40 anos no interior do Brasil/Maquinistas na velha ferrovia
Se nossos maquinistas do começo da ferrovia precisassem prestar o exame alemão para maquinistas, fracassariam sem exceção. Isso porque uma grande parte não sabia ler nem escrever, mas apesar disso, fazia seu trabalho. A carreira de condutor era, naquele tempo, muito simples: dois a três anos como faxineiro, três a quatro como foguista, e então, se vagasse um lugar, maquinista. Não havia exames, decidia-se simplesmente pela reputação do indivíduo, como ele havia lidado com algum descarrilamento e como eram suas outras atitudes. E não faltariam descarrilamentos para que os candidatos pudessem treinar. Era uma situação tão diária que já nem se fazia um grande alarido por causa disso; somente tem de se pensar que os descarrilamentos não eram tão ruins também pela paciência brasileira, pois a velocidade do trem normalmente chegava apenas a 25 k/h em trens de carga e 36k/h em trens de passageiros. Porém, não se pode esquecer que a ferrovia tinha somente uma bitola de um metro e que curvas de 100 metros eram permitidas em elevações de até 3%. Nossos maquinistas — vejo todos eles diante de mim — eram, na sua maioria, mulatos, raros os de pele negra ou branca; a maioria alegre, mesmo com os duríssimos trabalhos na construção da ferrovia. Na linha sul um deles um dia reclamou que possuía uma jornada ininterrupta de 20 horas e, consequentemente, apenas 4 horas para dormir. O engenheiro substituto, cujo rosto parecia uma máscara de ferro, virou-se para ele e disse: “aqui na construção precisa-se aprender a dormir rápido, quando se tem pouco tempo pra isso!”, e voltou-lhe as costas novamente. O maquinista observou por um instante as costas amplas do interlocutor, e então se afastou lentamente, balançando a cabeça. Mesmo assim ficou refletindo sobre o problema do “sono rápido”, mas não conseguiu encontrar uma solução. Jornada de trabalho de 20 horas parecia bastante ruim, mas na construção, enquanto cada trem era carregado ou descarregado com terra ou pedras, o condutor tirava uma soneca. Seja como for, a exploração extra não era habitual; no funcionamento da ferrovia as coisas eram mais tranquilas.
Fui chefe de seção em 1894, quando ainda não se podia falar de “funcionamento” no trajeto recém-construído.[1] Um trem de passageiros e dois a no máximo três trens de carga, ou às vezes nenhum, constituem o serviço do dia. Após minha nomeação, quando eu saltei pela primeira vez do meu ramal na estação inicial para a locomotiva do trem de carga, pisei em algo macio e quase cai; ao mesmo tempo uma alma atormentada de cachorro soltou um grito alto. Eu havia pisado no rabo de um belo perdigueiro que estava deitado aos pés do maquinista.
“O que é isso, Gabriel?”, perguntei ao maquinista.
“Esta é minha Kora!” Respondeu bem sossegado.
“Então ela vai junto?”.
“Ela sempre vai junto, e o senhor deveria ver como é um animal inteligente!”, e com severidade disse para Kora: “saia e pergunte pela autorização de partida!” O cachorro saiu, e desapareceu no prédio da estação. Então o maquinista puxou uma única vez, rapidamente, o apito da locomotiva e num instante o cão voltou, pulou na máquina e escondeu-se sob os pés do seu dono. Eu não queria parecer tão severo e por isso não disse nada aos outros. O trem partiu e atravessou as muitas curvas no campo acidentado da linha. Estes Campos Gerais[2] têm uma magia própria; aparentemente monótonos, mas revelam em cada curva da linha outras formações em uma tonalidade que parte do cinza-claro e marrom como cabelos prateados através do talo e da folha da erva barba de bode. Chegamos a um platô alto, e de repente o trem parou. O condutor da locomotiva pegou de um canto uma bela espingarda, assobiou para seu cachorro e saltou do trem.
“O senhor não vai caçar por aqui, vai?”.
“Mas é claro! Nós fazemos isso sempre”.
“Mas chegaremos a tempo no cruzamento?”.
“Evidentemente; pois o condutor do trem contrário também está caçando, e nós não ficaremos parados mais do que meia hora”.
