XI

Era feriado nacional...

 

Desci de minha casa aborrecido. Uma noite má, povoada de recordações amargas, puzera-me de máu humor, irritado, covardemente, desejoso de fugir para lugares longinquos. Era festa nacional. Os poderes publicos tinham resolvido festejal-a com o ruido de uma parada, a que se seguia uma recepção em palacio e um espectaculo de gala, á noite, no barracão da Guarda Velha. Desci para me delir na multidão, para me embriagar no espectaculo dos fardões e dos amarellos, para me fragmentar com estrondo das salvas fugindo a mim mesmo, aos meus pensamentos e ás minhas angustias. Saltei no Campo de Sant’Anna, esguerei-me por entre o povo, entrei no Jardim, deixando-me a ver os batalhões, ingenuamente, humildemente, como se fora um garoto. As tropas formavam, esperando a visita do general para desfilarem, então, pelo Catete, em continência ao presidente. Vi regimentos, vi batalhões, luzidos estados-maiores, pesadas carretas, bandeiras do Brasil, sem emoção, sem entusiasmo, placidamente a olhar tudo aquilo como se fosse uma vista de cinematógrafo. Não me provocava nem patriotismo nem revolta. Era um espetáculo, mais nada: brilhante, por certo, mas pouco empolgante e ininteligente. Junto a mim, dois populares discutiam, ao passar as forças formidáveis da Pátria, os seus recursos de mar e terra. Tinham um almanaque na cabeça, sabiam o nome dos oficiais, a marca dos canhões, a tonelagem dos couraçados. Discutiam com evidente orgulho, satisfeitos, manifestando, aqui e ali, desgosto que fosse tão reduzido o número de regimentos de cavalaria e tão poucos os couraçados de alto mar. Eu olhei. Olhei as suas botas, olhei os seus chapéus; em seguida passei o olhar nos generais pimpões que galopavam ao lado dos dourados almirantes... Oh! a sociedade repousa sobre a resignação dos humildes! Grande verdade, pensei de mim para mim, recordando Lammenais.

Voltei a olhá-los. Continuavam a discutir acaloradamente; faziam comparações com a força de outros países vizinhos, e passava-lhes pelas faces uma irradiação de orgulho quando o cotejo nos era favorável. Por que aqueles homens maltratados pela vida, pela engrenagem social, cheios de necessidades, excomungados, falariam tão santamente entusiasmados pelas coisas de uma sociedade em que sofriam? Por que a queriam de pé, vitoriosa — eles que nada recebiam dela, eles que seriam espezinhados pela mais alta ou pela mais baixa das autoridades se alguma vez caíssem na asneira de ter negócios a liquidar com alguma delas? Não seria fundamental, estrutural, em todos nós, neles como em mim, esse espontâneo separar das nossas dores, a provável culpa do corpo social em que vivemos? Poderíamos viver? sem ele, sem as leis e sem as regras que nos esmagam? Secretos ditames de nossa natureza não nos impunham essa subordinação resignada? Quem sabe lá? E, conforme tão bem dizia Gonzaga de Sá, que tinha eu, homem de imaginação e de leitura; que tinha eu de levar desassossego às suas almas, às daquela pobre gente, de lhes comunicar o meu desequilíbrio nervoso? Olhei-os ainda uma vez. Um deles desconfiou e sorriu ao outro. Desviei o olhar, alvejando-o por sobre uma rua em frente, vista por mim em toda a extensão graças a uma aberta na formatura. Olhando-a, pus-me a recordar que, ainda há dias, naquele longo sulco que se lhe abria pelo eixo em fora, homens sujos cavavam; e que, fizesse o sol mais ardente ou o aguaceiro mais temível, eles cavariam...

