X

O enterro

 

No dia seguinte, diante do caixão já fechado, senti-me penetrado duma indifferenca glacial. Repontava em mim, de onde em onde, uma pontinha de aborrecimento. O domingo estava maravilhoso, glorioso de luz, e os ares eram diaphanos estava seductor e sorria abertamente, convidando a gozal-o em passeios alegres...

O silencio da sala, aquellas velas morticas, os semblantes contrafeitos e estremunhados das pessoas presentes, diante da soberba luz do sol, da cantante alegria da manhan, pareceram-me sem logica.

Eu me aborrecia e fumava. Afinal, veiu a hora do sahimento. A agglomeração augmentou na porta. Algumas mulheres choravam. Gonzaga de Sá ia e vinha, tomando as últimas disposições. Fechou-se o caixão. Houve um pequeno ruído, seco, vulgar, exatamente igual ao de qualquer caixa que se fecha... E foi só!

Fomos levando o cadáver pela rua empedrouçada, trôpegos, revezando-nos, aborrecidos e tristes sob o claro vitorioso olhar de um firme sol de março. Pelo caminho (era de manhã), os transeuntes mecanicamente se descobriam, olhavam as grinaldas, o aspecto do acompanhamento, medindo bem de quem era e de quem não era. Meninas de volta da missa e passeios consequentes, alegres, louçãs, passavam exuberas de vida, contemplavam um pouco o séquito com um rápido olhar piedoso e, depois, continuavam a andar o caminho interrompido um instante, indiferentes, descuidosas, casquinando, quase rindo às gargalhadas... E o caixão nos foi pesando até que o descansamos nos bancos da estação. Em breve, o trem correu conosco e o morto pelos rails afora, velozmente atravessando as paragens suburbanas. O carro fúnebre era o primeiro e, quando havia uma curva, eu podia lobrigar pelas janelas abertas, nos carros de primeira classe, algumas plumas de chapéus femininos... Dentro do carro fazia um calor insuportável e os bancos duros nos torturavam. Saltamos enfim na Central. Tínhamos vindo oito, e só quatro iriam ao cemitério. Gonzaga de Sá nada dissera até ali. Contraíra a fisionomia, a pele da testa se mantivera enrugada durante toda a viagem, parecendo que prendia grandes pensamentos fugidios. Colocamos o esquife no coche e fomos tomar lugar na velha caleça de aluguel. Antes de embarcar, o meu amigo olhou a praça, os ares, as casas e o parque defronte e me disse, quando se sentou no banco do carro:

— Como está lindo o dia! Até alegre, não achas? Nem parece que levamos um morto... É que ele não gozava da vida. Antes assim!.. Morrendo, em nada perturbou a vida das coisas e dos outros; entretanto, dizem, a sociedade é uma associação simpática de indivíduos e pouca coisa separa o homem do mundo.

Seguido por duas caleças de acompanhamento, o coche rolou pelos paralelepípedos, tomando a direção do cemitério do Caju. Recostamo-nos no fundo da carruagem e eu me pus a olhar ao longe, cismando, procurando ver nas coisas e por detrás delas, um sinal, um ponto, uma indicação de mágoa, de desgosto por aquela morte que ferira algumas consciências. Rolávamos agora pela rua de S. Cristovão, cruzávamo-nos com os bondes do bairro e, ao passar um, o mestre refletiu alto:

— Já reparaste que, quando não há indiferença, a passagem de um féretro desperta desgosto?

Calou-se um pouco e depois acrescentou:

— Creio que, se tivéssemos coragem das nossas opiniões, decretávamos um caminho especial para o cemitério — talvez subterrâneo... Só assim não teríamos na vida esse constante espetáculo que nos desgosta!

— Ainda não reparei, respondi.