Dito e feito; e em meia hora o amigo Gabriel havia abatido uma Perediz e cinco Cadornas.
Outro dos nossos maquinistas era um descendente de polonês. A ambição deste rapaz perturbado era dirigir rápido, e isso nesse trajeto que de modo algum era seguro. “A máquina tem que correr e o maquinista morrer!”, este era o seu lema. Repetia esse dito constantemente e finalmente também o realizou; pois certa vez passou por uma ponte provisória de madeira, que estava danificada, com tamanha velocidade que tombou junto com a locomotiva e uma parte dos vagões, onde o maquinista ficou preso na lama junto com a locomotiva. Tiramos a máquina com muito esforço, mas ele, mesmo durante o trabalho, ficou tão profundamente imprensado embaixo da máquina que não conseguimos encontrar.
Ainda tínhamos o famoso Jorge Pistola. Na verdade ele tinha outro nome, mas ninguém conhecia. Cada três palavras suas dizia “Pistola”, assim como o bávaro fala sakra e o inglês goddam, daí o nome. Era um rapaz muito engraçado, pequeno e gordo. Eu viajei uma vez com ele na locomotiva; repentinamente ele tirou o boné e amigavelmente saudou para fora. Eu também olhei para fora, mas não vi uma alma. Isso se repetiu de tempos em tempos, até que finalmente perguntei lhe que fantasma ele sempre cumprimentava. “Mas senhor Roberto!”, respondeu, “Eu não cumprimento ninguém, só tiro o boné para o meu santo em todos os lugares que tive algum descarrilamento muito sério e ele me protegeu, para que eu ainda possa comer o meu feijão”.
Tínhamos completado a ponte provisória sobre o Rio dos Papaguayos, e agora devíamos passar com a locomotiva sobre ela pela primeira vez. A pontezinha tinha doze metros de altura e quando se olhava lá para baixo parecia bem desagradável. Só que há um problema com uma nova ponte de madeira. Quando a locomotiva passa sobre ela pela primeira vez, os tarugos se acomodam naturalmente nos buracos e por isso fazem um rangido. O maquinista Jorge coçou atrás da orelha, deu uma cusparada na água em forma de um grande arco e disse “pistola”; mas ainda não pôde cruzar a ponte, pois esta não estava completamente concluída e estavam trabalhando com muita pressa. No dia seguinte chegaram o engenheiro-chefe, o engenheiro substituto, o diretor e mais alguns graúdos da companhia, os quais queriam acompanhar o grande acontecimento da primeira viagem, a fim de depois terem a oportunidade de bater um papo inteligente, discursar bastante e tomar muito champanhe no inevitável banquete. O grande dia começou. Tudo estava pronto. O trem extra com os convidados importantes chegou, parou perto da ponte, manobrou suavemente para trás e nossa menor locomotiva com Jorge Pistola no lugar mais importante engatou-se no trem. O chefe me solicitou que instruísse Jorge mais uma vez e mandou chamá-lo. Ele estava radiante de alegria. Agora começou uma advertência. “Arranque bem devagar, pare um instante sobre a ponte, então devagar — compreendeu? DE-VA-GAR — continue, e só quando o último vagão estiver em cima da ponte você poderá acelerar”. Jorge disse: “Pistola! Isso é fácil e tudo será feito!”. Eu quis ficar na locomotiva por uma questão de segurança, mas o chefe quis me ter por perto, pois tinha muitas perguntas para fazer e não eram frequentes as suas vindas até aqui. Todos se instalaram e a viagem começou. A ponte tinha setenta e dois metros de comprimento. Quando a locomotiva estava passando pelo primeiro terço começou um rangido do madeirame que se comprimia em seus encaixes; também foi sentida uma leve oscilação, pois a locomotiva comprimia algumas partes. Todos os rostos mostravam uma reação de tensão, por mais que não quisessem demonstrar. O chefe explicou, mas no bufar da locomotiva e no ranger da ponte quase nenhuma palavra foi entendida. De repente — o que é isso? Um solavanco que todos caímos para trás, um apito agudo da locomotiva que pareceu dar