Em Evora antes das festas do casamento do principe Dom Afonso, foy el-rey aa Relaçam hũa sesta-feira como sempre fazia; e na mesa grande era julgado hum homem à morte por matar outro e foy trazido diante d' el-rey; e por saber que era dado sentença que padecesse disse: "Senhor, quatorze annos há que sam preso e em quanto tive fazenda pera peitar sempre me alongaram meu feito e agora que ja nam tenho cousa algũa me julgaram à morte; e se entam me mataram eu soo padecera, e minha molher e filhos ficara-lhe fazenda pera se manterem; e agora, senhor, matam todos poys tudo gastey por alongar a vida. Olhe vossa alteza ysto com olhos de piadade e de tam virtuoso rey como he". El-rey ouvindo as palavras ficou muyto triste e vio o começo do feito; e quando achou que dezia verdade e que avia quatorze annos que era preso disse aos desembargadores: "Melhor merecieis vosoutros todos ha morte que aqueste pobre homem, mas quem ha-de matar tantos?"; e chamou entam o homem e disse que lhe perdoava livremente, e que ele mandaria à sua custa por perdam das partes; e assi o fez e o mandou logo soltar; e disse-lhe que em quanto nam viesse o perdam que se fosse aas obras dos paços que ahi lhe dariam cada dia dous vintens; e o homem lhe beijou a mão e o fez assi. E el-rey dahi a tres dias foy ver as obras e vio lá o homem com hũa muito grande barba que avia quatorze ãnos que nam fezera, e disse-lhe: "Nam soes vós o a que eu dey a vida?"; respondeo: "Senhor, si"; disse el-rey: "Poys porque nam fazeys essa barba?";e o homem disse: "Senhor, por nam ter dinheiro que dar a quem ma faça". E el-rey lhe mandou dar ahi logo dous mil reaes e disse-lhe: "Ora yde logo fazer a barba e nam vos veja eu mais com ela"; e o homem se lançou a seus pes pera lhos beijar chorando com prazer e rogando a Deos por sua vida e seu estado.