Eu tinha uma grande atonia mental. A noite passada quase em claro, e as suas emoções, tinham-me esgotado, dando um forte torpor de corpo e uma imensa lassidão cerebral. Respondi somente compreendendo as palavras do meu amigo, sem atividade cerebral suficiente para que elas provocassem em mim um outro qualquer pensamento. Havia tanta resistência na minha percepção que o espetáculo circundante parecia chegar por caminho diferente da minha sensibilidade. Retruquei automaticamente, por mero hábito de polidez.

— E a morte tem sido útil, e será sempre, continuou Gonzaga de Sá. Não é só a sabedoria que é uma meditação sobre ela — toda a civilização resultou da morte.

Suspendeu a palavra; e, de acordo com a marcha da caleça, pôs-se a vagar o olhar pelos lados. Com ele, seguia os ornatos das cimalhas, as grades das sacadas; adiante, demorava-se mais a ver um bando de moças em traje de passeio, postadas à porta de uma casa burguesa. Afastando-se dali o carro, o seu olhar lento e macio foi parar sobre os bondes que passavam e os transeuntes na rua; deles, resvalou, pela calçada, no ponto em que uma mulher andrajosa dormia ao relento, imóvel, enrodilhada, como uma trouxa esquecida, e por fim, durante segundos, fixamente, insistentemente, pousou a vista no coche fúnebre que rodava na nossa frente.

— Levamos a procurar as causas, falou-me ele em seguida àquele longo passeio visual, — levamos a procurar as causas da civilização para reverenciá-las como se fossem deuses... Engraçado! É como se a civilização tivesse sido boa e nos tivesse dado a felicidade!

E não me disse mais nada até chegarmos ao portão do cemitério, quando me avisou que ia tratar dos atos administrativos indispensáveis à finalização do enterro. Seguimos o caixão sobre a carreta mortuária, que os empregados do cemitério impeliam profissionalmente; em breve, Gonzaga de Sá se nos veio juntar. Íamos pelas alturas de meio dia. O sol continuava claro e as alturas eram mais límpidas. O perfil das palmeiras ressaltava mais firme e os ciprestes não despertavam ao forte sol do dia. Chegamos em breve à beira da cova funda... O caixão desceu rapidamente pela sepultura abaixo. As correntes tilintaram aborrecidas daquela faina que exerciam há tantos anos. Lancei a minha pá de cal, sem comoção quase, desajeitadamente. Até ali, eu não sentira nada de especial; não tivera nenhum pensamento nem sequer uma emoção piedosa. Vira a cerimônia sem tristeza, fora de sua significação e dos grandes sentimentos compassivos que ela pedia. Passavam pelo meu cérebro, há muito soerguido do abatimento que trazia ao entrar, ligeiras reflexões, fraca e remotamente associáveis ao fato presente. Lembrei-me da minha infância, da fisionomia dos colégios por onde passei, dos professores, dos meus condiscípulos, da escola superior em que vadiei, das alternativas dolorosas da minha vida... E assim, lembrando-me de coisas fora do lugar e do momento, vim com Gonzaga de Sá andando vagarosamente até a porta do cemitério. Ele caminhava calado, de cabeça baixa, com o seu vasto crânio venerável exposto ao sol. Vinha distraído, esquecera-se de por o chapéu; e eu não quis perturbar o seu recolhimento, lembrando-o. Engolfado naturalmente na dor de perder aquele obscuro amigo, para cuja vida mediocremente feliz tanto ele concorrera generosamente, olhava a ponta dos pés, com a fisionomia endurecida e os olhos úmidos. Aquela amizade devia muito consolá-lo, a seu modo, do abandono e da solidão da sua velhice sem afeto. Gonzaga de Sá seria um apaixonado que não conseguira a tempo encaminhar o seu temperamento para um objeto qualquer, ficara de parte, guardando suas paixões, escondendo seus gestos, tanto por timidez como por orgulho? Seria isso de modo que, ao lhe chegarem os anos, já por fadiga, já pelas exigências da sua compleição, tivera que encaminhar para aqui e para ali, para este ou para aquele objeto, os ímpetos do seu coração, indo ter eles a insignificância, a modéstia daquele contínuo, de forma que encontrara nessa afeição um derivativo para o seu grande sofrimento, nascido quando a idade lhe fez assomar na consciência a imagem da sua esterilidade sentimental? Quem sabe?

