A Reforma da Natureza (12ª edição)/1ª parte/Capítulo 4
CAPÍTULO IV
REFORMA DA MOCHA
POR MUITO tempo ficaram as duas conversando sobre reformas e mais reformas e, como estivessem debaixo da jabuticabeira, iam falando e comendo as deliciosas frutas. Em certo momento Emília disse:
— Esta jabuticabeira, por exemplo. Não acha que é uma vergonha uma árvore deste tamanho dar frutinhas tão pequenas? E no entanto temos lá na horta um pé de abóbora que dá abóboras enormes e é um pé que nem é pé de coisa nenhuma — não passa dum talinho mole que se esborracha quando a gente pisa em cima. Vou mudar. Vou botar as jabuticabeiras no pé de abóbora e as abóboras nas jabuticabeiras.
— Mas isso foi o que o Américo Pisca-Pisca fez — alegou a Rà, — e o sonho lhe abriu os olhos.
— É que o bobo foi dormir debaixo da jabuticabeira — e sabe para quê? Para que a fábula ficasse bem arranjadinha. O fabulista era um grande medroso; queria fazer uma fábula que desse razão ao seu medo de mudar — e inventou essa história do sono do Américo debaixo da jabuticabeira. Já reformei essa fábula.
— Como?
— Fazendo que o Américo não dormisse debaixo de árvore nenhuma e o La Fontaine ficasse sem jeito de rematar a fábula. Deixei só um pedaço de fábula. Uma fábula inacabada, como aquela sinfonia famosa. E sem moralidade.
— Fábula sem moralidade é fábula imoral — disse a Rà. — É fábula rabicó — sem rabo. Não presta.
— Não presta o seu nariz — respondeu Emilia; e foi fazer reformas.
As abóboras ficaram muito sem jeito e desapontadas ao se verem penduradas nos galhos daquela árvore enorme, e as ja- buticabas danaram de ir para o chão, presas a uns talos molengos e sempre encostados à terra. O que lhes valeu foi serem envernizadinhas; do contrário se sujavam de pó; mesmo assim, ficaram com cara de nojo, a suspirar de saudades dos antigos galhos.
A Rã assistia às mudanças e ia dando opiniões.
— As laranjas — disse ela — eu as faria crescer com uma faquinha dentro. Quantas vezes temos uma laranja na mão e não há faca perto?
— Muito melhor fazer as laranjas nascerem já descascadas — lembrou Emília. — Para que casca? Só serve para sujar de sumo a mão da gente.
E assim foi feito. Todas as laranjas do pomar tiveram de "ficar em pelo", muito envergonhadas, com os gomos à mostra, e só nos galhos mais baixos. O chão encheu-se de tanta casca que Rabicó se aproximou, farejando.
A Rãzinha, que ainda não conhecia o famoso Marquês, regalou-se de olhá-lo.
— Como está gordinho e lustroso, Emília! É ainda Marquês?
— Que remédio? — berrou Emília. — Título é como apelido: quando agarra uma criatura, não larga mais. Aqui nas vizinhanças temos um negro de 70 anos que tem o apelido de Tadinho. Sabe por quê? Porque quando nasceu todos começaram a tratá-lo de "Coitadinho" — depois "Tadinho" — e ficou Tadinho toda a vida, um negrão daqueles . . .
— Mas você, Emília, parece que nem mais se lembra de que é marquesa, não?
— As vezes me lembro, mas sem prazer nenhum. Que gosto ser marquesa de um marquês assim? Meu sonho você bem sabe qual é ...
— Sei — é ser mulher dum grande pirata, para mandar num navio. Por que então não se casa com o Capitão Gancho?
— Que idéia! — exclamou Emília. — Não há pirata que mais desmoralize a classe do que esse. Primeiro não tinha um braço e agora nem navio tem. A sua "Hiena-dos-Mares" virou "Beija-flor-das-Ondas", como você bem sabe — e hoje é de Pedrinho. Eu queria casar-me com um daqueles grandes piratas dos tempos do ouro do Peru, aqueles que atacavam os galeões espanhóis em pleno mar, com as facas atravessadas nos dentes. Há um, chamado Morgan, que me servia. Também já pensei num pirata submarino, mas desisti. Submarino me dá falta de ar.
Rabicó apenas cheirou as cascas das laranjas. Só gostava de casca com gomos dentro.
— E a vaca Mocha? – perguntou a Rã. – Vai reformá-la também?
– Claro que sim – e já. Acompanhe-me. Lá se foram as duas para o pastinho da Mocha, que estava pachorrentamente mascando umas palhas de milho. Ficaram diante dela, de mãos á cintura, discutindo a reforma.
– Eu mudava o depósito de leite – disse a Rãzinha. – Punha torneirinha nas tetas para evitar o que hoje acontece: para tirar o leite os vaqueiros apertam as tetas com as suas mãos sujíssimas – uma porcaria. Com o sistema de torneira essas mãos não tocam nas tetas.
Emília deu uma risada gostosa.
– Que bobagem! Bem se vê que você é menina do Rio de Janeiro. Pois não sabe que a função das tetas é dar leite aos bezerros?
Como pode um bezerrinho mamar em torneiras?
– Ensinávamos os bezerros a abrir as torneiras.
– Não – declarou Emília. – Muito complicado. Na Mocha quero umas reformas úteis para ela mesma e não para as criaturas que a exploram. Vou pôr a cauda da Mocha bem no meio das costas, porque assim como está só alcança metade do corpo. Como pode a coitada espantar as moscas que lhe sentam no pescoço, se o espanador só chega às costelas? Tudo errado …
E plantou a cauda da Mocha no meio das costas de modo que pudesse espantar as moscas do corpo inteiro: norte, sul, leste, oeste. E passou as tetas para os lados, metade á esquerda, metade á direita.
– Assim podemos tirar leite de um lado enquanto o bezerrinho mama do outro. Reforma não é brincadeira. Precisa ciência.
– ótimo! – concordou a Rã. – E podemos botar torneirinhas nas tetas do lado direito – para serviço dos leiteiros. As do lado esquerdo ficam como são – para uso dos bezerrinhos.
Emília aprovou a idéia . Depois passaram a considerar os chifres.
– Toda vaca de respeito tem chifres – disse Emília – menos esta coitada, que é Moclia. Vou dar-lhe chifres compridos, mas sem ponta aguda.
A Rã lembrou que os esgrimistas usam floretes com um chumaço na ponta. Podiam dar à Mocha dois chifres pontudos mas com chumaço na ponta. Emília aperfeiçoou imediatamente a idéia.
— Em vez de chumaço, Rã, podemos espetar nas pontas uma bola de borracha maciça — uma bola "tirável", isto é, que possa ser tirada de noite.
— Para quê?
— Para que ela possa defender-se de algum ataque noturno. Os chifres são a única defesa dela, coitada.
— Mas que perigos noturnos há por aqui?
— O das onças, minha cara. Tio Barnabé diz que uma antepassada desta Mocha foi comida por uma onça.
— De dia a Mocha pode usar a bola porque as onças só atacam durante a noite.
E a Mocha foi armada de dois esplêndidos chifres elegantemente retorcidos como saca-rolhas, com duas bolas maciças nas pontas — bolas "tiráveis".
O pelo da vaca também sofreu reforma. Ficou macio como pelúcia e furta-cor.
Estavam ocupadas na reforma da Mocha, quando passou por cima delas uma linda borboleta azul.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.