E eu ascendi a todas as injustiças da nossa vida; eu colhi num momento todos os males com que nos cobriam os conceitos e preconceitos, as organizações e as disciplinas. Quis ali, em segundos, organizar a minha República, erguer a minha Utopia, e, por instantes, vi resplandecer sobre a terra dias de bem, de satisfação e contentamento. Vi todas as faces humanas sem angústia, felizes, num baile! Tão depressa me veio tal sonho, tão depressa ele se desfez. Não sei que diabólica lógica me dominava; não sei que inveterados hábitos de reflexão vieram derrubar meus sonhos: eu abanei a cabeça desalentado. Tudo isto era sem remédio. Morto um preconceito ou uma superstição, nasciam outros. Tudo na terra concorre para criá-los: a Arte, a Ciência e a Religião são as suas fontes, são as matrizes de onde saem, e só a Morte dessas ilusões, só o esquecimento dos seus cânones, dos seus delírios e dos seus preceitos trariam à humanidade o reino feliz da perfeita ausência de todas noções entibiadoras. Seria assim? Não ficariam algumas? Não era mesmo da essência da natureza humana ter cada grupo o seu stock para opor às do vizinho? Não tinham os tupis as suas contra os tapuias; não tinham os portugueses contra estes dois; e os ingleses contra todos eles? Que me importava hoje ter de sofrer com as noções de alguns universitários europeus e a burrice dos meus concidadãos, se amanhã, asselvajado, de azagaia e bodoque, iria sofrer da mesma maneira com as da tribo minha vizinha ou mesmo com as da minha? Levei em tais pensamentos emaranhado minuto a fio. Para mim, afinal, ficou-me a certeza de que sábio era não agir. Que me propusesse a pagar as atuais fontes de sofrimento seria preparar o nascimento de outras, fosse o meu movimento no sentido de continuar a marcha que a humanidade vem fazendo até hoje, fosse no sentido de a fazer retroceder para os dias que já se foram. Tive um louco desejo de acabar com tudo; queria aquelas casas abaixo, aqueles jardins e aqueles veículos; queria a terra sem o homem, sem a humanidade, já que eu não era feliz e sentia que ninguém o era... Nada! Nada!

O clarim retínio. Soou um ao longe, depois os outros, um a um, como se os sons de um fizessem o outro vibrar. As tropas dispunham-se a desfilar. Desfilaram. Passaram aos meus olhos lisas faces negras reluzentes, louros cabelos que saíam dos capacetes de cortiça; homens de cor, de cobre, olhar duro e forte, raças, variedades e cruzamentos humanos se moviam a uma única ordem, a uma única voz. Tinham os seus pais vindo de paragens longínquas e das mais desencontradas regiões do globo. Que motivos ocultos, sob a grosseria dos fatos históricos, explicavam essa estranha impulsão e aquela mesma obediência a um mesmo ideal e a uma mesma ordem? Que bobagem, pensei por aí, estar eu a meditar sobre coisas tão imbecis, quando estavam próximos os armazéns de modas, o Pavilhão Mourisco, ou os Pequenos Ecos, tão pejados de coisas importantes e inteligentes, onde poderia com ganho e lucro empregar a minha atenção e o meu estudo. Que besta sou!...

As tropas continuavam a marchar em direção do Catete. Vi-as passar simplesmente, como as tinha visto formar. Depois que passaram, vim descendo ruas ao sabor da multidão; nela, flutuei com prazer, gozando a volúpia da minha anulação... Vinha como uma gota d’água no caudal de um rio, e, quando me perdi no Largo do Rocio, foi para esbarrar com o Dr. Xisto Beldroegas, bacharel em direito e colega de Gonzaga de Sá, na Secretaria dos Cultos. Caminhava devagar e preocupado, sombriamente preocupado. Conheci-o por intermédio do meu amigo, que me descrevera a sua curiosa atividade mental. Beldroegas era o depositário das tradições contenciosas da Secretaria dos Cultos. Apaixonado pela legislação cultural do Brasil, vivia obsedado com os avisos, portarias, leis, decretos e acórdãos. Certa vez foi atacado de uma pequena crise de nervos, porque, por mais papéis que consultasse no Arquivo, não havia meio de encontrar uma disposição que fixasse o número de setas que atravessavam a imagem de S. Sebastião. Gonzaga de Sá contava coisas bem engraçadas do seu colega bacharel. Notava muito a sua necessidade espiritual da fixação, da resolução em papel oficial de tudo e todas as coisas. Beldroegas não podia compreender que o número de dias que chove no ano não pudesse se fixado; e se ainda não o estava, em Aviso ou Portaria, era porque o Congresso e os ministros não prestavam. Se fosse ele... Ah!... O movimento dos astros, o crescimento das plantas, as combinações químicas, toda a natureza, no seu entender, era governada por avisos, portarias e decretos, emanados de certos congressos, ministros e outras espécies de governantes que tinham existido há muito tempo. Não acreditava que outras vontades ou forças mais poderosas do que as dos membros ostensivos do poder político governassem. Eram eles, só eles, o voto... Tolice!...

