Vida e Feitos D' El-Rey Dom João Segundo/LXXXI
Neste anno de mil e quatrocentos e oytenta e nove polo muyto desejo que el-rey tinha da conquista d' Africa, e assi polla cruzada que pera ysso lhe fora concedida de que ja tinha recebido muyto dinheiro, cuidando muitas vezes como melhor o poderia fazer, e mais a serviço de Deos e acrecentamento de sua honrra e estado, ordenou de fazer hũa vila com sua fortaleza em Africa polo rio acima de Larache, com fundamento que dali com seus fronteyros e gente d' armas que sempre nella teria, e com ajudas das outras cidades e vilas que lá tinha e aos mouros foram tomadas, se faria muyta guerra a Feez, e Miquinez, Alcacer Quebir e toda aquela terra de que muita parte se poderia per força conquistar, ou ao menos constranger a pagarem grandes e ricos tributos. E depoys de ter mandado muytas vezes ver o dito rio e sitio da terra determinou fazer a dita villa; e mandou logo pera ysso fazer prestes sua armada, com muita gente, muytos oficiaes, muita artelharia, muita pedra, e madeyra lavrada, muyto tijolo, e cal, e ferramentas, e todallas cousas necessarias em grande avondança. E no começo do mes de Julho mandou logo partir a dita armada, e por capitam-mor dela Gaspar Jusarte, a fazer e fundar a dita villa a que mandou poer nome a Graciosa. E nam levava muytos navios nem gente sobeja por lhe parecer que por entam nam seria mais necessaria, crendo que em quaesquer afrontas que dos mouros sobreviessem se poderia pollo rio socorrer e prover, cuydando que o dito rio se navegaria em todo tempo com caravelas e navios. E pera milhor aviamento e socorro de tudo, e mais em breve se poder fazer, el-rey com a raynha e o principe e toda sua corte se foy a Tavilla onde cada dia de tudo o que se passava recebia muytos avisos. E pera se a dita fortaleza logo fazer mandou el-rey muyta e honrrada gente de sua corte e começou-se com muyta deligencia e pressa a lugares de pedra e cal, e a lugares de madeira e paliçadas fortes pera que com mays brevidade fosse cercada.
E sendo disso avisado Moley Xeque rey de Fez junto de cujas terras ha dita fortaleza se fazia, porque do tempo da tomada d' Arzila nas pazes que o dito Moley Xeque fez, a dita terra com outras ficou com Portugal segundo nas ditas pazes se contém, consirando o dito Moley Xeque que se logo no principio o nam empedisse que seria causa de sua perdiçam, fez logo sobre isso ajuntamento geral com os alcaides e principaes de seu reino, e com os alarves e enxouvios e colotos seus comarcãos. E todos sem algũa deferença acordaram de virem cercar como logo cercaram a dita villa em que el-rey de Fez veo em pessoa e com ele Moley Hea seu filho mayor, e com quarenta mil de cavallo e outra muyta gente de pee sem conto poseram de todalas partes cerco aa dita villa; e tambem não leyxaram livre o dito rio de hũa parte nem da outra contra a foz, por que da terra empedissem aos christãos qualquer socorro que por elle lhe fosse. E por muita gente dos mouros começar a vir sobre a dita fortaleza, e assi por o dito Gaspar Jusarte adoecer, e a causa ser de mais peso do que se cuidou, mandou el-rey a Dom Joam de Sousa do seu conselho pessoa muyto principal e muyto valente cavalleiro, com muyta mays gente pera na dita fortaleza ficar por capitam. E com a gente que levou e a que na dita fortaleza estava, forom por todos mil e quinhentos fidalgos e cavaleiros todos da casa e livros d' el-rey e a frol de toda a corte. E depoys crecendo mais o poder dos mouros, e sendo jaa el-rey enformado no certo do segredo do rio e do perigoso sitio da dita fortaleza, por lhe certificarem que em nenhũa maneyra se podia soster, ordenou mandar Fernam Martinz Mazcarenhas capitam dos ginetes e da guarda, e Dom Diogo d' Almeyda que depois foy prior do Crato, e Dom Martinho de Castelbranco veador de sua Fazenda que depois foy conde de Villa Nova, todos tres homens de muita autoridade e valentes cavalleiros e muy aceitos a el-rey, pera com sua tornada depois de tudo muito bem verem, se enformar delles e determinar