A Reforma da Natureza (12ª edição)/1ª parte/Capítulo 3
CAPÍTULO III
O PASSARINHO-NINHO
A RESPOSTA FOI UM "Aqui!" vindo do pomar. Correndo no rumo da voz, a menina encontrou Emília tão entretida com um passarinho que nem sequer a olhou. Estava afundando as costas dum tico-tico. Todos os passarinhos têm costas "convexas", isto é, arredondadas para cima. Emília estava fazendo um passarinho de costas "côncavas", isto é, com um afundamento redondo nas costas. A Rã ficou a olhar para aquilo sem entender coisa nenhuma, até que Emília explicou.
— Estou fazendo o passarinho-ninho. A boba da Natureza arruma as coisas às tontas, sem raciocinar. Os passarinhos, por exemplo. Ela os ensina a fazer ninhos nas árvores. Haverá maior perigo? Os ovos e os filhotes ficam sujeitos à chuva, às cobras, às formigas, às ventanias. O ano passado deu por aqui um pé-de-vento que derrubou o ninho deste tico-tico, ali da minha pitangueira — e lá se foram três ovos tão bonitinhos, todos sardentinhos. E mais uma vez me convenci da "tortura" das coisas. Comecei a reforma da Natureza por este passarinho.
A Rã não entendeu que reforma era aquela e perguntou:
— Para que esse afundamento aí nas costas do tico-tico?
— Pois é o ninho — respondeu Emília. — Faço o ninho dele aqui nas costas e pronto. Para onde ele for, lá vão também os ovos ou os filhotes — e não há perigo de cobra, nem de ventania, nem de chuva.
— De chuva há — disse a Rãzinha. — Nos ninhos em árvore a fêmea está sempre em cima dos ovos. Mas aí. . .
Emília fez um muxoxo de superioridade.
— Já previ todas as hipóteses — disse ela. — Faço a caudinha dele bem móvel, de modo que possa virar para trás e cobrir os ovos quando for preciso, como se fosse um telhadinho.
A Rã deu-se por satisfeita e com a maior atenção acompanhou o preparo do primeiro passarinho-ninho do mundo.
— Pronto! — exclamou Emília por fim. — Faltam só os ovos. Corra ali e me traga o tico-tico fêmea que está na gaiola.
A Rã foi e trouxe o passarinho. Emília pegou-o com muito jeito e espremeu-o de modo que saíssem três ovinhos sardentos, os quais depositou com muito cuidado no ninho de penas feito nas costas do tico-tico macho — e soltou os dois, prr! ...
Emília estava radiante.
— Lá se foram! — exclamou. — Acabaram-se as inquietações, os medos de cobra, formiga ou vento. E também se acabou o desaforo de todo o trabalho de botar e chocar os ovos caber só à fêmea. Os homens sempre abusaram das mulheres. Dona Benta diz que nos tempos antigos, e mesmo hoje entre os selvagens, os marmanjos ficam no macio, pitando nas redes, ou só se ocupam dos divertimentos da caça e da guerra enquanto as pobres mulheres fazem toda a trabalheira e passam a vida lavando e cozinhando e varrendo e aturando os filhos. E se não andam muito direitinhas, levam pau no lombo. Os machos sempre abusaram das fêmeas, mas agora as coisas vão mudar. Esse tico-tico, por exemplo, tem que tomar conta dos ovos. A fêmea fica com o trabalho de botá-los, mas o macho tem que tomar conta deles.
— Mas assim os ovos não chocam — objetou a Razinha. — Para que choquem é preciso que as fêmeas fiquem uma porção de dias sentadas sobre eles. As galinhas levam 21 dias no choco.
— Já "previ a hipótese" — disse Emília e reformei esse ponto. No meu sistema de passarinho-ninho quem choca não é a fêmea e sim o sol, como acontece com os ovos dos jacarés, tartarugas, lagartixas e cobras.
— E quando não houver sol? As vezes se passam dias sem o sol aparecer.
— Nesse caso, os ovos que tenham paciência e esperem que o sol apareça. Para que pressa?
A Rã não teve mais nada a dizer. Estava certo. Só então é que Emília se lembrou de cumprimentá-la e saber como iam todos lá da casa. Também lhe examinou as mãos para ver se as unhas estavam de luto. E fê-la voltar-se de perfil e de costas, e dar três pulos. Era a primeira vez que as duas se encontravam pessoalmente.
— Estou gostando do seu fisico — disse Emília no fim do exame. — Tive medo de que não correspondesse à idéia que fiz. Muitas vezes a gente imagina uma pessoa e sai o contrário. Gostei muito da sua última carta sobre a reforma das cidades e das gentes. Adoro você, Rã, porque você não concorda.
— Ah! não concordo mesmo! — exclamou a Rãzinha. — Vivo não concordando. Em nós, gente, por exemplo, quanta coisa errada! Por dois olhos na frente e nenhum na nuca? Eu, se fosse reformar as criaturas, punha um olho na testa e outro na nuca. Desse modo eu dobrava a segurança das criaturas.