um pulo para frente, e depois corremos a todo vapor, de modo que a máquina e os vagões eram sacudidos de lá pra cá e um grito de horror geral ressoou. O chefe gritou para mim, eu berrei para o maquinista, fui até a janela, saquei o revólver e dei dois tiros para cima em sinal de parar; pois freios a ar e esses brinquedinhos modernos nós não possuíamos. Mas a jornada infernal continuava a toda velocidade. Logo depois da ponte há uma curva para a esquerda. O chefe estava gesticulando e — no momento seguinte ele estava sentado no colo do diretor que é pressionado com suas costelas contra uma cadeira. Um dos convidados sentou-se no chão. Estávamos subindo morro acima. As coisas foram mais devagar. Por fim, um solavanco e o trem para, já estou na escada e mal o trem para, corro pra frente. Lá está Jorge, descendo lentamente da máquina e vindo ao meu encontro. “O senhor é um jumento!” Gritei com ele e na minha aflição até falei em alemão. “Como o senhor pode atrever-se a dirigir tão perigosamente quando teve instruções detalhadas?”. O chefe chega e começa a praguejar e uma tempestade cai sobre o gordo Jorge, como se ele tivesse matado alguém. Os próprios convidados tomaram parte nas reprimendas. O diretor continua sentindo dores em seu quadril e fala pomposamente. E Jorge? — ele está no meio das pessoas que gritam e gesticulam, retorce seu boné nas mãos e calmamente senta no chão resignado; para mim parece até que ele sorri um pouco, ainda que somente com o canto da boca. Finalmente o diretor dirige-se a ele como uma divindade punitiva.
“Diga-me sinceramente meu filho, o que te levou a desprezar as ordens e dirigir como um louco, podendo ter até causado o desabamento da ponte?”
Jorge levantou os olhos. Todo acanhamento fugiu do seu rosto.
“Sim, excelência, como a ponte começou a ranger e a gemer, eu senti nos meus próprios ossos e pensei que a coisa tinha desmoronado. E de repente foi como se meu santo gritasse para mim: ‘Jorge, salva tua máquina e deixa o que está pra trás dela ir pro diabo!’ E então eu arranquei. Eu não tenho culpa, excelência, a culpa é do santo”.
Reinou o silêncio por um momento. Jorge ficou lá, inocente como um cordeiro. Então um convidado desatou a rir uma sonora gargalhada. “O santo é culpado! Muito boa! Muito boa!”, “Mas Jorge” falou o diretor, “nós deveríamos ir pro diabo?”
“Excelência, eu não disse isso, foi o santo!”
“Sim, meus senhores”, e o diretor se virou aos presentes. “Eu não sei como os senhores estão com o santo, em todo o caso ainda podemos ficar satisfeitos que ele nos permitiu sobreviver!” Falou e se dirigiu, rindo, para o seu vagão. Todos riram também e seguiram-no. Jorge olhou dissimulado para trás, riu com deboche e andou lentamente para sua máquina. Eu me lembrei vividamente do conto “Raposa de Reineke”.[3]
- ↑ É muito provável que o autor se refira aqui à Estrada de Ferro São Paulo - Rio Grande (EFSPRG), cuja construção então avançava em sua linha Norte (entre Itararé e Ponta Grossa). (NdH)
- ↑ Campos Gerais do Paraná é uma expressão que denomina uma ampla região geográfica associada a “ [...] campos limpos e matas galerias ou capões isolados de floresta ombrófila mista, onde aparece o pinheiro araucária”. In.: DICIONÁRIO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DOS CAMPOS GERAIS. Ponta Grossa: Universidade Estadual de Ponta Grossa, s. p. Disponível em https://www2.uepg.br/dicion/os-campos-gerais-do-parana/#os-campos-gerais Acessado em 13/11/2020. (NdH)
- ↑ Fábula de JW. Goethe escrita em 1794, onde são descritas em forma de paródia e alegorias as façanhas de uma raposa na corte de um rei (leão) refletindo uma sociedade medieval corrupta, com todas as suas fraquezas humanas e conflitos sociais. (NdT)
Este trabalho é regulado nos termos da licença Creative Commons - Atribuição-Compartilha Igual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).