— Quando quizer que eu lhe apresente o meu amigo Menezes... dizia Estevão uma noite á viuva Magdalena.
— Ah! é verdade; um dia d’estes. Vejo que o senhor é amigo d’elle.
— Somos amigos intimos.
— Verdadeiros?
— Verdadeiros.
Magdalena sorrio; e como estava brincando com os cabellos do filho deu-lhe um beijo na testa.
A criança rio alegremente e abraçou a mãi.
A idéa de vir a ser pai honorario do pequeno apresentou-se ao espirito de Estevão. Contemplou-o, chamou por ele, acariciou-o e deu-lhe um beijo no mesmo lugar em que pousárão os labios de Magdalena.
Estevão tocava piano, e ás vezes executava algum pedaço de musica a pedido de Mgadalena.
N’essas e n’outras distracções lá passava as horas.
O amor não adiantava um passo.
Podião ser ambos duas crateras prestes a rebentar a lava; mas até então não davão o menor signal de si.
Esta situação incommodava o rapaz, acanhava-o, e fazia-o soffrer; mas quando elle pensava em dar um ataque decisivo, era exactamente quando se mostrava mais cobarde e poltrão.
Era o primeiro amor do rapaz: elle nem conhecia as palavras proprias d’esse sentimento.
Um dia resolveu escrever á viuva.
— É melhor, pensava elle; uma carta é eloquente e tem a grande vantagem de deixar a gente longe.
Entrou para o gabinete e começou uma carta.
Gastou n’isso uma hora; cada phrase occupava-lhe muito tempo. Estevão queria fugir á hypothese de ser classificado como tolo ou como sensual. Queria que a carta não respirasse sentimentos frivolos nem máos: queria revelar-se puro como era.
Mas de que não dependem ás vezes os acontecimentos? Estevão estava relendo e emendando a carta quando lhe entrou por casa um rapazola que tinha intimidade com elle. Chamava-se Oliveira e passava por ser o primeiro janota do Rio de Janeiro.
Entrou com um rolo de papel na mão.
Estevão escondeu rapidamente a carta.
— Adeos, Estevão! disse o recem-chegado. Estavas escrevendo algum libello ou carta de namoro?
— Nem uma nem outra cousa, respondeu Estevão seccamente.
— Dou-te uma noticia.
— Que é?
— Entrei na litteratura.
— Ah!
— É verdade, e venho ler-te a primeira comedia.
— Deos me livre! disse Estevão levantando-se.
— Has de ouvir, meu amigo; ao menos algumas scenas; dar-se-ha caso que não me protejas nas lettras? Anda cá; ao menos duas scenas. Sim? É pouca cousa.
Estevão sentou-se.
O dramaturgo continuou:
— Talvez prefiras ouvir a minha tragedia intitulada — O Punhal de Bruto...
— Não, não; prefiro a comedia: é menos sanguinaria. Vamos lá.
O Oliveira abrio o rolo, arranjou as folhas, tossio e começou a ler o que se segue, com voz pausada e fanhosa:
« Fechada! A sinhá já se levantou?
« Já, sim senhor; mas está incommodada.
« O que tem?
« Tem... está incommodada.
« Já sei. (Comsigo) Os incommodos do costume. (A João) Qual é então o remedio hoje?
« O remedio? (Depois de uma pausa) Não sei.
« Está bom, vai-te!
« Bom dia, Sr. procurador...
« De causas perdidas. Só me occupo em procurar as perdidas. Procurar o que se não perdeu é tolice. A minha constituinte?
« Disse-me o João que está incommodada.
« Mesmo para V.S.?
« Mesmo para mim. Porque me olha com esse olhar? Tem inveja?
« Não é inveja, é admiração! De ordinario ninguem corresponde ao nome que recebeu na pia; mas o Sr. Cesar, benza-o Deos, não desmente que traz um nome significativo, e trata de ser nas paginas amorosas o que foi o outro nas batalhas campaes.
« Pois tambem os procuradores dizem cousas d’estas?
« De vez em quando. (Indo sentar-se) V. S. admira-se?
« Como não é de costume... quer um charuto?
« Obrigado... Eu tomo rapé (Tira a boceta) Quer uma pitada?
« Obrigado.
« Pois a causa da minha constituinte vai ás mil maravilhas. A parte contraria requereu assignação de dez dias, mas eu vou...
« Está bom, Sr. Freitas, eu dispenso o resto; ou então não me falle linguagem do fôro. Em resumo, ella vence?
« Está claro. Tratando provar que...
« Vence, é quanto basta.
« Pudera não vencer! Pois se eu ando n’isto...
« Tanto melhor!
« Ainda não me lembro de ter perdido uma só causa: isto é, já perdi uma, mas é porque nas vesperas de ganhar disse-me o constituinte que desejava perdêl-a. Dito e feito. Provei o contrario do que já tinha provado, e perdi... ou antes, ganhei, porque perder assim é ganhar.
« É a phenix dos procuradores.
« São os seus bons olhos...
« Mas a consciencia?
« Quem é a consciencia?
« A consciencia, a sua consciencia?
« A minha consciencia? Ah! essa tambem ganha.
« Ah! tambem?...
« Tem V. S. alguma demandazinha?
« Não, não, não tenho; mas, quando tiver, fique descansado, vou bater á sua porta...
« Sempre às ordens de V. S. »