber que ele avia por boaventura sua reger-se per suas leis e sobre sua fe se salvar; porque aquela e nam outra avia de ser a verdadeira pois Deos nela o criara. E que nam podia ser que o criador criaria cousa tam grande, tam boa e tam perfeita como elle era pera o condenar, e que por tanto cria o que lhe dezia e desejava de vontade de o fazer; polo qual lhe pedia muyto por merce e polo de Deos que aquilo pera que o convidara que era receber a agoa do santo bautismo nam lhe tardasse mais. E que pera isto pois seus reynos eram tam apartados huns dos outros que em pessoas se nam podiam ver, lhe pedia muito por merce que lhe mandasse logo frades e clerigos e todas as cousas necessarias pera elle e os de seus reynos receberem agoa de bautismo. E assi lhe mandase pedreyros e carpinteiros pera lhe fazerem ygrejas e casas d' oraçam como as destes reinos; e tambem lhe mandasse lavradores pera lhe mansarem bois e lhe ensinarem aproveitar a terra; e assi algũas molheres pera lhe ensinarem as do seu reyno a amassar pão porque levaria muito contentamento por amor delle que as cousas do seu reyno se parecessem com as de Portugal. E assi enviou dizer a el-rey outras cousas como homem muy prudente e pera começo de christandade muy necessarias, antre as quaes foy que elle lhe pedia por merce que certos moços pequenos de seu reyno que lhe mandava, lhos mandasse logo fazer christãos e ensinar a ler e escrever e aprenderem muyto bem as cousas de nossa fee, pera que estes em tornando em seu reino por saberem ambas as lingoas e custumes que saberiam, poderiam a Deos e a ele muito servir e aproveitar a todolos de seu reino.
Com a qual embaixada o dito embaixador chegou a el-rey estando em Beja no começo do anno de quatrocentos e oitenta e nove. E com os requerimentos e tençam do rey de Manicongo el-rey ficou tam ledo e tam contente de si dando tantos louvores a Deos, por cousa de tanto seu serviço como esta era quanto hum muito catolico principe como elle podia fazer. E recebeo o embaixador com muita honrra e gasalhado, e logo per suas vontades elle e os de sua companhia com muita solenidade foram christãos, e el-rey e a raynha foram padrinhos e assi alguns senhores. E depois de feitos christãos quis el-rey que estevessem nestes reinos até o fim do ãno de quatrocentos e noventa pera que neste tempo soubessem bem a lingoajem e aprendessem os artigos da fee e os mandamentos divinos e todo o mais que pera serem christãos cumpria. E sendo ja prestes a frota pera yr ao dito reino de Congo, el-rey mandou por seu embaixador ao dito rey de Manicongo Gonçallo de Sousa fidalgo de sua casa e capitam-mor da frota que em ajuda do dito rey tambem enviava e com elle o dito Dom Joam da Silva embaixador, e em sua companhia muitos frades da ordem de Sam Francisco e alguns deles bons letrados e de boa vida. E com elles mandou muitos e ricos ornamentos e cruzes, calizes, castiçaes, e galhetas, campaynhas, e sinos, e orgãos, e muitos livros, e todalas outras cousas necessarias pera ygrejas tudo em muita perfeiçam. E da maneira que se avia de ter com fazerem o rey christão e os de seu reino teve sobre ysso conselho, e do que se determinou com theologos levaram os frades muy clara estruçam. E ordenado o presente pera el-rey e os navios prestes partiram de Lisboa segunda-feira dezanove dias de Dezembro de mil e quatrocentos e noventa; e sendo junto com as Ylhas do Cabo Verde ho dito Gonçalo de Sousa capitam-moor morreo de peeste porque aa sua partida morriam disso em Lisboa; e assi faleceo apos elle o dito Dom Joam da Silva e outro negro christão, com as quaes mortes os da armada foram mui anojados; e ficou por capitão-mor da dita armada Ruy de Sousa primo com yrmão do dito Gonçalo de Sousa; e seguindo sua viajem aportaram ao Rio do Padram no reino de Congo por onde aviam d' hir onde el-rey estava. E chegaram a este rio a vinte nove dias de Março de mil e quatrocentos e noventa e hum, e era ahi senhor hum tio d' el-rey que se chamava Monisonho homem de cincoenta ãnos e muito grande senhor e de muito bom saber e estava duas legoas do porto onde lhe foy recado da frota e pedido que o mandasse dizer a el-rey. E o dito Monisonho com mostranças de muyto prazer e grande acatamento d' el-rey de Portugal sabendo como o Dom Joam da Silva era morto e christão disse que morrera bem aventurado pois morrera christão e em serviço de taes dous reis; e que por amor e reverencia de tam