A Reforma da Natureza (12ª edição)/1ª parte/Capítulo 11

CAPÍTULO XI

NEM TUDO EMÍLIA PERDEU



DONA BENTA estava examinando o galo da testa da negra, quando ouviu umas batidinhas na porta. Mandou que Narizinho abrisse. Eram as jabuticabas.

— Dona Benta — disseram elas muito zangadinhas — viemos queixar-nos da peça que a Emília nos pregou. Imagine que nos transferiu dos nossos galhos na mamãe-jabuticabeira para um pé de abóbora — uns talos molengões que andam pelo chão. E ficamos presas ali, encostadas à terra, a nos sujar de pós e ciscos. Ora, isso é um despropósito, porque somos frutas de galho e não do chão, como certos porcalhões que conhecemos.

(A Razinha cochichou para a Emília: "Isso deve ser indireta para os morangos.")

— Vocês têm razão, jabuticabinhas — disse Dona Benta — e vou repô-las todas no lugar certo. Impossível admitir que umas criaturas delicadas como vocês andem pelo chão. Chão é bom só para abóbora.

E voltando-se para Emília:

— Vá desfazer o que fez! — ordenou rispidamente.

Emília fez beicinho e disse para a Rã: "Ela era democrática quando saiu daqui. Depois que lidou com os ditadores da Europa, voltou totalitária e cheia de "vás". Pois não vou!" — e não foi! As abóboras e as jabuticabas tiveram de arrumar-se sozinhas.

Pedrinho veio dizer que as laranjas das laranjeiras estavam descascadas e havia um milhão de passarinhos em cima, dando cabo de todas.

Dona Benta explicou:

— Emília, eu reconheço as suas boas intenções. Você tudo fez na certeza de estar agindo pelo melhor. Mas não calculou uma porção de inconveniências que podiam acontecer — e estão acontecendo. As laranjas, por exemplo, seria ótimo se pudessem vir já descascadas — mas se fosse assim, tornava-se impossível o comércio das laranjas, o transporte de um ponto para outro. E além disso, descascadas, elas ficam muito mais sujeitas aos ataques das aves e insetos. A casca é uma defesa indispensável. Assim também as abóboras na jabuticabeira. São frutas muito grandes para ficarem em árvores; a Natureza sabe o que faz. Põe as frutas grandes no chão e as pequenas em árvores.

— Isso não! — protestou Emilia. — A maior fruta que eu conheço é a jaca e a jaca é fruta de árvore, ahn!

Dona Benta embatucou.

— Também fiz que as frutas das árvores dessem só nos galhos de baixo — continuou Emília — de modo a facilitar a colheita — e quero ver o que a senhora diz a isso.

Dona Benta declarou que essa reforma só era aceitável do ponto de vista humano, mas explicou que as frutas não existiam para que nós as apanhássemos e comêssemos — existiam para o bem da árvore e apareciam em todos os galhos, tanto os de baixo como os de cima, porque assim ficavam mais bem distribuídas pela árvore inteira, podendo vir em maior quantidade.

— Os galhos de baixo serão só metade dos galhos da árvore toda — disse ela. — Fazendo que as frutas só apareçam nos galhos de baixo, você diminui de metade o número de frutas de uma árvore.

Emília concordou que havia errado e, em companhia da Rãzinha, foi restabelecer o sistema antigo.

— Agora, sim — ia dizendo Emília — agora ela deu uma razão boa, clara, que me convenceu, e por isso vou desmanchar o que fiz. Mas com aquele "Vá!" do começo, a coisa não ia, não! Vá o Hitler. Vá o Mussolini. Comigo é ali na batata da convicção, do argumento científico!

E dessa maneira quase todas as reformas da Emília foram anuladas, mas nenhuma delas por imposição de Dona Benta. A boa senhora argumentava, provava o erro — e então a própria Emília se encarregava de restabelecer o velho sistema. Mas mesmo assim muitas das reformas ficaram, como, por exemplo, a dos livros.

— Sim, Emília, esta idéia do livro comestível me parece ótima, um verdadeiro achado. Mas não para todos os livros. O bom é que haja o livro de papel e ao seu lado o livro comestível. Quem quiser compra um, quem quiser compra outro. As coisas novas jamais substituem inteiramente as coisas velhas. Lembre-se de que em Nova Iorque, a cidade que tem mais automóveis no mundo, nós vimos as carroças que entregam leite de manhã puxadas por cavalos. Aprovo a idéia do Livro-Pão e hei de propor a um industrial meu conhecido que estude o problema e crie a nova indústria. Mas você me vai fazer o favor de deixar meus livros como eram, porque senão...

Nesse momento Pedrinho entrou correndo na sala, muito afobado.

— Vovó, imagine o que aconteceu! O Rabicó entrou na sua biblioteca e devorou a Iliada de Homero e as obras completas de Shakespeare...

— Se não tivessem tirado do focinho dele a ratoeira, nada teria acontecido — disse a Rã. — Bem feito!

— Vê, Emília? — disse Dona Benta. — Nem todos os livros devem ser comestíveis, mas só os de importância secundária, meramente recreativos, ou então os livros ruins. Um livro que não presta para ser lido, ao menos que preste para ser comido. E agora? Como vou passar sem a minha Ilíada e o meu Shakespeare?

Emília concordou que realmente nem todos os livros deviam ser comestíveis e, indo à biblioteca, "descomestibilizou" a maior parte — menos os "ruins".

E assim terminou a aventura emiliana da Reforma da Natureza. Emília aprendeu a planejar a fundo qualquer mudança nas coisas, por menor que fosse. Viu que isso de reformar às tontas, como fazem certos governos, acaba sempre produzindo mais males do que bens.

A Rãzinha ficou ainda por lá uma semana, a ouvir as histórias que Dona Benta contava da Conferência da Paz. Depois, com muita dor de coração e com muito pesar de todos do Sítio, cheirou o pó de fiun — e lá se foi para o Rio de Janeiro, onde encontrou sua pobre mãe de luto e de olhos vermelhos, certa de que sua querida filha tinha desaparecido para sempre.

— Perdoe, mamãe. Entusiasmei-me demais com o programa de reformas da Emília e fui para o Picapau Amarelo sem dizer nada à senhora. Nunca mais farei isso. Já me reformei nesse ponto.

E que mais?

Ah! Tia Nastácia gostou muito do leite que assobiava ao ferver e conservou o sistema.

— Era uma consumição esse negócio do leite — disse ela. — Eu tinha de ficar de plantão ali na cozinha, senão ele fervia e derramava. Agora, não. Ponho o leite no fogo e nem penso mais nisso. Uma gostosura. A Emília é mesmo uma danadinha. Outra coisa de que gostei muito foi o que ela fez com as pulgas. Entrei no meu quarto, vi uns pontinhos pretos parados no ar. Peguei um. Olhei. Era pulga, Sinhá, pulga parada no ar — e pulga mole, Sinhá, mole como qualquer bichinho mole! Essa reforma foi boa, porque, quanto mais velha fico, mais me custa pegar uma pulga daquelas do sistema antigo...

Dona Benta aprovou a mudança das pulgas e também a das moscas e pernilongos. E com a sua grande sabedoria de filósofa, disse:

— Está bem, Emília. Vou examinar detidamente todas as reformas que você fez, porque estou vendo que há muita coisa aproveitável.

Emília piscou vitoriosamente para o Visconde.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.