Com a sua mania introspectiva, analisando-se constantemente, conhecendo bem a fonte de suas dores e indo ao encontro delas, conforme já foi observado, ficara mais apto para compreender as dos outros, para justificá-las ao mesmo tempo, e, portanto, perfeitamente capaz de simpatizar com aqueles que as curtiam. Nele, eu queria adivinhar isso desde muito e não estranhei quando me disse no portão do cemitério:

— Pobre Romualdo! De que lhe valeu viver se estava pelo meio na sociedade em que surgiu! Além dos males inerentes à vida, curtir mais este que se desdobra em milhões? Enfim, ele não tinha noção disso, o que é importante pois sem ela não há sofrimento! Nele, era tudo isso confuso, e o seu sofrimento só poderia ser criado pelos outros. Sou eu que o faço sofrer; ele, de fato, não sofreu... Hei de tratar dos meios de extirpação da consciência...

Descemos devagar a praia, seguindo o gradil do cemitério, a pé, pois despedíramos o carro que nos trouxera, pretendendo tomar um bonde. Era mais cômodo; não jogava no calçamento. O mar estava calmo naquelas alturas, e quem o olhasse, por cima, vê-lo-ia ligeiramente enrugado. As alturas apareciam cristalinas e o sol caía em jorros de luz sobre a superfície da baía. Começara já a viração. Ao fundo, e na frente, as montanhas saíam nitidamente do painel em que pareciam pintadas. Uma ilhota, com sua alta chaminé, não diminuía o largo campo de visão que o mar oferecia. Alonguei a vista por ele afora, deslizando pela superfície imensamente lisa. Surpreendi-o quando beijava os gelos do polo, quando afagava as praias da Europa, quando recordava as costas da Ásia e recebia os grandes rios da África. Vi a Índia religiosa, vi o Egito enigmático, vi a China hierática, as novas terras da Oceania, e toda a Europa abracei num pensamento, com a sua civilização grandiosa e desgraçada, fascinadora, apesar de julgá-la hostil. E, depois de tão grande passeio, minha alma voltou a mim mesmo, certificando-me de que, aqui como naqueles lugares, era, ora a mais, ora a menos. E me pus a pensar que sobre a convexidade livre do planeta que me fez, não tinha um lugar, um canto, uma ilha, onde pudesse viver plenamente, livremente. Olhei o mar de novo. Boiavam sargaças, balançando-se nas ondas, indo de um para outro lado, indiferentes, à mercê dos movimentos caprichosos do abismo. Felizes!

Gonzaga de Sá interrompeu-me estas vagas cogitações:

— Por que razão se vive? Que tu vivas, vá! Tu vives das tuas angústias, das tuas dores, dos clarões de alegria que por vezes rebetam entre elas; mas este pobre diabo, cujo stock de noções e conceitos era reduzidíssimo para forjar dores e, portanto, para obter alegrias, porque viveu? Sabes?

— Foi a inércia.

Dentro em pouco, tomamos o bonde e viajamos silenciosamente. O veículo encheu-se do curioso público de Domingo. Gonzaga de Sá mantinha-se calado, de quando em quando olhava um pouco a rua, depois descansava as mãos na bengala, baixava a cabeça e se punha a ver o chão da rua, por entre as grades do assoalho do veículo. Quando saltamos, quis-me despedir dele. Não deixou.

— Janto na cidade. Fica! Vamos andar pelas ruas. Por exemplo: vamos ao Passeio Público.

— Vamos.