o que ouvesse de fazer se soste-la ou deixá-la. E sendo elles na dita villa da Graciosa, veo sobr' elles Moley Xeque rey de Fez com todo seu poder; e elles parecendo-lhe que pollo que cumpria a suas honrras e a serviço d' el-rey nam deviam de deixar o dito cerco, ficaram lá e responderam a el-rey por escripto. No qual tempo Dom Joam de Sousa capitam da dita villa adoeceu aa morte, de maneira que nam podia acudir a cousa algũa que comprisse, e por nam morrer por mingoa de fisicos e cousas necessarias a sua saude, ordenaram todos que se viesse logo curar a Portugal. E porque Dom Joam estava de maneyra que nam podiam al fazer, vendo que compria ficar capitam na dita villa, e como muito prudente vendo que os ditos Dom Diogo, Dom Martinho, e o capitam Fernam Martinz eram taes pessoas e de tanto merecimento que deixando o carrego a hum os dous ficariam agravados, lhe fez sobre isso hũa fala e disse que antre todos deytassem sortes quem ficaria por capitão, o que assi fezeram e a sorte cahio em Dom Diogo d' Almeyda, a que logo Dom Joam entregou a villa e se veo curar ao reino, e todos os outros sem algũa deferença o ouveram por capitam. E os mouros vendo a pouca gente dos christãos em comparaçam da sua, e vendo o pequeno repairo da vila tinham por certo que nos primeiros combates que muy rijamente lhe dessem logo per força os tomariam com mortes e cativeiros de todos. E com esta esperança combateram a villa muyto fortemente per muitas partes; e vendo o grande dano e estrago que os christãos nelles fizeram com suas armas e furiosos tiros de fogo, e o forte repairo que na fortaleza tinham feito pera sua defensam, e conhecendo a bondade e grande valentia de seus corações que tinham nam somente pera se defender, mas ainda pera lhes offender, jaa desesperados deste primeiro fundamento, determinaram pera os poder vencer poer-lhe o dito cerco mais afastado como logo poseram, e em hũa parte do rio que abaixo da fortaleza dava vao, o atravessaram com hũa muyto forte estacada dobrada e chea toda de cestos de pedra antre hũa e a outra pera que ho rio per navios grandes nem per barcas pera cima contra ha villa se nam podesse navegar, com que os christãos de todo fossem de socorro por agoa desesperados. E por defensam desta estacada por que a nam desfizessem poseram junto com ela de hũa parte e da outra do rio muitas bombardas grossas e outros tiros de fogo, os quaes eram sempre guardados de gente sem numero, fazendo com isto suas contas que os christãos de cansados e vencidos de doenças e fome, e nam tendo esperança de socorro se dariam e deixariam captivar. E como os da villa disto foram certificados, ouve antre elles algũa confusam, e foy aynda mais quando souberam que Ayres da Silva camareyro-moor d' el-rey, que era capitam-mor da frota que estava na foz do rio, com todas suas forças e deligencias que nisso pôs, nam podera desfazer nem chegar aa dita estacada polla grande resistencia dos mouros. E porém porque os mais eram fidalgos e de esforçados corações nam cayram em desmayo nem fraquezas, mas cobraram vivo esforço com que se fortaleceram e proverão em seus mantimentos e provisões pera se defenderem e manterem o mais tempo que fosse possivel, sendo muito confiados na bondade e grandeza d' el-rey que quando comprisse em pessoa os socorreria.
E de todo este caso foy el-rey logo avisado em Tavila com que foy posto en grande pensamento; porém como rey que nas cousas da fortuna fora muitas vezes vitorioso e nunca vencido, deu logo grande aviamento a mandar mais navios e mays gente, com mais armas e artelharia pera com Ayres da Silva cometerem de desfazer per força a estacada e repayros do rio, pera hũa vez as pessoas dos cercados ao menos se salvarem, que era o que sobre tudo mais desejava. Porque polla enformaçam que ja a este tempo tinha do lugar e a terra ser naturalmente doentia e o rio se nam poder em todos tempos navegar atee a dita fortaleza, ja tinha assentado que em caso que o dito lugar fora feyto e nam cercado de o mandar despovoar e derribar.