Apesar de enfronhado na legislação, não tinha uma ideia das suas origens e dos seus fins, não a ligava à vida total da sociedade. Era uma coisa à parte; e, a comunhão humana, um imenso rebanho cujos pastores se davam ao luxo de marcar, por escrito, o modo de aguilhoar as suas ovelhas. Para o Dr. Xisto Beldroegas, a lei era ofensiva, inimiga da parte. Ninguém tinha direito em presença dela; e todo pedido devia ser indeferido, não logo, mas depois de mil vezes informado por vinte e tantas repartições, para que a máquina governamental mais completamente esmagasse o atrevido. Ademais, tinha uma noção curiosa da lei. Uma vez eu lhe falei na lei da hereditariedade.

— Lei! exclamou. Isso lá é lei!

— Como?

— Não é. Não passa de uma sentença de algum doutor por aí.. Qual o Parlamento que a aprovou?

Lei, no entender do colega de Gonzaga de Sá, eram duas ou três linhas impressas, numeradas ao lado, podendo ter parágrafos e devendo ser apresentadas por um deputado ou senador às suas respectivas câmaras, aprovadas por elas e sancionadas pelo presidente da República. O que assim fosse era lei, o mais... bobagens!

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Xisto vinha preocupado, sombriamente preocupado. Hesitei em lhe falar; não tive tempo, porém, de tomar uma decisão. Ele deu com os olhos em mim.

— Doutor! disse eu, fingindo surpresa e contentamento.

Ele não me respondeu claramente; articulou unicamente um grunhido de suíno, como exigia a sua respeitabilidade burocrática. Sou teimoso, quis obrigá-lo a falar; insisti amavelmente:

— Em que pensa, doutor?

Xisto gostou da minha subalternidade, concertou o pincenê, ajeitou o olhar nas órbitas e disse:

— Isto vai mal... Não sei onde vamos parar!...

— Porque, doutor?

— Ora! É uma balbúrdia!

— Não há dúvida!, concordei.

— Nem dá gosto trabalhar! Imagine só o senhor que há mais de dez anos, nas minhas informações, lembro a necessidade de ser fixado o numero de linhas dos avisos... É preciso regular isso perfeitamente... Ora, uns têm cinco linhas; ora, outros têm dez, quinze, trinta... É um inferno!.. Veja só hoje o País! Chama mensagem o que é um simples Aviso... É por causa dessa deficiência na doutrina! É verdade que serão sempre ignorantes; a coisa podia estar determinada e os jornalistas não saberiam... Qual! Nesta terra, fique certo, ninguém se entende! Os que prestam estão por baixo...

Durante longos minutos, contou-me ainda outros grandes desgostos da sua alma de funcionário. Interrompi-o perguntando:

— E o Gonzaga, como vai?

— Parece-me que anda adoentado... Outro dia, teve um delíquio..

— Passou?

— Sim, passou; mas, na idade dele, é mau... Dizem que vai ser aposentado.

— Que pena!

— Não perde nada... Bom camarada, mas não entende do serviço... Até hoje, com perto de quarenta anos de casa, ainda não se tinha habituado a por o número de anos da República nos decretos. Imagine só!... Eu gosto dele, garanto; a respeito de serviço, porém, não era lá grande coisa... Sabia, é certo; mas negócio de romance, de filosofia, de revistas... Fico com pena... Ele tinha boas pilherias... Muita gente há de dizer que gosto porque a sua aposentadoria vai me aproveitar. Estou em primeiro lugar para a promoção... Mas não. Tenho pena...

As últimas palavras foram ditas quase à meia voz. Calou-se um pouco e, em seguida, continuando a caminhar a meu lado, desandou a falar de sua repartição e dos colegas. O chefe não entendia; o diretor ainda menos; o ministro... A custo pude me afastar desse portentoso senhor cujas mãos graduavam a força da lei e sustinham a majestade do Estado. Deixando-o, tive ímpetos de ir ver o meu amigo. Era pouco mais de duas horas. Muito cedo e temi incomodá-lo com uma visita demorada. Deixei-me ficar pelas ruas até as quatro horas da tarde, quando me dirigi à sua casa, saudoso dele, a quem não via há mais de vinte dias. Foi o próprio Gonzaga de Sá quem me recebeu.

— Disseram-me que estavas doente, disse-lhe eu ao entrar.

— Qual! Uma ligeira infecção do ambiente. Quem foi que te disse?

— O Xisto Beldroegas.

— Logo vi! Eles é que me fazem doente... Não os posso suportar mais... Que cacetes! Imitam-me... É incrível que só agora, aos sessenta e tantos anos, eu me venha sentir incompatível com eles...