— Pois eu aumentava o número de olhos — disse Emília. — Por que dois só? Assim como temos dez dedos podíamos ter dez olhos. Eu punha quatro na cabeça, a norte, sul, leste e oeste. E punha dois nos dedões dos pés, para evitar as topadas. Outro dia Pedrinho deu uma topada num tijolo que quase arrancou a unha. Com um olho em cada dedão, não há perigo de topadas — nem de espinhos e estrepes. E eu também dava olhos a cada dedo minguinho. O minguinho é um verdadeiro vagabundo nas mãos. Não faz nada. Fica o tempo todo assistindo ao trabalho dos outros. Ora, se o "mingo" tivesse um olhinho na ponta, podia prestar bons serviços. As vezes a gente quer enxergar numa cova de dente ou ver se há cera no ouvido e não pode. Com o olho do "mingo", nada mais fácil.
— E esse olho do minguinho — ajuntou a Rã — podia ser como os microscópios, capaz de enxergar coisinhas invisíveis aos olhos comuns. Mas haveria um inconveniente, Emília. As mãos lidam com tudo, trabalham muito, e esses olhos do minguinho haviam de viver se enchendo de cisco ou se arranhando — e que dor!
— Nada mais fácil do que evitar isso — lembrou Emília. — Basta que usem dedaizinhos. Ficam cobertos quando não tiverem o que fazer. Mas por enquanto não podemos reformar gente, porque não há gente aqui. Todos os humanos do Sítio foram para a Europa.
— E Rabicó?
— Esse é desumano e quadrupedíssimo. Já pensei muito na reforma de Rabicó. Podemos transformá-lo em bípede e...
— E acabar com aquela mania de comer tudo quanto encontra — continuou a Ra. — Eu faria assim: no focinho punha uma espécie de ratoeira, sempre armada; quando ele avançasse num doce ou em qualquer coisa séria, como aquela coroa do casamento de Narizinho, a ratoeira desarmava e segurava-lhe o focinho. E também dava-lhe pernas de tartaruga, para que não pudesse fugir quando Pedrinho o perseguisse com o bodoque.
Emília olhou para a Rã com ar desconfiado. Aquelas idéias pareceram-lhe absurdas. A ratoeira impediria Rabicó de comer não só cocadas e coroinhas como tudo mais, e ele morreria de fome.
— "Bissurdo", Ră! — disse ela. — A sua ratoeira acabava matando Rabicó e Dona Benta ficava danada.
— Você não me entendeu, Emília. A ratoeira só funcionaria quando ele quisesse comer coroinhas. Para abóbora, milho, mandioca e o resto, não.
— Mas como a ratoeira podia saber quando era coroinha?
— Pelo cheiro. Eu punha um bom nariz na ratoeira.
Emília olhou para a Rã com o rabo dos olhos. Aquela menina estava com jeito de ser maluca ... Apesar disso, encarregou-a de reformar Rabicó. A Rã mudou de assunto.
— Na carta que você me escreveu, Emília, encontrei a palavra "bissolutamente" em vez de "absolutamente"; e agora você disse "bissurdo" em vez de "absurdo". Está reformando as palavras também?
— Ainda não, mas já pensei nisso. Por enquanto me limito a cortar uma ou outra letra com a qual me implico. O "a" de certas palavras me obriga a abrir muito a boca e meu queixo pode cair, como o da filha de Nhá Veva. Experimente dizer "absurdo" sem abrir a boca.
A Rã experimentou e não conseguiu, mas "bissurdo" ela disse quase de boca fechada.
— Pois aí está! — tornou Emília. — Tudo errado, até o "a" de certas palavras. O mundo é uma grande trapalhada. Para que, por exemplo, caudinha em Rabicó? Na vaca mocha a cauda tem razão de ser — serve para espantar as moscas. É um espanador. Mas em Rabicó? Para que serve aquele caracolzinho pelado?
— Para enfeite do fim — lembrou a Rã.
— Que fim?
— O fim de Rabicó. Todos os fins têm caudinhas. É o remate. Mamãe diz que é feio comer e deixar o prato limpo, ou beber um cálice de licor sem deixar um bocadinho no fundo. São caudinhas. São os enfeites da boa educação.
Emília estava cada vez mais desconfiada da Rãzinha. Parecia a Alice do País das Maravilhas. Só vinha com disparates. E disse:
— Enfeites são inutilidades. Não quero saber de enfeites nas minhas reformas. Tudo há de ter uma razão científica. Aquela idéia da carta sobre a reforma do Quindim me pareceu maluca. Acho que você quer brincar com a Natureza, menina. Eu quero corrigir a Natureza, quero melhorá-la, entende? Não se trata de nenhuma brincadeira. Negócio sério. Aí está a diferença entre nós. Na última carta você falou em substituir o couro do Quindim por um veludo. Isso é asneira.
— Mas que necessidade tem Quindim dum couro duríssimo, aqui no Picapau Amarelo, onde não há espinhos africanos?
— Concordo. Poderá ter um couro mais fino, assim como a camurça; mas de veludo, Rã, é demais. As vezes penso que você está sabotando a minha idéia de reforma da Natureza...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.