XII

Ultimos encontros

 

Dormi magnificamente, em um amploi quarto desses das velhas casas do Rio de Janeiro que dão bem a imagem da fartura e da: liberdade da nossa burguezia nos meados do seculo passado. Era maior do que as salas das nossas apelintradas casas de hoje. Despertei manhan adeantada. O quarto em que dormi, dava para a sala de jantar. Penetrando ahi, dei com D. Escolastica, de placidos olhos verdes, a vigiar attentamente o pequeno Aleixo Manuel, que tomava uma ligeira refeição matinal, antes de ir para o collegio. Gonzaga de Sá não estava. Ao entrar, o menino levantou a cabeça da chicara e pousou por instantes os seus grandes olhos negros, ennervados de prata, sobre mim, interrogativamente, como sempre.

Vendo aquela criança, não sei que longínquas lembranças da minha infância me vieram. Eram as esperanças da minha iniciação nas coisas obscuras do alfabeto. Eram os afagos e espantos da minha professora; eram também os dolorosos desenganos desta minha mocidade irrequieta e desigual... Não viu o que invocava em mim aquela criança, com a sua rígida fronte inteligente e a sua forte e redonda cabeça de homem de caráter! Ele me olhou, fiz a saudação matinal, respondeu-me e me sentei. A velha D. Escolástica informou-me, então, que o irmão erguera-se cedo e trabalhava na sala. Demorei-me uns tempos a conversar e, de caminho, falei à criança.

— Estás muito adiantado?

O Aleixo Manuel relutou em responder; a velha senhora, porém, obrigou-o a fazê-lo com presteza.

— Responde, Aleixo, não estás ouvindo o que te perguntam? Responde: estás adiantado?

— Não estou, não senhor; respondeu ele afinal.

— Em que livro estás?

— Terceiro.

— Com nove anos, vai bem, fiz eu animandoo. Já dás a História do Brasil?

— Sim, senhor.

— Quem descobriu o Brasil?

— Pedro Álvares Cabral.

— E a América?

— Cristovão Colombo.

— Qual foi a primeira descoberta, a da América ou a do Brasil?

— A da América.

— Por quê?

— Porque o Brasil faz parte da América, e quem descobriu a América também o Brasil, porque ele está na América.

— Então foi Cristovão Colombo quem descobriu o Brasil? Que respondes?

O rapaz calou-se, franziu um instante as sobrancelhas e, depois, disse com toda a firmeza:

— Não. Colombo foi quem viu pela primeira vez um lugar da América, por isso se diz que descobriu ela toda; mas Cabral viu depois, pela primeira vez, lugares do Brasil, por isso diz-se que descobriu o Brasil.

A custo, disfarcei a minha surpresa diante da clareza do raciocínio do pequeno. Não quis com um elogio caloroso aguçar-lhe a vaidade; desejava que a sua inteligência fosse crescendo sem consciência de si própria; e então, quando fosse bem forte, ele tomasse conhecimento da sua capacidade, como uma revelação, como uma surpresa. Limitei-me a dizer-lhe que estava certo e passei a perguntar outras coisas. Por fim, depois de ter respondido às minhas perguntas com uma prontidão que me maravilhou, passou a correia da mala pelo pescoço, apanhou a lousa e despediu-se. Beijou e abraçou D. Escolástica, e ambos o fizeram de maneira a me deixar perceber que um queria mais alguma coisa no outro, e que ambos não sabiam porque não a tinham. Foi-se.

— É inteligente o rapaz, disse eu à velha senhora.

— Bastante. Que desejo de saber tem este pequeno! O senhor nem imagina! Brinca, é verdade; mas, à noitinha, agarra os livros, os deveres e os vai estudando sem que ninguém o obrigue. Quem me dera que fosse assim até ao fim!

— Porque não irá?

— Ora! Há tantos que como ele começam tão bem e...

— É verdade! Mas virá deles mesmos a perda da vontade, o enfraquecimento do amor, da dedicação aos estudos; ou tem tal fato raízes em motivos externos, estranhos a eles, que só numa idade mais avançada acabam percebendo, quando a consciência lhe revela o justo e o injusto, fazendo que se lhe enfraqueça deploravelmente o ímpeto inicial?

Cri que D. Escolástica não me compreendera, e procurei dizer a mesma coisa por outras palavras.

— Quem sabe se, na primeira idade, eles estudam porque desconhecem certas coisas que, sabidas mais tarde, lhes fazem desanimar e sentir vão o estudo?

— Qual, doutor! (Ela me tratava dessa manrira) — É assim mesmo!

E calou-se, depois de sua segura afirmação, como os grandes e infalíveis sábios do nosso Brasil.

Tomei café e fui ter com Gonzaga de Sá na sua vasta sala de trabalho. Ele, recostado na cadeira de balanço, lia atentamente um jornal. Saudamo-nos e logo lhe obervei:

— Julgava-te na arrumação; mas vejo que estás embevecido na leitura das gazetas.

— Uns jornais franceses que acabo de receber. Adiei a arrumação.

— Qual é, o jornal?

— O Figaro. Leio um por dia, como se fosse publicado aqui e entregue de manhã na minha porta. Ando sempre, por isso mesmo, atrasado com os acontecimentos mundiais.

— Em que ponto está a Conferência de Haia?

— Na classificação das nações...

— Não cheguei ainda aí... Estou atrasado...

— Onde estás?

— Na nomeação de comissões.

— De modo que sempre andas quinze dias atrasado com o mundo?

— Às vezes, muito mais... Ora! o tempo. Uma noção subjetiva, que só existe para nós... Uma fatalidade da nossa organização cerebral, independente da experiência. Um critério, uma categoria para a nossa interpretação humana dos fenômenos... De que vale?