— Não tiveste uma tontura?

— Tive; mas coisa insignificante... O que tenho, de fato, é aborrecimento, é tédio; sofro em me sentir só; sofro em me ver que organizei um pensamento que não se afina com nenhum... Os meus colegas me aborrecem... Os velhos estão ossificados; os moços, abacharelados... Pensei que os livros me bastassem, que eu me satisfizesse a mim próprio... Engano! As noções que acumulei, não as soube empregar nem para a minha glória, nem para a minha fortuna... Não saíram de mim mesmo... Sou estéril e morro estéril... As palavras me faltam; as ideias não encontram expressões adequadas para se manifestarem... Enfim, estou no fim da vida, e só agora sinto o vazio dela, noto a sua falta de objetivo e de utilidade... Meu coração foi sáfaro... Gastei um capital precioso em coisas fúteis... A vida quer outras coisas... Passei quarenta e um anos a girar em torno de mim mesmo, e vivendo horas cercado de imbecis... Calcula que o meu chefe, há dias, organizou um curioso sistema de nomeação para presidente da República; e muito a sério, podes crer.

— Como era?

— Entrava-se amanuense, e, de promoção em promoção, ia-se a presidente...

— Engenhoso!

— Sabes qual a vantagem apontada por ele?

— Não.

— Quando houvesse necessidade de se lavrar um decreto em palácio, o presidente estava perfeitamente apto a fazê-lo... Oh! Impossível! Nem a paciência de um santo!...

Nós conversávamos sentados naquele gabinete em que Gonzaga de Sá me recebeu pela primeira vez. Assombrava-me aquele seu desabafo; não estava nos seus hábitos; eu não o esperava. De há tempos para cá notava-o menos resignado, irritadiço, mais deprimido, sem energia para se conter. Perdera um pouco a sua ironia aguda, deixava-se facilmente encolerizar e lastimava-se desalentadoramente. Não o tentei consolar; ele não era dos que se consolam. Olhei um instante para fora da janela. As alturas estavam calmas; o céu muito azul e límpido; o sol brilhava sem violência, meigamente envolvendo a palmeira quieta. O flanco chanfrado da pedreira, do outro lado, era visto ao longe, pela janela aberta, bruscamente claro, surgindo por entre a vegetação escura e a rocha, como uma chaga... Os cavouqueiros mexiam-se... O fermento humano na natureza indiferente...

Da rua vinha até nós o pregão monótono dos vendedores ambulantes. Pelas janelas da frente eu vi a ponta das palmeiras do palácio e as alturas do morro de Guaratiba, pairando sossegadamente sobre nossos festins ruidosos...

Gonzaga de Sá levantou o olhar da folha de papel em que estivera rabiscando, passeou a vista pelas três faces da sala aberta para o exterior e permaneceu alguns minutos com o olhar perdido. Por fim, o meu velho camarada voltou-se e perguntou-me ainda uma vez:

— Quem te disse que eu estava doente?

— Já te disse... O Xisto Beldroegas...

— Que idiota! Com aquela voz de castrado, com aquele passo de jaboti... Tenho-lhe nojo, nojo da sua burrice... Imagina que, para me moer, ele se propôs um dia a discutir filosofia com o Baltar... Sabes o que discutiram?

— Não.

— Ouve, Beldroegas diz ao outro, olhando de esguelha para mim, Baltar, vamos discutir filosofia. Baltar empavesa-se, põe as mãos para trás, e diz com segurança — vamos. Baltar tosse, Beldroegas faz um esforço para falar, cacareja e pergunta: Como morreu Sócrates? Felizmente, eu escapei de ser doutor...

Ri-me, enquanto Gonzaga de Sá acendia, a custo, um cigarro. Tremia; vários fósforos apagaram-se. Levantei-me, para deitar fora o meu que se extinguira, e, de soslaio, pude ver a folha que Gonzaga de Sá rabiscava. Eram indecisos traços de uma fisionomia humana... Sempre aquela obsessão. Sentei-me e ele continuou:

— Dantes, e tinha pena. Hoje, sobe-me o ódio, dá-me vontade de lhes quebrar a cara... Eu quis fazer deles o meu ambiente, comuniquei-lhes as minhas leituras... Os burros maldizem-me... Eunucos, castrados! Apanharam umas opiniões, uns retalhos de pensamento dos meus lábios e, com eles próprios, querem me ofender e irritam-me. A burrice humana é insondável! Tenho desgosto de mim, da minha covardia... Tenho desgosto de não ter procurado a luz, as alturas, de me ter deixado ficar covardemente entre tais patos, entre tais perus, burros e maus, agaloados ou não, ignorantes e sórdidos, incapazes de simpatia, de gratidão e de respeito pelo valor dos outros... Como me fui meter com esses idólatras de títulos e posições, patentes e salamaleques, abaixados diante da força e do dinheiro? Não sei. Os mais próximos, eu os quis melhorar; eu lhes levei autores, novidades, jeitos de pensar... E eles? Oh! que bestas! que bestas! O que mais me aborrece é ter chegado a esta idade vazio de tudo, vazio de glória, de amizade, só, e quase isolado dos meus e dos que me podiam entender. Estou abandonado, como um velho tronco desenraizado num areal... Vivi muito e espero ainda viver alguma coisa... Vi ladrões, vi assassinos, vi gatunos, vi prostitutas — tudo isso é gente boa, muito boa, à vista dos perus graduados no meio dos quais vivi... Fugi das posições, do amor, do casamento, para viver mais independente... Arrependo-me!... Vênus é uma deusa vingativa!

Gonzaga estava desvairado; nunca o vira com aquelas feições, com aquela violência de linguagem. Ele se tinha erguido da cadeira; os cabelos se desfizeram; e, na mão esquerda, erguia o cigarro como uma tocha de incendiário.

— Gonzaga, sê clemente! Perdoa!

Não me respondeu e sentou-se. Lá fora, começava a correr uma branda viração, a cujo impulso a palmeira inclinou-se para o nosso lado. Na parede, todas as figuras da alegoria da Primavera pareciam olhar o meu inolvidável amigo; a cegonha de bronze como que esticou um pouco mais a cabeça e, no alto do portal, o mocho juntou mais os olhos, como se se espantasse com aquela atitude de Gonzaga de Sá. Todos aqueles seus companheiros de tantos anos se admiravam da brusca revolta. Eles se haviam surpreendido como eu, apesar de tudo. Compreendi, então, que o temperamento de Gonzaga era de fortes paixões; que a ironia tinha disfarçado a mágoa de não achar onde aplicá-las, e surdas efervescência de raiva deviam viver sepultadas no seu íntimo. Na forte compreensão da dignidade de sua pessoa, e no avassalador orgulho pela sua inteligência, atrozes feridas deviam se ter aberto nele pela vida toda; e agora, com a decadência de energia que a velhice acarreta, não mais podia suportar-lhes as dores cruéis e gemia. Era mais uma interpretação da alma do meu amigo... Conclui também que aquilo seria uma convulsão, uma inevitável perturbação provocada pela idade, na sua calma habitual e na triste ironia que perfumava o seu viver solitário, perturbação que mais se acentuou depois da morte do compadre. Vexado, durante uns instantes, esteve calado, dizendo-me afinal:

— Nunca me viste assim, não é?

— ?

— Hás de me desculpar... Nunca mais... Não terei motivo para o ser outra vez...

Teve um grande ofego e falou-me em seguida, com aquela sua voz de sempre, cheio de mansuetude e bondade:

— Fizeste bem em vir... Jantas comigo e iremos ao Lírico. Quero ver pela última vez aqueles lugares; quero ver o núcleo atual de tantas ilusões... Irás comigo. A tua mocidade me excitará a rever os meus vinte e cinco anos esperançosos...

Não queria ir porque aquela gente do teatro eu a sentia hostil; mas cedi e jantei com ele, a irmã e o afilhado.

