Fixei a luneta e cheguei-me à janela do meu quarto: vi a prima Anica debruçada à janela do seu.

Lembrou-me a idéia que dos sentimentos dessa moça egoísta, fria, incapaz de amar, eu fizera pela visão do mal, e retirei a luneta com repugnância.

Momentos depois a reflexão me acudiu; e compreendi que exatamente pelo conhecimento que eu já tinha daquela mulher-cálculo, mulher-aritmética, mulher mais terra do que céu, mais matéria do que espírito: mais pó do que alma, era nela que melhor experimentaria a visão do bem.

E fitei a prima Anica, que parecia estar meditando.

Vi-lhe o rosto que eu conhecia, o sinalzinho azul que o engraçava, os cabelos formosos, e...

Passaram os três minutos, e o coração e a alma de Anica se abriram, se patentearam ao meu espírito perscrutador.

Oh! como fora caluniadora e perversa a visão do mal!

Anica é um anjo de inocência e simplicidade, e ao mesmo tempo uma senhora de juízo reto e de exemplar virtude. O que eu julgara nela gelo do coração era virginal recato, o que eu tomara por cálculo material e egoísta era a reflexão e a sabedoria instintiva de uma mulher-modelo; zelosa, sem ciúmes rudes e ridículos, econômica sem vileza, amante sem paixão em delício, serena, complacente, dedicada, livre do amor da ostentação e do luxo, de costumes simples, estremecida pela família paciente, suave, meiga, Anica é a mulher que reúne todos os dotes para felicitar o homem que for seu esposo.

Encontrei a minha imagem na alma de Anica; não porém como a visão do mal ma mostrou: encontrei-a amada, ternamente amada, encontrei-a cercada dos cuidados e do interesse de um sentimento tão profundo como generoso que só lembrava a minha fortuna, a minha riqueza com o receio de que fossem motivos que excitando a ambição de alguma outra mulher, prejudicassem às aspirações do seu amor desinteressado e puro.

Vi na alma de Anica também a imagem do mano Américo, mas somente afagada por inocente e mimosa afeição fraternal.

Horizonte sem nuvens, mar sem tempestades, céu de lua cheia luminoso e sereno, jardim de belas flores sem espinhos, terra de solidão sem florestas negras, nem abismos, nem antros de feras, tranqüilidade sem tristeza, saudade sem amarguras, flama sem incêndio, recato, modéstia, melindre, abnegação, amenidade, eis o que é a prima Anica.

De súbito ela volveu os olhos para a minha janela, percebeu que eu a fitava com a minha luneta mágica e sorriu-se docemente para mim.

Que sorrir! Foi como um raiar de aurora.

Deixei cair a luneta, e quase me ajoelhei para adorar a angélica moça.

Creio nos amores que de repente conquistam e escravizam os corações.

Creio nas paixões que de improviso se acendem.

Creio nos. amores e nas paixões que os romances nos descrevem inspiradas em um momento pelos encantos de jovens formosas e de prestigio deslumbrante.

Creio; porque eu sinto que amo apaixonada e perdidamente a prima Anica.

Eu quero ajoelhar-me, prender-me aos pés desta moça gentil, mimosa, rica de virtudes, quero ajoelhar-me a seus pés, prender-me aos seus pés como se me prendessem as asas de um anjo, que em sublime vôo me levasse à salvação, à glória suprema, ao céu.

Abençoada seja a visão do bem, se a prima Anica quiser aceitar a minha mão, o meu nome, e ser minha esposa, a santa companheira na minha viagem pela terra, a mulher unificada comigo nos trabalhos, e nos gozos da vida.