A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Paraíso/VII
Desaparecem os bem-aventurados cantando. Beatriz explica como a crucificação de Cristo restituiu ao homem a dignidade perdida, a liberdade que lhe foi conferida por Deus. Os anjos e os homens por sua natureza são livres e imortais. O homem porém, pecando, abusou da sua liberdade, e deformou a imagem de Deus que tinha em si. Não podia reparar a falta por si mesmo, pois não podia humilhar-se tanto quanto Adão, em seu orgulho, quis subir. A Deus convinha ou perdoar ou punir. Na sua sabedoria infinita, Deus perdoou e puniu no mesmo tempo. Puniu a humanidade em Jesus Cristo e nele a fez novamente livre.
“Hosannah Sanctus Deus Sabaoth,
Superillustrans daritate tua
Felices ignes horum malacòth!”
Assim, voltando à melodia sua,
Cantar ouvi essa alma venturosa
Em quem dúplice lume se acentua.
Tornam todas à dança jubilosa,
E súbito da vista se apartaram
Velozes, como flama fulgurosa.
Disse entre mim, pois dúvidas me entraram:
“Fala à senhora tua, fala; à sede
Rocio as palavras suas te deparam.”
Torvação me assenhora e a voz me impede,
Que apenas B com I C E conjugava:
Acurvei, como quem ao sono cede.
Mas Beatriz do enleio me tirava,
Com sorriso, que a mente me ilumina
E aditara entre as chamas começava:
— “Como bem vejo, dúvida domina
A tua alma: — a vingança, que foi justa,
Punição teve, da justiça di?na?
“Esclarecer-te o espírito não custa.
Atende bem: verdade preminente
Das vozes minhas co?a expressão se ajusta.
“Aceitar não querendo, obediente,
Saudável freio, o homem, sem mãe nado,
Perdeu-se a si, perdeu a humana gente.
“Muitos séc?los enferma do pecado,
Jazeu ela não erro engrandecido
Té que o Verbo de Deus fosse encarnado.
“Por ato só do Eterno Amor, unido
À natureza se há, que ao mal se dera,
Depois de esquiva ao Criador ter sido.
“No que vou te dizer bem considera.
A natureza, a que se uniu beni?no
Em pessoa, nasceu boa e sincera.
“Por si mesma, fugindo em desatino
Da vereda da vida e da verdade,
Do Paraíso se exilou divino.
“Da Cruz a pena, em face da maldade
Da natureza, a que Jesus baixara,
Foi a mais justa em sua gravidade.
“Nunca injustiça igual se praticara,
Atenta essa Pessoa, que há sofrido,
Que à natureza humana se ajuntara.
“Contrastes, pois, de um ato hão procedido:
Folgam Judeus da morte a Deus jucunda,
Foi ledo o céu e o mundo espavorido.
“E não te mova sensação profunda
Ouvir que uma vingança, que foi justa,
Vingada ser devia por segunda.
“Vejo-te a mente por vereda angusta
Levada a estreito nó de dubiedade,
Que solver mor esforço ora te custa.
“Dirás: — discerne o que ouço, na verdade;
Mas porque Deus nos desse está-me oculto,
Remindo-nos tal prova de bondade. —
“Este decreto irmão, está sepulto
Aos olhos do que ainda o entendimento
Não tem de Amor na flama ainda adulto.
“É mistério em que luta o pensamento
Sem fruto conseguir de tal porfia,
Mas foi o melhor modo. Ouve-me atento!
“A Divina Bondade que desvia
De si o desamor, arde e flameja,
Por eternais primores se anuncia.
“Diretamente o que emanado seja
Dela é sem fim; eterna impressão fica
Do que no seu querer supremo esteja.
“O que assim nasce, não sujeito fica
Das causas secundárias à influência
E liberdade plena significa.
“Mais lhe apraz, se é conforme à sua essência:
Que o santo Amor que em toda cousa brilha,
Mais vivo é no que encerra esta excelência.
“Aos homens de tais bens cabe a partilha:
De tais predicados se um falece,
Sua nobreza já decai, se humilha.
“Só por pecado dessa altura desce;
Do Sumo Bem não mais reflete o lume,
Semelhança não mais dele oferece.
“E o grau sublime seu não mais assume,
Se não contrapuser ao do pecado
Deleite mau das penas o azedume.
“Quando o gênero humano, infeccionado
Todo no germe seu, foi dessa alteza
E do seu Paraíso deserdado,
“Reaver só pudera (com certeza
Verás, se bem cogitas), intervindo
Um dos meios, que aponto por clareza:
“Ou Deus, por graça infinda, remitindo;
Ou — porque, de si mesmo, se convença —
Das culpas suas o homem se remindo.
“Para sondar a profundeza imensa
Dos eternos conselhos, prende à mente
As razões que o discurso meu dispensa.
“O homem não podia, de indigente,
As dívidas solver: nunca pudera
Curvar-se tanto, humilde e reverente,
“Quanto, rebelde, se elevar quisera.
Eis por que redimir-se do pecado
Só por si mesmo ao homem não coubera.
“E, pois há sido do divino agrado,
Por clemência ou justiça e ambas juntando,
Ser ele à vida eterna aparelhado.
“A feitura do Autor ao gosto estando
Inda mais, quando a imagem nos of?rece
Do peito, de quem vem piedoso e brando,
“A Bondade que em tudo transparece,
Em prol vosso os dois modos reunia:
Um somente bastar-lhe não parece.
“Entre a noite final e o primo dia
Ato igual não se fez alto e formoso
Desse modo por um, nem se faria.
“Dando-se, há sido Deus mais generoso,
Por que o home? a se erguer se habilitasse,
Do que só perdoando carinhoso.
“Outro meio qualquer, que se empregasse
Não bastara à Justiça, se humilhando
De Deus o Filho à carne não baixasse.
“Para de todo seres doutrinado
Eu torno a um ponto, por que vejas claro,
Como eu, o que zelosa hei te explicado.
“Dizes: — no fogo e no ar, se bem reparo
Na terra e nágua vejo e em seus compostos
Corrupção que destrói sem anteparo.
“Na criação por Deus foram dispostos:
De corrupção isentos ser deveram,
Certos sendo os princípios por ti postos. —
“Criados, meu irmão, se consideram
Os anjos e dos céus o que há no espaço,
Inteiros, puros sempre quais nasceram.
“Elementos e quanto no regaço
Da natura por eles se combina
De virtude criada of?recem traço.
“Criou-lhes a matéria a lei divina,
Criando logo a força informativa,
Que nos astros, que os cercam, predomina.
“Dos lumes santos moto e luz deriva
Dos brutos alma, e plantas igualmente,
Por compleição potencial passiva.
“A vida nossa vem diretamente
De Deus, Supremo Bem, que em nós acende
Amor tal, que o deseja eternamente:
“Daí, por dedução, também descende
Vossa ressurreição, se ao ser e à essência
Da humana carne o teu esp?rito atende,
Quando o primeiro par teve existência.” —