O jantar foi triste; D. Escolástica, com a indiferença do seu olhar verde, jantou sempre cerimoniosa, tendo sempre um sorriso de bondade fixado nos lábios. Não perdia nunca aquele seu ar de remanço, de placidez. Mas com tanta passividade que não lhe adivinhei qualquer contração ter descoberto a crise por que vinha passando o irmão. Era como essas deliciosas paisagens para onde corremos quando a alma se nos tolda de desgosto. Contemplamo-las, horas e horas, esperando um consolo, um afago, e elas nada nos dizem. Continuam, como sempre, belas para toda a gente, mas sem compreensão simpática para um qualquer dentre os muitos que as procuram. D. Escolástica continuava plácida e remansosa, mas parecia ser assim para todos, sem escolha nem eleição. Diante da recente agitação do irmão e, antes, em face de sua indiferença nirvanesca por tudo, do seu niilismo intelectual, ela sempre procedeu como a paisagem: ficou muda, ficou muda em uma palavra para animá-lo, e sem um conselho para sossegá-lo. Acabado o jantar, Gonzaga de Sá vestiu-se pacientemente, carinhosamente. Íamos em cadeira de segunda classe, eu, por causa do traje, não o podia acompanhar em primeira como ele queria; entretanto, abotoou-se bem, fez com que as calças caíssem com justeza sobre as botinas, amarrou bem a gravata, perfumou-se, e fomos com antecedência comprar os bilhetes. Quando saltamos na porta do Teatro, já começavam os carros a chegar. Em geral, os coupés traziam três pessoas, e, as vitórias, seis, sem contar o nhonhô na boleia, ao lado do cocheiro. Havia um único palafreneiro para todos os carros. Logo que um apontava no canto da rua Senador Dantas, o pobre homem corria e seguia emparelhado ao veículo até o ponto justo de abrir a portinhola. Se, por acaso, um chegava trazendo o número normal da lotação e com ajudante de cocheiro próprio, causava pasmo. Era como se fosse uma carruagem de príncipe. Dos “ceroulas” é que saltava o grosso dos frequentadores. E, ainda uma vez, eu me admirei que gente que pagava vestidos e trajes tão caros não pudesse vir em carruagens condignas e menos abarrotadas. Em certo momento, Gonzaga de Sá me disse, sem que nem por que:

— Mete dó, não ofende, este luxo...

A sineta anunciou o espetáculo. Entramos. Poucas vezes fora eu ao antigo Pedro II, e, as poucas em que fui, assisti ao espetáculo das torrinhas; de modo que aquela sociedade brilhante que via formigar nas cadeiras e camarotes de longe parecia revestida de uma grandeza que me intimidava. Debruçado na grade da galeria, as casacas corretas e os ricos vestuários das senhoras eram um deslumbramento para os meus pobres olhos; e, por não ser do meu gosto analisar os espetáculos que me agradam, aceitei aquela sociedade como deslumbrante, grandiosa e brilhante. Contudo, vulgarmente, e muito, na entrada, parecia-me que aquelas damas, envoltas em capotes e outros agasalhos, tinham o ar de quem ia para o banho; enquanto, na sala, de colos nus, sob o rebrilho das luzes, surgiam-me como mármores de museu.

No Cassino, ao ver pelos camarotes aquelas conhecidas grandes damas estrangeiras, os galeões do México, rutilantes de joias e de sedas, também recebi igual impressão de grandeza, beleza e majestade. Consenti, depois de anos de ausência, em pisar no Lírico. Ia agora ver tudo aquilo mais de perto, graças a Gonzaga de Sá, graças à animação, ao reforço que ele trazia à minha humildade nativa.

A representação ainda não começara. Damas conversavam com cavalheiros à entrada dos camarotes. Eu ficava bem junto à fila direita. Vi algumas de perto, e as cadeiras do camarotes que me pareceram bem inferiores às da sala de jantar da minha modesta casa. Notei-lhes o forro de reles papel pintado, o assoalho de taboas de pinho barato; alonguei o olhar pelo corredor e, além de acanhados, julguei-os sujos, vulgares, a guiar os passos para lugares escudos. O teto sempre me intrigou. Com os seus varões de ferro atravessados, supus que se destinassem a trapézios e outras coisas de acrobacia. Ópera ou circo? Entretanto, eu estava no ponto mais elegante do Brasil; no ponto para que converge tudo que há de mais fino na minha terra.

Era para brilhar ali que nós todos brigávamos, matávamos e roubávamos por sobre os oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil. Não se acredita! Os músicos tinham acabado de afinar os instrumentos; dentro em pouco, o maestro chegou. O Presidente apareceu no camarote e a orquestra atacou o hino nacional. Pusemo-nos de pé e, ao começar propriamente a ópera, sentamo-nos a ouvi-la.

— Bela casa! disse eu ao ouvido de Gonzaga de Sá.

— Chic, rica! A metade não pagou entrada...

— Há muito que eu não via tanta gente poderosa reunida...

— E, em todo o caso, curiosa e representativa, disse-me ele.

Estivemos alguns instantes a sorver o mel daquela música, mais realçada ainda pela doce voz dos cantores, que nos vinha aos ouvidos como uma carícia fora das coisas. Vi num camarote uma linda senhora, de busto alto, linhas rígidas, que se apresentava sozinha. Procurei ver-lhe o rosto; era a Pilar, uma espanhola que talvez muito influísse nos destinos da pátria.

