A Reforma da Natureza (12ª edição)/2ª parte/Capítulo 1
CAPÍTULO I
O LABORATÓRIO DO VISCONDE
A VIAGEM DE Dona Benta e seus netos à Europa, quando foram dar arrumação no pobre continente destruído pela guerra, fez do Visconde de Sabugosa um sábio ainda maior do que era. Durante a estada lá, o famoso sabuguinho teve ocasião de conhecer diversos cientistas notabilíssimos, com os quais aprendeu grandes coisas. Seus estudos se concentraram na fisiologia, isto é, na ciência que estuda o funcionamento dos órgãos nos seres vivos.
Ele aprendeu, por exemplo, que no corpo do homem e de outros animais existem umas coisas chamadas GLÂNDULAS, que são da maior importância para a vida. As glândulas é que dirigem tudo: fazem o corpo crescer, engordar, suar; fazem vir água à boca quando o freguês se lembra duma coisa gostosa ou sente o cheiro dos bolinhos de tia Nastácia. Uma enorme glândula chamada Fígado produz um líquido grosso, amarelo-esverdeado, de nome Bílis, que ajuda a digestão dos alimentos e resolve as gorduras — faz com elas o que faz o sabão. Outras glândulas chamadas Rins, que têm a forma de dois grandes caroços de feijão, filtram os venenos que se formam no corpo e os botam para fora com a urina. Há as Glândulas Mamárias, que produzem o leite. O Pulmão é outra glândula muito importante...
— Mas então aquilo dentro é só glândulas? — perguntou Emília, a quem o Visconde estava explicando aquelas coisas. Dona Benta respondeu:
— Há dentro do corpo humano numerosas glândulas. São como as usinas das cidades, que produzem todas as coisas necessárias à vida urbana. Sem essas usinas e sem essas glândulas, nem as cidades nem os organismos poderiam viver e desenvolver-se. Quando a gente sua ou chora, donde vem o suor ou a lágrima?
— Duma usininha qualquer.
— Exatamente. Vêm das Glândulas Sudoríparas e das Glândulas Lacrimais, usininhas produtoras do suor e das lágrimas. Até para essa gordurinha que as pessoas têm sobre a pele são necessárias glândulas — as Glândulas Sebáceas.
— Produtoras de sebo, que feiúra! — exclamou Emília. — De modo que nós somos lá por dentro uma verdadeira cidade com fábricas até de sebo?
— Como não! E uma cidade complicadíssima. Além dessas usinas de bílis, de lágrimas, de suor, de sebo, há as que produzem o suco gástrico lá no estômago; há as que produzem a saliva na boca...
— Que porcaria! Saliva é cuspo. Para que serve cuspo? Só para cuspir.
— Não, Emília. A saliva tem um emprego muito importante na digestão das comidas. A gente come arroz, feijão, carne, batatas, mil coisas. Mas isso tem que ser transformado em sangue, porque o sangue é o mel que alimenta todas as células que compõem o corpo.
— Que engraçado!...
— E não é só isso. Não basta que o sangue apareça, é preciso que se conserve sempre no ponto, bem vermelhinho e fresco; e é ainda uma glândula, o Pulmão, que faz o serviço, consertando o sangue estragado.
— Mas como é que o sangue se estraga?
— Muito simples. O corpo é feito duns tijolinhos microscópicos chamados células. Esses tijolinhos só se alimentam de sangue. Para alimentá-los é que há sangue. Mas do sangue que chega até eles só tomam os elementos de que precisam e rejeitam o resto. Esse resto é o que chamo sangue estragado.
— E para onde vai ele?
— Vai para o Pulmão, que é a oficina consertadora do sangue. Quando chega lá, o sangue estragado sofre uma limpeza em regra, toma um banho do ar que respiramos, escova-se, penteia-se, fica de novo vermelhinho e no ponto, como era. Dali segue para o Coração. O Coração o bombeia, forçando-o a fazer outra viagem pelas artérias até chegar a todos os tijolinhos do corpo. E assim por diante.
— Mas como o sangue estragado não se mistura com o fresco?
— Cada um tem o seu caminho. O sangue fresco segue pelas artérias, que são canaizinhos que se vão desdobrando como galhos de árvores, até ficarem finos como agulhas. Já o sangue estragado segue por outra rede de canaizinhos chamados "veias". As artérias são como a canalização de águas das cidades, na qual só corre água limpa. As veias são como as canalizações das águas servidas.
Emília estava pensativa, com os olhos longe.
— Que bonito se fizéssemos uma viagem pelo corpo humano! — murmurou.
— Pois se fizéssemos essa viagem, eu só queria ver as glândulas — disse o Visconde. — Elas são umas danadas. Não há o que não façam. E existem duas que me interessam muito: a Tiróide e a Pituitária.
— Que nomes!
— A Tiróide mora no pescoço. É pequenina, com a forma dum U e cor de borra de vinho. Vive cheia dum líquido amarelo, chamado Tiroxina.
— Para que serve?