Nada respondi, porque não tinha nada a responder. O meu velho amigo, após um pequeno silêncio, perguntou-me:

— Viste o Aleixo Manuel?

— Vi.

— Que te pareceu?

— Aplicado e inteligente.

— Graças a Deus.

E tornou de novo ao jornal francês que estava lendo. Apanhei os jornais do dia, em cima de mesa do centro; li-os e, assim pelas nove horas, despedi-me. Não aceitei o almoço; chegaria tarde à Repartição.

Ao despedir-me, Gonzaga me pediu:

— Vem mais a miúdo, para conversar com Aleixo. Ele vive tão só...

Depois da morte de seu compadre, a sua constante preocupação era o afilhado. Sem nenhum pretexto, sem causa nem motivo, em meio de uma palestra sobre assunto muito diverso, dava-lhe para falar no filho do Romualdo. Uma vez dizia: Preciso levá-lo ao Museu; outra, talvez fosse bom pô-lo de interno, para ganhar convivência, desembaraço, hábitos de sociabilidade. Que achas?

Eu possuía poucas aptidões pedagógicas, quase nenhumas; e respondia evasivamente. Notava, entretanto, que a presença constante da criança, a contemplação dela todo o dia, na intimidade familiar, tinha acelerado aquela alteração de humor no temperamento do meu velho amigo, que já observei; e trouxera mais uma carga de apreensões que não lhe eram habituais. Mudara... Gonzaga amava ternamente o rapaz; via-se bem que o queria como seu filho, e assim o tratava nos menores atos, e, nas mais simples palavras que lhe dirigia, punha a meiguice e a doçura de pai. Depois desta visita, mais de uma vez, porém, eu o surpreendi a olhar o afilhado com olhar de sibila. Havia não sei que grande esforço de penetração na sua mirada, que eu quis bem crer estar ele no propósito de decifrar o futuro do pequeno. Certa vez, depois de um olhar destes, disse-me:

— Esta vida é um conto do vigário...

Só a presença do afilhado não me bastava para explicar a mudança de humor de Gonzaga de Sá, que, agora, via e visitava amiudadamente, conforme ele me pedira.

É verdade que sempre o conheci triste; mas de uma tristeza, por assim dizer, filosófica, geral, essa tristeza de sentir profundamente a mesquinhez da nossa condição humana, em luta sempre com o imenso dos nossos desmarcados sonhos e desejos. Porém, agora, a sua tristeza era mais atual, mas terra à terra. Dir-se-ia que a presença do Aleixo Manuel, o afilhado, tinha levantado do fundo da pessoa do meu amigo lembranças dolorosas que sepultara para sempre; lembranças essas que eram seu segredo e das quais nunca me falou e não encontrei o mínimo indicio para descobri-las nos papéis que ele me legou, por testamento, juntamente com umas centenas de livros. Lembro-me, ao escrever estas linhas, que um dia ele me dissera:

— Já tiveste algum amor?

— Nunca.

— Olha, que falo de amor! Hein?

— Compreendo.

— É preciso tê-lo... Tenho te dito sempre que os antigos afirmavam que Vênus é uma deusa vingativa... Não perdoa e tu sofrerás se não lhe prestares culto...

— Não há Vênus, retorqui.

— Quem sabe lá?

Trocávamos essas palavras nos últimos dias da sua existência, quando a alteração do seu gênio já se refletia claramente na saúde; e eu via bem que Gonzaga de Sá fanava-se, dissolvia-se vagarosamente ao fogo lento de suas secretas recordações e dos desgostos que o aparecimento delas lhe fizera assomar na alma. As faces se encovavam; os olhos, seus doces olhos, perdiam o brilho, apareciam mortiços e ganhavam uma estranha auréola. Não andava com a mesma firmeza, e o seu humor continuou a desequilibrar-se ainda mais. De uns tempos em diante, a sua palestra era frequentemente cortada por bruscas explosões de irritação, de queixumes indignos de sua altivez, em geral pueris e sem fundamento, passando espantosamente da mais intensa tristeza para a mais ruidosa alegria.

Aleixo Manuel, o afilhado, trouxe-lhe — quem sabe? — para a vida alguma coisa que queria não viesse jamais, ou não reaparecesse nunca; e ele sofria com isso, entristecia-se, alquebrava-se de corpo e alma, sem que fosse possível a mim atribuir diretamente tais modificações no meu amigo, ao dócil, ao meigo, ao obediente. Aleixo Manuel, que ele pusera em sua casa a fim de ficar sendo seu filho.

— Hei de fazê-lo gente, dizia-me às vezes, cheio de esperança e de alegria.

Não pôde levá-lo até o fim. Ao iniciar o pequeno o curso de preparatórios, logo por aí, foi quando ele colheu a flor, e caiu, e morreu...

A tia levou o menino até ao fim, com todo o carinho e abnegação.

Bênçãos a ambos, que, na sua missão educadora, souberam ser bons, sem interesse e sem cálculo de espécie alguma, apesar de todos os dons terem concorrido para ampliar, com o hábito de análise e reflexão que o estudo traz, a consciência da criança que devia ficar restrita aos dados elementares para o uso do viver comum, sem que viessem surgir nela uma mágoa constante e um fatal princípio permanente de inadaptação ao meio, criando-lhe um mal estar irremediável e, consequentemente, um desgosto da vida mais atroz do que o pensamento sempre presente da Morte!

Que importa isso, porém, se as tensões dos velhos foram generosas; e, se o sofrimento do pequeno, exteriorizado algum dia em grandes atos ou em grandes obras, possa concorrer mais tarde para o contentamento de muitos dos seus iguais que vierem depois!? Que importa!?

A felicidade final dos homens e o seu mútuo entendimento têm exigido até aqui maiores sacrifícios...