Gonzaga de Sá ouvia e eu perturbei-o apresentando-lhe a espanhola:

— Conheces? perguntei. Quem é?

— A Pilar! A ninfa da alta política, da alta finança, de toda a pirataria com patente.

— Ahn! É justo que as haja para todas as classes, tanto mais que é invejada. Olha como a vê a honesta Mme. Aldong — 7º camarote, da 1ª ordem, à direita... Viste?

— Vi, respondeu Gonzaga de Sá.

— Sabes quem é Mme. Aldong?

— Não. É uma senhora aí... Sabes bem quem é?

— Bem não sei, nem ninguém; mas é das rodas finas; é viúva e, sem ser rica, gasta rios de dinheiro... Não há motivo para inveja...

— Moralizas?

— Absolutamente, não. Verifico fatos. Repara, à esquerda, aquelas três moças... Bonitas, hein?

— De fato.

— São filhas do moralista da Vanguarda. Ganhou ele ultimamente duzentos contos com a indenização que pleiteou para a Comp. das Obras do Porto de Tabatinga, por não ter nunca a companhia iniciado a construção dos seus utilíssimos cais. Foi no mês passado. Admira que tenha ainda dinheiro...

— Foi útil; elas nos vieram alegrar o olhar. E aquela senhora acolá?

— Que te parece ela?

— Esposa de um senador ou banqueiro.

— Exato, mas de jogo. Há trinta anos ele o é apesar de todos os códigos proibirem-no. A inutilidade das leis... Bom assunto!

— E aquele almirante que, parece, viu todos os mares da terra?

— Desde a viagem de instrução, que foi feita à vela, nunca mais embarrou, a não ser para Niterói.

— Prático.

— Em terra, disse-me rapidamente Gonzaga de Sá. Bela casa!

— Bela casa!

O ato findava. Palmas entusiásticas partiram das galerias, e alguns nas cadeiras também aplaudiram. Saímos. Pus-me a ver as feições daquela gente tão maldosamente catalogada por Gonzaga de Sá. Tinham não sei que de inquietude, não sei que de desassossego no olhar, que me finalizou. Quis interrogar o meu amigo. Parei um instante para ver a Pilar, que passava. Roçou-me e pude ver-lhe bem as feições. Eram calmas, e, o olhar, seguro e satisfeito. Em face daquela inquietude geral, o seu sossego pareceu-me superior, aristocrático, exercendo aquela fascinação especial da pessoa humana que pode, está segura de si e não tem tormentos. Observei tudo isto a Gonzaga de Sá, ele sorriu-se ligeiramente e retrucou:

— Pudera! Eles sabem como estão aqui; eles sabem que os que, com bulha e matinada, frequentavam o Lírico ou o Provisório há quarenta anos atrás, no meu tempo, não têm talvez um representante entre eles. Para onde foram? Não se sabe! Eles temem o futuro. Perpassou um pouco a vista por sobre aqueles cavalheiros elegantes e aquelas damas jeitosas, e disse-me:

— Vocês, os moços, fizeram mal em destronar os antigos. Apesar de tudo, nós nos entenderíamos afinal. Vínhamos sofrendo juntos, vínhamos combatendo juntos, às vezes até nos amamos — entenderíamo-nos por fim. Estes de agora...

— Nada impede que nos entendamos afinal com estes, também!

— Qual! São estrangeiros, novos no país, ferragistas e agiotas enriquecidos, gente nova... Vocês estão separados deles por quase quatrocentos anos de história, que eles não conhecem nem a sentem nas suas células — o que, para eles, é de lastimar, pois esses anos passados dão força e direitos a vocês, que os devem reivindicar. Em breve vocês terão de empregar a força para eles respeitarem vocês. Esses quatrocentos anos... Resumindo, continuou Gonzaga, vocês arranjaram novos dominadores, com os quais vocês não se poderão entender nunca; e expulsaram os antigos com os quais, certamente, se viriam a entender um dia. Erraram, e profundamente.

A sineta tocou, e fomos tomar lugares. A Pilar já estava no camarote; nos outros, quando neles iam entrando as damas respectivas, o primeiro olhar era para ela. O presidente já estava sentado, bem à vista da sala. A Pilar olhou-o demoradamente, correu a vista pela sala e olhou-o ainda uma vez, com firmeza e sem inveja. Era como se dissesse: aqui eu e tu! A orquestra atacou. O pano subiu e eu me preparei para ouvir as doçuras da música italiana. O espetáculo prolongou-se além da meia noite, e nós o assistimos até ao fim. Saímos tristes. Era a primeira vez que eu assim saía de um teatro. Nos meus tempos de estudante, deixava o espetáculo alegre.