Ele amava o velho jardim, onde nos sentamos pouco depois em um banco de pedra, num lugar retirado, ouvindo ao longe o estrondo da banda de música domingueira. A calma do lugar foi-nos aos poucos penetrando.

De mim tinha fugido o desassossego que sucedera ao torpor da manhã; e o meu companheiro tinha a fisionomia mais composta, o olhar quieto. Estava calmo, embora triste. Levantara o chapéu no alto da cabeça e se pusera a traçar, com a ponta da bengala, na areia, uma figura grosseira... Parecia o esboço de um rosto... Do outro lado, pela alameda que corria defronte do botequim, víamos agitar-se, aos impulsos de energias acumuladas durante a semana, uma multidão policrômica; e, ali, separados dela, silenciosos e inertes às forças que a moviam, nós estávamos como fora da humanidade, como entes de outra estrutura, sem nada de comum com eles. O grande relvado circular que dividia as duas alamedas, com o seu repuxo ao centro, marcava o limite entre dois meios fluidos, próprios à vida deles e à nossa. Víamo-los como o passageiro vê os peixes, da borda do navio, através das águas prateadas. Eu me demorava espreitando um casal que se abraçava um pouco longe de nós, quando Gonzaga de Sá me perguntou:

— Sabes porque o fiscal dos bondes fiscaliza o condutor?

A pergunta me pareceu pueril, a menos que não contivesse uma troça insignificante. Sem procurar resolver tão imbecil questão, respondi:

— É difícil de saber... Eu não atino.

Por instantes permaneceu calado, contemplando a multidão na alameda em frente.

Segui os seus movimentos. Tinha deixado de traçar a figura na areia e descansara negligentemente a bengala sobre a perna. Esforçava-se por abranger o maior círculo possível de horizonte e, sem se fatigar, ia e vinha com os olhos, de um extremo dele a outro. Parecia um navegante perdido que procura tênues indícios de costa.

— Eu julgo, disse ele, depois de estar algum tempo naquela postura, que os desgraçados se deviam matar em massa a um só tempo. Schopenhauer, que propôs o suicídio da humanidade, foi longe; devem ser só os desgraçados, os felizes que fiquem com a sua felicidade.

— Propõe isso para ver se eles aceitam.

— De certo, não. A burrice é firme e os leva a viver, apesar de tudo. Eu não compreendo, acrescentou depois de uma pausa, que um homem — um animal dotado de senso crítico, capaz de colher analogias — levante-se às quatro horas da madrugada, para vir trabalhar no Arsenal de Marinha, em quanto o Ministro dorme até às 11, e, ainda por cima, vem de carro ou automóvel. Eu não compreendo, continuou, que haja quem se resigne a viver desse modo e organizar família dentro de uma sociedade cujos dirigentes não admitem, para esses lares humildes, os mesmos princípios diretos com que mantêm os deles luxuosos, em Botafogo ou na Tijuca. Recordo-me que uma vez, por acaso, entrei numa pretoria e assisti um — casamento de duas pessoas pobres... Creio que até eram de cor..

Em face de todas as teorias do Estado, era uma coisa justa e louvável; pois bem, juízes, escrivães, rábulas enchiam de chacotas, de deboches aquele pobre par que se fiara nas declamações governamentais.

Não sei porque essa gente vive, ou antes, porque teima em viver! O melhor seria matarem-se, ao menos os princípios químicos dos seus corpos, logo, às toneladas, iriam fertilizar as terras pobres. Não seria melhor?

— Na Europa, os camponeses sofrem...

— Oh! Lá é outra coisa! Há uma literatura, um pensamento que vincula grandes ideias, que espalham o são espírito pela individualidade humana — fonte de simpatia pelos fracos, preocupada e angustiada com os destinos humanos. Aqui, o que há?

— Alguma coisa.