— Ela derrama esse líquido no sangue com resultados maravilhosos. Faz que a criatura cresça, imagine! E também faz que tudo fique ativo no corpo. É como um chicote. Quando há falta de Tiroxina, o corpo amolece, vem a preguiça, o pulso cai, a temperatura desce, o freguês perde o apetite, a fala fica arrastada, o cérebro emburrece, o cabelo rareia, a pele torna-se amarela, a carne incha — um desastre, Emília! As crianças com pouca Tiroxina no corpo param de crescer e ficam bobas — ficam cretinas.
— Ah, então cretino quer dizer isso?
— Sim. Um cretino é uma pobre criatura em quem a Glândula Tiróide está desarranjada. Se você conserta a glândula, a criatura muda imediatamente e perde o cretinismo.
— Que coisa engraçada!
— Outra danadinha é a senhora Dona Pituitária. Muito pequena, assim duma meia polegada de tamanho. Mora dentro da cabeça. O seu caldinho, a Pituitrina, tem um efeito prodigioso no organismo, sobretudo nos intestinos, ou tripas, e nos rins. Se ela produz o tal líquido mais do que na conta certa, o freguês sente um apetite furioso por açúcar e doces, e engorda até ficar obeso.
— Vamos, Visconde — disse Emília assanhada — vamos fazer uma viagem pelo corpo humano! Está com jeito de ser mais interessante até do que a Lua.
— Havemos de ir, e então veremos que o caldinho do Pituitária também governa o crescimento do corpo. Quando o caldinho é demais, o freguês fica gigante, quando é de menos, fica nanico ou anão.
— Então quando a gente vê o Major Trancoso, que tem um metro e noventa de altura, já sabe que ficou assim por causa de muita pituitrina?
— Está claro. E quando vemos o Zezinho da Estiva, que só tem sete palmos, já sabemos que ficou assim por falta de funcionamento da Pituitária.
O Visconde conversou longo tempo sobre aquele assunto, e falou na Glândula Pâncreas, na Glândula Pineal e em todas as mais que conhecia. Da Glândula Pineal disse que era a mais misteriosa. Os sábios ainda não sabem para que ela realmente serve. Tem o tamanho dum caroço de ervilha e está localizada no cérebro. Os antigos filósofos diziam ser ali que morava a alma das criaturas.
— E que dizem os modernos filósofos?
— Os filósofos modernos não se metem a falar das glândulas. Deixam isso por conta dos fisiologistas.
— E que dizem os tais fisiologistas?
— Dizem que a Glândula Pineal parece ser um olho que os animais vertebrados já tiveram e hoje não têm mais. Esse olho foi desaparecendo e está reduzido àquele caroço de ervilha. Nessa viagem ao País do Corpo eu iria decifrar o mistério da Glândula Pineal.
E tanto o Visconde falou naquilo, que lhes veio a idéia de organizarem um laboratório para experiências em animais.
— Se são as glândulas que tudo regulam nos seres vivos — disse Emília — nós podemos estudar as glândulas e enxertar umas nas outras, e fazer mais coisas, para ver de que maneira os animais ficam.
- O Visconde, que era realmente um sábio, nunca rejeitou ocasião de aprender coisas novas; por esse motivo aprovou a idéia da Emília.
— Mas... e o microscópio? — disse ele. — Sem microscópio nós não nos arranjamos.
— Temos o binóculo de Dona Benta — disse Emília. — Com um pouco de caldinho da Glândula Faz-de-Conta, podemos transformá-lo num maravilhoso microscópio.
— E o lugar do laboratório?
— Na Cova do Anjo. É o único ponto seguro aqui no Sítio.
A Cova do Anjo era aquele enorme oco da Figueira Grande onde Emília tinha escondido o Anjinho de Asa Quebrada no dia em que as crianças inglesas invadiram o Sítio. Lá ninguém entrava, porque era escuro e havia muito morcego. Podiam arrumar o laboratório no oco, sem que os da casa percebessem — porque, se percebessem, haviam de implicar-se, sobretudo Pedrinho, que depois da viagem à Europa andava todo totalitário, mussolinesco.
Num instante arrumaram o laboratório, com o binóculo transformado em excelente microscópio, com vidros vazios, uma lâmina Gillette para fazer de bisturi, várias agulhas e alfinetes, algodão, iodo etc. Emília também arranjou para o Visconde um aventalzinho e um gorro branco, dos que os sábios usam nos laboratórios de verdade.
— Muito bem. O laboratório está pronto. Temos agora de obter "pacientes" — disse o Visconde, pondo o avental.
— Que pacientes? — perguntou Emília.
— Os seres vivos em que vamos fazer as experiências — explicou o grande sábio. — Esses seres, se são gente, recebem o nome de anima nobile — almas nobres; se são bichos, recebem o nome de anima vile — almas vis.
E começaram com as formigas. Emília caçou uma porção de saúvas das mais cabeçudas e trouxe-as num vidro vazio.
— Pronto, Visconde. Aqui temos um bom lote de anima vile, como dizem os sábios.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.