Cercado senão de amigos, no mínimo de camaradas, passava a representação como assistindo uma aula, em cujos intervalos, de igual a igual, discutia e conversava familiarmente com os outros. Desta vez, sem aquele ambiente favorável de colegas, eu me choquei bruscamente com aquele mundo hostil. Não houve uma só palavra que me ferisse, nem sequer um olhar; entretanto, só em contemplar aquela grande gente, que me parecia tão rica e tão brutal, eu me senti inferior. Donde me vinha esse sentimento? Era a minha cultura? Não; eu recebi a mesma instrução dos mais instruídos da minha idade que lá estavam. Era do meu caráter, das falhas da minha moralidade? Não, também; eu sentia que as tinha; contudo, em comparação com o grosso daqueles cavalheiros tão limpos, eu era puro, imaculado. Nada mais me restava comparar a não ser que o meu sangue me fizesse perfeitamente inferior, mas este mesmo eu cria correr em muitos daqueles a quem me julgava inferior. Donde vinha, portanto, esse sentimento que me entristecia? Analisei na memória o espetáculo que me ferira, combinei-o com as palavras de Gonzaga de Sá. Lembrei-me que eles tinham vindo do Brasil todo, de todos os seus pontos, a brigar, a roubar os seus parentes, as suas mulheres e os governos, a furtar pobres e ricos; a matar também levas e levas de imigrantes nos árduos trabalhos agrícolas. Era aquele o seu prêmio!... Tinham saltado por cima de todas as conveniências, por cima de todos os preceitos morais — tiveram coragem, enquanto eu... Oh! Algumas vezes por aí, umas pandegas e muito álcool! Narcótico! Era isso.

Percebendo a verdade, revoltei-me contra a minha fraqueza, contra a minha alma bruxuleante e pulha, que me fazia deter diante das regras do decálogo, diante dos preceitos morais. Eu era um covarde, um escravo; eles, príncipes e reis. Não serei mais assim!... Era, preciso brigar — briguemos! Escolheram a guerra — tê-la-ão!

Fomos tomar cerveja em um café de notívagos. Gonzaga de Sá vinha embrulhado num sobretudo com o rigor de parvenu viajado. Em começo, bebemos calados; afinal Gonzaga de Sá quebrou o silêncio.

— Eu saio dessas coisas triste...

— Ora!

— Não, é certo. Tenho, pesar de mim, uns longes de patriotismo e, quando vejo que aquilo, o Lírico, a condensação da fina flor, é a mesma coisa de há quarenta anos passados, fico abatido. São os mesmos fazendeiros sugadores de sangue humano; são os mesmos políticos sem ideias; são os mesmos sábios decoradores de compêndios estrangeiros e sem uma ideia própria; são os mesmos literatos a Octaviano, literatos de coisas de cottillon, os mesmos agiotas... Há quarenta anos era assim; não mudou. Serão sempre assim?

Sem querer respondi logo:

— Certamente.

Depois, refleti que havia uma certa contradição entre o que Gonzaga de Sá me dissera no teatro e o que observava agora. Entretanto, calei-me.

— Eu também sou do teu parecer, confirmou ele; mas, agora, me acode dizer-te que os outros eram mais nossos parentes.

E, calmamente, sorvemos longos goles de cerveja, até espertar o corpo. Gonzaga de Sá pagou e, quando me quis despedir, perguntou-me:

— Para onde vais?

— Para casa.

— Sinceramente?

— Palavra!

— Vem dormir em minha casa; amanhã ficarás ajudando-me a arrumar os livros.

Juntos tomamos o bonde para a sua residência, nos arredores da Rua Bento Lisboa, no Catete, e nas encostas de Santa Teresa. No bonde, viajavam poucos passageiros.

Havia uma rapariga com um grande chapéu e um longo e belo capote, num banco da frente. Gonzaga de Sá esteve a observá-la muito tempo; e, ali pela rua da Lapa, bruscamente refletiu, olhando para a mulher:

— O que sinto é que essas senhoras não sejam diferentes das de sociedade. Se o fossem, eu talvez experimentasse...

E não mais disse coisa de valia, até à porta da casa, onde entramos já com os galos a cantar, recebidos pela saudação sonolenta do velho pretoInácio.