— Nada. A nossa emotividade literária só se interessa pelos populares do sertão, unicamente porque são pitorescos, e talvez não se possa verificar a verdade de suas criações. No mais, é uma continuação do exame de português, uma retórica mais difícil a se desenvolver por este tema, sempre o mesmo: D. Dulce, moça de Botafogo em Petrópolis que se casa com o Dr. Frederico. O comendador seu pai não quer, porque o tal Dr. Frederico, apesar de Dr., não tem emprego. Dulce vai à superiora do Colégio das Irmãs. Esta escreve à mulher do ministro, antiga aluna do colégio, que arranja um emprego para o rapaz. Está acabada a história. É preciso não esquecer que Frederico é moço pobre, isto é, o pai tem dinheiro, fazenda ou engenho, mas não pode dar uma mesada grande. Está aí o grande drama de amor em nossas letras, e o tema do seu ciclo literário. Quando tu verás, na tua terra, um Dostoievsky, uma George Eliot, um Tolstoi — gigantes destes, em que a força de visão, o ilimitado da criação, não cedem o passo à simpatia pelos humildes, pelos humilhados, pela dor daquelas gentes donde às vezes não vieram — quando?

— A nossa gente não sofre, é insensível.

— Diz a sério? E logo acrescentou: Sofre. Sim. Sofre a sua própria humanidade.

O meu amigo falava calmo, mas com um travo de azedume na voz.

— Se eu pudesse, aduziu, se me fosse dado ter o dom completo de escritor, eu havia de ser assim um Rousseau, ao meu jeito, pregando à massa um ideal de vigor, de violência, de força, de coragem calculada, que lhes corrigisse a bondade e a doçura deprimente. Havia de saturá-la de um individualismo feroz, de um ideal de ser como aquelas trepadeiras de Java, amorosas de Sol, que se coleiam pelas grossas árvores da floresta e vão por ela acima mais alto que os mais altos ramos para dar afinal a sua glória em espetáculo. Sabes de quem é?

— Não.

— É daquele que aumenta a força vital.

No curso do diálogo pusera-se de pé. O seu olhar tinha perdido a macieza e brilhava extraordinariamente nas órbitas de uma curvatura regular e suave. Falava com firmeza, com calor, sacudindo as palavras, uma a uma; as últimas, porém, foram ditas com paixão redobrada. Antes de sentar-se, olhei-o um instante. Sorria com um sorriso parado e cheio d’alma; parecia ouvir alguém invisível... O anjo Gabriel, talvez. Era como um Maomé que se preparava para levar seu pobre povo, em cem anos, dos Pirineus às Ilhas de Sonda! O sorriso se desfez em seus lábios, à proporção que se sentava. Sentado, disse a esmo:

— Não; a maior força do mundo é a doçura. Deixemo-nos de barulhos...

Despreocupadamente, sossegadamente, durante horas estivemos a ver os patos no lago e a conversar sobre coisas de pequena importância. Os combustores já estavam acesos, quando saímos para jantar. Tomamos a sopa num restaurante de uma rua central, e Gonzaga pôs-se a me dizer:

— Não repares naqueles palavrões de há pouco. Foram saudades do Romualdo, pesar pela sua morte... Eu o estimava de veras, e, na minha vida, só encontrei aquela, estranha ao meu círculo, para me amar e me sentir. Na minha idade, tu também deves saber, um golpe desses traz manifestações indiretas, mas violentas.

Tirou o lenço e passou um instante pelos olhos. Esgotou o prato e emendou:

— Como lhe devia ter sido dura a vida! Aos quatorze anos, é metido numa escola que mais é uma prisão. De corpo em corpo militar vaga, sofrendo as durezas da disciplina e também a da hierarquia. Tudo isso lhe custa o viço da vida. Tira-lhe a iniciativa, a sensação do que pode por si... Um belo dia fazem-no servente e ei-lo a receber humilhações de todo um corpo de funcionários pretensiosos, desde o ministro até o contínuo. Casei-o. Ele, valente, que nascera em lugar em que a bravura pessoal é exigida para a própria vida comum, tinha medo de sair com a mulher porque... oh! nem é bom contar.

