Desceu a rua do Lavradio, atravessou a praça de D. Pedro I sem olhar para os lados, e seguiu pela rua da Carioca até o Largo do Paço. Penetrou no pequeno jardim defronte da Capela Imperial e assentou-se um instante num dos bancos laterais, a olhar abstratamente para o mal iluminado palácio do Imperador, que nessa tarde havia descido de Petrópolis. Depois ergueu-se com um grande suspiro, e, de chapéu na mão e passos lentos, encaminhou-se para uma tasca do Mercado, pediu aguardente de cana, bebeu de um trago mais de meio copo, e tomou afinal a direção do ponto das Barcas Ferri.

Ao chegar aí, olhou para o mar; a noite estava límpida e toda afogada de estrelas. Muita gente descia de Niterói; senhoras e mulheres do povo recolhiam-se à Corte, trazendo ao colo, ou arrastando pela mão, crianças tontas de sono que rabujavam.

Bateram onze horas.

Gustavo comprou o seu bilhete de passagem com os últimos duzentos réis que possuía, cruzou a estação, entrou na barca, subiu à coberta, e foi assentar-se à proa com o cotovelo na grades da amurada e o rosto apoiado a uma das mãos.

Ninguém lhe via as lágrimas.

Em breve a máquina principiou a roufenhar, movendo no ar os gigantescos braços da balança, e a embarcação começou a mexer-se e a desgarrar-se do pontão flutuante, tranqüila, pesada e lenta, como um terciário paquiderme que abrisse o nado nas suas águas favoritas.

Havia poucos passageiros no tombadilho. Um grupo de rapazes, ameijoados num dos bancos do centro, conversava alegremente, dizendo versos em voz alta e falando de poetas brasileiros. Gustavo ouviu pronunciar o seu nome e ouviu declamar sonetos seus. O homem do leme vigiava o horizonte, a espiar o rumo da viagem pelo postigo da sua guarita.

E a melancolia do mar erguia-se para o céu, bebendo a luz das estrelas.

Gustavo acendeu um cigarro, e pôs-se a andar de uma ponta para a outra do convés.

A barca adiantava-se, arfando.

Ao meio da baía, ele atirou fora o cigarro, procurou um ponto mais deserto e sombrio ao lado da chaminé, transpôs o gradil da amurada e, de pé sobre as bordas desta, olhou por algum tempo o mar; e depois cerrando os olhos, de um salto se precipitou nele.

As águas fecharam-se sobre o seu corpo.

— Homem ao mar! gritou surdamente uma voz à popa.

Mas ninguém deu por isso, nem se moveu, e a barca continuou inalteravelmente a cortar a baía em direção de São Domingos de Niterói.

Só daí a três dias, quando as ondas rejeitaram à praia do Flamengo o cadáver do suicida e a polícia o recolheu ao fúnebre depósito da ladeira da Conceição, pois ainda não estava concluído o necrotério vizinho ao Arsenal de Guerra foi que, pelas circunstância das notícias da imprensa, veio a saber Ambrosina do triste fim da sua recente vítima.

O trágico desfecho daquele desgraçado drama de amor e de depravação, que os jornais diários trataram logo de explorar, a impressionou profundamente pelo seu lado espetaculoso, e veio a servir para acrescentar ao novo capricho da loureira pelo tal guarda-marinha de dezoito anos, uma nota sentimental e fatídica, que o tornava muito mais esquisito e saboroso.

E a farsante Condessa teria sem dúvida tirado muito maior partido desse teatral episódio da sua espaventosa existência, se nessa ocasião não lhe aparecesse uma alta e sedutora empresa, a que ela de pronto se lançou, sem distração da menor partícula de sua atividade.

É que acabava de cair sobre o Rio de Janeiro, depois de uma divertida viagem de correção à volta do mundo civilizado, o famoso e estouvadíssimo príncipe D. Felipe sobrinho, do Imperador e aluno da Escola Militar.