virtuoso e poderoso rey como era el-rey de Portugal ele queria loguo fazer tamanhas festas como se el-rey seu senhor fosse presente; e pera ysso ajuntou logo muita gente e a mais honrada de sua terra, homens e molheres, e a seu modo fez as mayores festas que antre eles avia. E querendo-se os christãos que lhe levaram o recado vir, disse que nam se agastassem que ele queria levar o recado ao capitão e ver o que nenhum de sua linhajem vira, e sobre tudo queria ser christão porque ho rey em que Deo s posera tanta virtude e grandeza de coraçam como em el-rey de Portugal elle queria adorar quem elle adorasse e crer em quem ele cresse; e depois de com isto despedir os messageiros christãos partio pera o porto onde estavam os navios acompanhado de tres mil archeyros e muitos tangeres, e muitos carregados com mantimentos porque antre elles nam há bestas; e o capitam o sayo a receber fora dos navios acompanhado de boa gente bem armada com muitas espingardas, beestas, bombardas; e Monisonho o recebeo com muito prazer e alegria e grande gasalhado, e lhe mandou dar muita abastança de mantimentos, e mandou apregoar que toda a gente ao outro dia fosse ahi junta pera festejar el-rey de Portugal, a qual veo muita infinda, e pedio ao capitão que o quisesse fazer christão, isto com tanta vontade e devação que lhe disseram que si, e logo ordenaram casa de madeira muito bem concertada pera isso; e tudo prestes ele fez hũa falla aos seus em que lhes disse que no mundo nam avia homeẽs bem aventurados nem sabedores senão os brancos, e que na perfeyçam de suas cousas o veriam, por crerem no Deos verdadeyro lhe dava suas cousas perfeytas e de verdade; polo qual lhes fazia saber que elle se queria tornar christão, e que lhe nam dava que por ysso lhe quesessem mal; e todos lhe louvavam sua vontade e pediram que tambem os fizesse christãos que elles o queriam ser com elle. E elle lhe respondeo que lhe aprazia, porém que seria depois de o ser el-rey seu senhor que por nam saber se o averia por mal não queria agora que o fosse mais que elle e hum seu filho; e elles lho teveram muito em merce com grande prazer e alvoroço.
E dia de Pascoa de Ressurreição tres dias d' Abril do ãno de noventa e hum, o dito Monisonho com grande devaçam e tudo ricamente concertado foy feito christam ele e hum seu filho. E ele quis aver nome Dom Manoel por amor do duque dizendo que pois era duque como ele e parente muy chegado a el-rey queria ter o seu nome e ao filho chamaram Dom Antonio. E acabado o oficio os frades com muita devaçam e lagrimas o levaram com precissam a sua casa onde foy com tanta devaçam e alegria que disse aos seus que nunca em sua vida tevera tal prazer e contentamento como entam.
E logo o dito Dom Manoel mandou dar conta de tudo a el-rey, e como elle e seu filho somente eram feitos christãos; e el-rey lhe respondeo logo por hum grande senhor primo com yrmão do principe agradecendo-lhe muito a honrra e gasalhado que fezera aos christãos d' el-rey seu yrmão e amigo e que folgava muito elle ser christão como ele o esperava ser; e que por o assi fazer que elle o estimava por grande e asinado serviço lhe fazia por ysso merce de trinta legoas de terra ao longo da costa do mar e dez legoas por o sertão com todolos vassallos e rendas della, encomendando-lhe muyto ha frota e os christãos, e que tudo lhe dessem de graça em tanta abastança como se fossem seus filhos. E o dito dia de Pascoa se fizeram muitas festas; e à tarde o dito Dom Manoel se apartou com hos frades e lhe pedio que lhe ensinassem o caminho de sua salvaçam; os quaes folgaram muito de sua confirmaçam e fee, e lhe disseram sobre ysso todo o necessario, o que elle tomou como homem de muita prudencia e muyta fee; e logo mandou por todolos ydolos de sua terra, e perante os frades hos mandou todos queimar e derribar e desfazer todas as casas e altares em que estavam. E lhe disseram os frades missa cantada com orgãos e ricos ornamentos que levavam pera o rey; e em grande maneira folgou de a ouvir e esteve a ella com muyta devação, e sempre pedia aos frades que lhe ensinassem as cousas que era obrigado fazer pera poder merecer salvaçam de sua alma; e este dia em que primeiro ouvio missa por honrra della mandou que em sua terra pera sempre se guardasse por dia sancto; e outras cousas fez e disse como homem que nacera christão, o que certo parecia ser mais por milagre de Nosso Senhor Deos que por outra nenhũa razam.