E continuou a comer os pratos seguintes, trocando uma reflexão ou outra, enquanto eu não atingia os limites da minha surpresa. Gonzaga de Sá nunca me aparecera com esse aspecto de sentimentalidade comum. Em começo eu o achei uma natureza fria, depois um despeitado, em seguida uma espécie de pura inteligência que via a vida e as suas instituições para lhe colher os aspectos contraditórios. Um dia em que muito eu pensava sobre ele, achei-o da raça daquele André Maltère, de Barrès, que nasceu para compreender e desorganizar. Como neste momento me surgia sentimental, quase lamuriento?

É verdade que, em certas ocasiões, quase o sentia dessa maneira; mas, nestas, sempre se tratava dele, e não há quem o não seja a seu próprio respeito. Durante os quase dois dias em que o vi em presença da morte de um amigo, ele se transfigurara inopinadamente, num sentimental vulgar, exatamente igual a qualquer homem. Desesperava por compreendê-lo, fiz todas as hipóteses, combinei-as, sem que o tivesse perfeitamente compreendido, confesso; e até o presente, quando ligo os diferentes modos de ser com que ele se me apresentou hoje, ontem e amanhã, em vários momentos e horas, é tal a incoerência, é tal a falta de ligação dos seus atos, que o vejo na memória como o vi naquela tarde, em um café, a circunvagar o olhar por tudo:

— Enigmático!

·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·

Deixando o hotel, ao chegarmos à Avenida Central, havia um movimento por ela acima. Subimos até o pavilhão Monroe. O público noturno de domingo, nas ruas, tem uma certa nota própria. Há os mesmos flaneurs, artistas, escritores e boêmios; os mesmos camelots, mendigos e rodeuses, que dão o encanto do pitoresco à via pública. No domingo, porém, como eles, vêm as moças do arrabaldes distantes, com os seus pálidos semblantes e os vestidos característicos. Vêm as armênias das adjacências da rua Larga, em cujos grandes olhos negros, guarnecidos de longos cílios, e com uns duros reflexos de turmalina, a gente vê por vezes passar alguma coisa de ferocidade asiática. Além destes, há operárias em passeio, com as suas roupas amarfanhadas pela longa estadia nos baús. Há caixeiros com roupas eternamente novas e grandes pés violentamente calçados... Por entre essa gente, fomos indo até a balaustrada que dá para o mar, junto à qual nos encostamos, olhando em todo o comprimento a avenida iluminada e movimentada.

— Repara, disse-me Gonzaga de Sá, como esta gente se move satisfeita. Para que iremos perturbá-la com as nossas angústias e nossos desesperos? Não seria mal?

— É um caso de consciência.

— De que me vale esse testemunho? Quem tem certeza das suas revelações? Quem acreditará na sua consciência? Sou pela dúvida sistemática... Eu não sinto evidências. Não sofro daquilo que Renan chamava a horrível mania da certeza. Tudo para mim foge, escapa, não se colhe... O que há são crenças, criações do nosso espírito, feitas por ele para seu gasto, estranhas ao mundo externo, que talvez não tenha nenhuma ordem para se curvar à que criamos... Determinando a consciência, valeria a pena perturbar a paz desses panurgianos?

Não lhe soube responder, ele também não me pediu resposta. Olhamos ainda as filas de luzes que se erguiam por todo o comprimento da via pública. Descemos a rua pouco depois. Fomos tomar chopes e, abancados no botequim, conversamos outras banalidades. Quando nos despedimos, ele me disse:

— Vou educar o Aleixo Manuel, o filho do Romualdo. Hei de fazê-lo um Tito Lívio de Castro.

Eu tive um pensamento aziago e, de mim para mim, perguntei: viveria Gonzaga para tanto? Valeria a pena?