D. Felipe era o tormento do velho Monarca, que na sua patriarcal rapidez de atos públicos e privados, nem lhe daria de novo acesso em palácio ao lado dos netos infantes, se não foram as intercessões da virtuosa e compassiva Imperatriz Dona Teresa. D. Pedro II não perdoava ao sobrinho as estroinices e extravagâncias, que às vezes, força é confessar, degeneravam em ribaldaria e maldade.

Dera motivo à correcional viagem de que agora tornava sua Alteza, uma terrível diabrura celebrizada nos anais contemporâneos da vida fluminense; e foi que um dia, depois de uma formidável desordem no jardim do Alcazar, a polícia, no meio de grande pancadaria, cadeiras partidas, mesas e cabeças rachadas, colhera vários estudantes da Praia Vermelha, entre os quais se achava o incorrigível príncipe.

D. Felipe foi, com os seus colegas de curso acadêmico e companheiros de pândega, conduzido pela força policial à Escola Militar, porque só aí podiam, ele como aqueles, serem submetidos à prisão.

Imagine-se em que estado não iriam!

Eram três horas da madrugada quando lá chegaram, e o fato, aliás comum, teria passado sem notoriedade, se o demônio do rapaz não se lembrasse de, ao enfrentar com o corpo de guarda da imperial academia, sacar da algibeira o Tosão de Ouro que levava consigo, e, com ele pendurado ao pescoço, entrar solenemente no bélico recinto.

Como de rigor, o Oficial de guarda mandou bradar armas ao Tosão de Ouro, o que equivalia a dar sinal da presença do Imperador, pois no Brasil só este até aí ousara servir-se dessa cavaleiresca ordem de Felipe o Bom, apesar de ser ela facultativa aos outros membros varões da família imperial brasileira.

Fez-se alarma. Toda a Escola ferveu logo num levante, ao estrugido de tambores e clarins que chamavam a postos o Estado Maior.

E os velhos professores tiveram, em sobressalto, de afrontar o seu reumatismo, e precipitarem-se estremunhados aos competentes uniformes de grande gala, para receber a suposta visita de Sua Majestade.

Foi por entre a formatura em peso da veneranda corporação da Escola, que D. Felipe, esbodegado e sorridente, atravessou para a prisão.

Calcule-se daí o efeito de semelhante escândalo, e por ele quanto se não chocaria o circunspecto Monarca.

Agora, de volta à Corte, D. Felipe vira uma vez Ambrosina às pernadas com um pobre cançoneta, naquele mesmo famoso teatrinho onde se engendrara pretexto a referida anedota histórica, e logo correu à caixa para se fazer apresentar à festejada exibicionista de belas formas, procurando incontinenti requestá-la de assalto.

Ora, a D. Felipe não dava o Brasil mais do que um conto de réis por mês, casa, trens, criados e cavalos; mas, como sabiam todos os mercadores do Rio de Janeiro que as contas do pândego príncipe, por maiores e absurdas, eram sempre, mais cedo ou mais tarde, liquidadas pelo erário imperial, nem só não lhe regateavam crédito, como ainda procuravam espertalhonamente meter-lhe pela cara tudo aquilo que pudessem.

Ambrosina tinha disso perfeita ciência, e rejubilava por conseguinte com a sua heráldica conquista.

Sua Alteza, ao cabo de alguns meses, propôs, tomá-la para si exclusivamente, com a condição, porém, de que a amante não havia de pôr os formosos pés em tábuas de ribalta, nem dar trela a guardas-marinhas, enquanto estivesse em companhia dele.

Ela aceitou, arroubada de contentamento. E foi essa a fase mais brilhante do seu efêmero fastígio; foi como vai ver o leitor, o momento apogístico da sua venusta glória, o delicioso instante da embriaguez de Safo, mas também o Leucale fatal, donde havia de rolar a Condessa Vésper ao abismo comum das mercadorias de amor.